terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Tentativa de esvaziar agências é descabida

O Globo

Congresso precisa deter retrocesso proposto em emenda à MP que reorganizou os ministérios

Não tem cabimento a ideia do deputado Danilo Forte (União-CE) de intervir no funcionamento das agências reguladoras, subordinando suas decisões e atos normativos a conselhos vinculados aos ministérios. Uma leitura superficial das emendas propostas pelo parlamentar do Centrão à Medida Provisória 1.154/2023 pode dar a impressão de que o objetivo é seguir o princípio da “separação de poderes”, aumentar a “participação democrática” ou melhorar a “execução de tarefas” no setor público. Não é disso que se trata. A aprovação das propostas aumentaria a interferência política em áreas técnicas, elevaria o risco para investidores e faria o país dar vários passos para trás na relação entre Estado, consumidores e empresários. A recém-empossada Câmara dos Deputados precisa derrubá-las.

A criação de agências reguladoras independentes ganhou fôlego no Brasil a partir da década de 1990. Contando com áreas técnicas, passaram a ter duas missões: criar regras específicas de regulação para cada setor e fiscalizar seu cumprimento. Nesses mais de 20 anos, o saldo é sobejamente positivo. Mesmo que elas tenham sofrido todo tipo de pressão de diferentes governos e lobbies de toda sorte, são inequívocos os benefícios desse modelo. O mais marcante nos últimos tempos foi a resistência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aos ataques do então presidente Jair Bolsonaro às vacinas e às medidas de controle da pandemia.

Em 1º de janeiro, o governo federal promoveu a reorganização dos ministérios com a MP 1.154/2023, que ainda precisa ser votada no Congresso antes que expire o prazo de 120 dias. Interessado em enfraquecer o poder das agências, Forte vinha tentado promover mudanças por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Como não obteve assinaturas suficientes na legislatura anterior, aproveitou a MP para apresentar sua emenda sem cabimento. Forte gosta de falar em nome de empreendedores, mas a maioria das empresas hoje reguladas pelas agências apoia a independência.

Os alvos da tentativa estão explícitos no texto da emenda: Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional do Petróleo (ANP), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Agência Nacional do Cinema (Ancine), Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), Agência Nacional de Mineração (ANM) e Anvisa.

Pela proposta de Forte, o poder de todos esses órgãos seria esvaziado. As regras passariam a ser determinadas por representantes do ministério e do setor correspondente à área de atuação, da academia, dos consumidores, e da própria agência. Os efeitos do novo arranjo são previsíveis. Ele acabaria com decisões técnicas e abriria a porteira para todo tipo de desmando político e aumento de subsídios a empresários amigos do governo. “Se aprovadas, as emendas provocarão um grave aumento do risco regulatório, com consequências negativas tanto para consumidores como para as empresas”, afirma o engenheiro Edvaldo Santana, ex-professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ex-diretor da Aneel. O Congresso não pode permitir que o país sofra tamanho retrocesso.

Levantamento revela descaso das plataformas digitais com golpismo

O Globo

Pesquisadores identificaram pelo menos 185 anúncios de teor golpista no Facebook e no Instagram

A despeito da reação firme das instituições e da sociedade aos atos antidemocráticos e ao vandalismo do 8 de Janeiro, a desinformação ainda corre solta nas redes. A Meta, dona do Facebook, do Instagram e do WhatsApp, autorizou, entre novembro de 2022 e janeiro deste ano, a veiculação de pelo menos 185 anúncios de teor golpista em suas plataformas. O levantamento, feito pelo NetLab, laboratório ligado à Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi divulgado pelo Fantástico e também obtido pelo GLOBO.

Os anúncios propagam as costumeiras mentiras e teorias da conspiração. Contestam a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, levantam dúvidas sobre as urnas eletrônicas, pedem intervenção militar e convocam ou incentivam acampamentos golpistas em frente aos quartéis (desmobilizados apenas depois de 8 de janeiro). As peças foram veiculadas por 124 anunciantes, quase todos de pequeno porte. Uma minoria reúne políticos, empresas e líderes ou instituições religiosas. Do total de anúncios golpistas, apenas 21 foram removidos pela Meta (depois do 8 de Janeiro, o conglomerado anunciou que bloquearia conteúdos de apoio às invasões).

Os pesquisadores responsáveis pelo levantamento dizem que as autoridades brasileiras precisam discutir a criação de regras de publicidade e a definição de parâmetros para as plataformas, na medida em que não há transparência na moderação, e não fica claro se a Meta está se empenhando para combater os anúncios golpistas.

Ainda que não seja um número expressivo no universo da empresa, os anúncios golpistas levantam mais uma vez a necessidade de discutir de forma sensata regras para as plataformas digitais. O governo Lula tem batido na tecla do combate à desinformação, mas as medidas cogitadas até agora para a alegada “defesa da democracia” correm o risco de resvalar para abusos ou mesmo para a censura. Não adianta trocar um problema por outro. É preciso buscar o delicado equilíbrio entre a proteção à liberdade de expressão e a punição a atos criminosos que atentam contra as leis e a Constituição.

O melhor seria fazer avançar no Congresso o Projeto de Lei 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, que já passou por mais de 30 audiências públicas. Entre outros pontos positivos, ele exige que as plataformas adotem políticas públicas e transparentes para moderação de conteúdo, assumindo parte da responsabilidade pela publicação. No ambiente digital, não se pode ficar à mercê da lentidão de decisões da Justiça, como tantas vezes acontece. Moderar conteúdo não é papel das Cortes, muito menos de governos, por mais bem-intencionados que sejam. Tão importante quanto regular a atuação das plataformas é preservar a liberdade de opinião.

É preciso mais que orçamento para alavancar o ensino técnico

Valor Econômico

Alunos do ensino técnico profissionalizante se saem melhor do que os que frequentaram o ensino médio regular

A defesa do ensino técnico profissionalizante é uma constante no discurso oficial. O tema fez parte das promessas de campanha dos principais candidatos nas últimas eleições presidenciais, do vencedor Lula a Jair Bolsonaro, passando por Simone Tebet e Ciro Gomes. Apesar disso, o dinheiro do orçamento da Educação destinado ao ensino técnico vem diminuindo. Também as matrículas nos cursos técnicos caíram no levantamento mais recente disponível, de 2021, na véspera da entrada em vigor da reforma do Ensino Médio, que tem como uma das vertentes exatamente estimular a educação profissionalizante.

Pesquisa do Itaú Educação e Trabalho constatou que o ensino técnico perde participação no orçamento do Ministério da Educação e Cultura (MEC) desde 2016, o que contraria as gestões dos ex-presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro, que diziam incentivar o aprendizado especializado para estimular a produtividade e a empregabilidade da população, beneficiando, em consequência, a economia. No fim da década passada, o ensino técnico tinha uma fatia de 11% do orçamento da Educação. O percentual caiu para 10% no início desta década, e para 9% no orçamento deste ano, ou seja, para R$ 14,9 bilhões em um total de R$ 158,9 bilhões. A PEC da Transição abriu espaço para gastos maiores, mas ainda não está definido se o ensino técnico será beneficiado.

A perda de espaço no orçamento ocorre no momento em que a reforma do Ensino Médio começa a ser implantada, com a oferta de opções de itinerários para os estudantes, entre eles o de formação técnica e profissional, e de estudo em período integral, o que vai exigir esforço adicional das escolas estaduais em todo o país. Não é por outro motivo que a contribuição obrigatória da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) vai subir de 10% para 21%.

Alguns Estados estão mais bem preparados, como São Paulo, mas ainda assim apresentam carências. A rede paulista de ensino em tempo integral foi quintuplicada na gestão de João Doria e Rodrigo Garcia (PSDB), chegando a 2.311 unidades neste ano. Nem sempre a estrutura já está adequada e podem faltar professores. O governo de Tarcísio de Freitas pretende resolver as deficiências e incentivar o ensino profissionalizante. O novo governo trabalha para que metade das matrículas do ensino médio sejam direcionadas ao ensino profissionalizante no próximo ano. Atualmente, só 10,6% dos alunos da rede estadual estão em cursos técnicos, ou cerca de 143,8 mil entre 1,35 milhão de estudantes. Currículos com aulas de programação e educação financeira estão entre os projetos para atrair os jovens paulistas para o ensino profissionalizante.

Iniciativas desse tipo são importantes uma vez que dados mais recentes da Diretoria de Estatísticas Educacionais (Deed) do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram a queda das matrículas no ensino profissionalizante. De 1,936 milhão de estudantes em 2020 passaram a 1,892 milhão em 2021, uma redução de 2,3%, o menor patamar desde 2017.

Diante desses números parece inviável atingir a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de chegar perto de 5 milhões de matrículas no ensino técnico profissionalizante até o próximo ano. O objetivo foi traçado na década passada, quando o ensino técnico se mostrava mais promissor e deu um salto de 36% em quatro anos, partindo de 1,361 milhão de matrículas em 2010. Agora, tornou-se irrealista: desde 2014, os números parecem estagnados.

Para os padrões internacionais, é baixo o percentual de estudantes brasileiros que concluem o ensino médio com formação técnica. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2021, só 9% obtiveram diploma técnico em comparação com 38% da média dos demais países do grupo. Em algumas nações como Alemanha e Suíça, o percentual é ainda mais elevado e chega a dois terços.

Os especialistas precisam se debruçar sobre o problema que certamente vai além do orçamento baixo. De um lado, dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2021 elaborados pela plataforma QEdu, mostram que os alunos do ensino técnico profissionalizante se saem melhor do que os que frequentaram o ensino médio regular: em língua portuguesa, 57% atingem nível considerado adequado em comparação com 31,3%; e em matemática, 17,9% frente a 5%.

Ouro ilegal

Folha de S. Paulo

Governo e Congresso precisam rever regulação que facilita o garimpo clandestino

É fato que o debate sobre a lavra garimpeira em terras indígenas e áreas de preservação ambiental sofreu retrocessos nos quatro anos de Jair Bolsonaro (PL). No entanto também é fato que a procrastinação no combate ao avanço da atividade na região amazônica precede o governo anterior.

O controle dessa extração é negligenciado há décadas, inclusive pelos estados que, não raro, emitem leis regionais a favor de garimpeiros —o que conflita com a Constituição, dado que invadem áreas sob a esfera federal.

Pesquisas indicam que ao menos 30% do ouro brasileiro apresenta indícios de irregularidades e boa parte sai das terras de povos como areõe, xikrin, kayapó, kayabi, além dos yanomamis.

Combater o desastre da extração de minério ilegal tornou-se uma urgência humanitária apenas quando veio a público a tragédia dos yanomamis —ilhados em suas próprias terras, sem pesca, sem caça, contaminados por mercúrio e sucessivos surtos de malária, alvos de violência física e sexual.

Contudo, além de apoiar os indígenas, retirar os garimpeiros e adotar procedimentos para recuperar o território arrasado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) precisa ser ágil na mudança do arcabouço institucional que favorece a legalização e garante os ganhos desse ouro ilegal.

Não há negócio, lícito ou ilícito, que persista sem lucros, e a facilidade para "esquentar" o ouro do garimpo ilegal incentiva o crime, como sustentam especialistas.

Aponta-se que a Receita Federal, órgão ligado ao Executivo, preserva há mais de 20 anos uma instrução normativa que prevê nota fiscal de papel no trânsito do ouro como ativo financeiro. Essa medida pode estimular fraudes e lavagem de dinheiro, além de prejudicar a fiscalização da origem do metal e as investigações da Polícia Federal.

A Lei 12.844, sancionada em 2013, instituiu a declaração de boa-fé na venda do ouro de garimpo para instituições financeiras, o que, de acordo com estudiosos, gera proteção para quem compra o metal de origem suspeita.

Esse instrumento dificultaria ainda a ação do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários contra distribuidoras de títulos e valores mobiliários acusadas de conivência com garimpeiros.

O Legislativo tem os meios para modernizar as normas legais dessa atividade. Há projetos em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado que buscam o ambiente regulatório para instituir a rastreabilidade do ouro.

No mínimo, os textos propiciam a oportunidade para discussão aprofundada e entendimento político em torno do tema, fundamental para o futuro dos yanomamis.

Sarrafo paulistano

Folha de S. Paulo

Com folga de caixa, Nunes deve ser cobrado por melhoras, a começar na zeladoria

A maior metrópole do país é um notório moedor de reputações políticas e administrativas. Desde a redemocratização, os moradores de São Paulo nunca elegeram duas vezes um mesmo prefeito, tendo experimentado opções à direita, à esquerda e ao centro político.

Tampouco puderam ver grandes avanços no enfrentamento de mazelas que afligem a cidade há décadas, casos do trânsito caótico, da escassez de moradias, da população de rua, da vulnerabilidade a enchentes e até das deficiências na zeladoria —para nem falar de carências em educação e saúde, que não são peculiaridades paulistanas.

Por muito tempo se atribuiu o desmazelo ao exorbitante endividamento do município, herança das gestões de Paulo Maluf (1993-96) e Celso Pitta (1997-2000), que travava o acesso ao crédito e consumia parcela expressiva do Orçamento com juros e amortização.

Entretanto uma renegociação obtida por Fernando Haddad (PT) em 2015, com apoio do governo da correligionária Dilma Rousseff, reduziu consideravelmente as despesas financeiras locais.

O problema ali passava a ser a crise fiscal produzida por Dilma, que levou o país a recessão profunda seguida por anos de quase paralisia —e os entes federativos sofreram tais efeitos na arrecadação.

Dado esse contexto, a situação da prefeitura hoje pode ser considerada das mais favoráveis. O auxílio federal recebido durante a pandemia e a expansão da economia e das receitas nos últimos dois anos fortaleceram os cofres municipais.

Eles receberam R$ 85,8 bilhões no ano passado, num salto de 17,2% ante os R$ 73,2 bilhões, em valores corrigidos, de 2019, último exercício antes da crise sanitária.

No entanto os resultados desse incremento portentoso não parecem claros sob o prefeito Ricardo Nunes (MDB), cuja gestão ainda não dispõe de uma marca clara.

De mais visível no cotidiano dos paulistanos, a zeladoria permanece motivo de queixas aos milhares —mais precisamente, 1.221 feitas por dia em razão de lixo, calçadas e pistas, em média, entre janeiro e setembro de 2022, acima das 1.044 no período correspondente de 2021, como noticiou a Folha.

Não se desconhece a complexidade de gerir uma metrópole de desequilíbrios históricos e superlativos. Todavia inexistem, no momento, desculpas para a escassez de melhorias. Ainda que possa se mostrar fugaz, a folga orçamentária precisa ser aproveitada.

 Um combate em várias frentes na Amazônia

O Estado de S. Paulo.

Sem prejuízo da responsabilização do governo Bolsonaro pela crise Yanomami, a sociedade e o Estado brasileiros precisam aprofundar o debate sobre o ecossistema do crime na Amazônia

Sem dúvida, cabe ao governo de Jair Bolsonaro a maior parcela de responsabilidade pelo recente aumento exponencial dos crimes na Amazônia, dos quais a tragédia Yanomami é a consequência mais desumana. Além do desmonte dos órgãos de fiscalização e repressão, ele ignorou dezenas de alertas do Ministério Público sobre a calamidade dos Yanomamis e determinações do Supremo Tribunal Federal visando à expulsão de garimpeiros e madeireiros ilegais e à prestação de segurança sanitária e alimentar. Com boas razões, a Corte determinou a investigação de possível participação de autoridades do governo Bolsonaro no crime de genocídio.

Mas, sem prejuízo desses inquéritos e suas consequências, a solução do problema exige confrontá-lo em toda a sua extensão e complexidade. A crise foi acentuada por Bolsonaro, mas ela já vinha se avolumando bem antes.

Segundo estudo publicado na revista Remote Sensing por pesquisadores do Inpe, da Embrapa e da Universidade do Alabama, o garimpo ilegal em territórios indígenas, por exemplo, cresceu 1.271% entre 1985 e 2020. Em 2010 ele atingia cerca de 20 km² desses territórios; em 2019, eram mais de 100 km². Quase toda essa atividade está concentrada em reservas de três etnias: Kayapó, Munduruku e Yanomami.

O garimpo ilegal, praticamente todo voltado ao ouro, tem impacto na contaminação dos rios com mercúrio, na fuga de animais que alimentam a população local, na destruição de suas roças e na infecção de doenças trazidas pelos garimpeiros, e está imbricado a um vasto ecossistema do crime, que envolve lavagem de dinheiro, grilagem, prostituição, contrabando e narcotráfico.

Como disse o ministro do STF Gilmar Mendes sobre os Yanomamis, “é uma tragédia muito grande para acreditarmos que foi improvisada”. Da mesma forma, o seu enfrentamento deve se dar em camadas, desde as ações voltadas às calamidades mais pontuais e urgentes até as mais sistêmicas e crônicas.

De imediato, é preciso restabelecer a assistência humanitária, especialmente alimentar e sanitária. As ações do atual governo para reprimir o garimpo ilegal mostram que, quando o Estado quer, produz impactos imediatos: dezenas de comboios com garimpeiros já estão deixando a área. Mas é importante não substituir um problema por outro. Há o risco, por exemplo, de que essa evacuação gere a ocupação de outras áreas de garimpo ilegal, como a reserva Raposa Serra do Sol.

Vale lembrar que a esmagadora maioria dos garimpeiros, muitos deles indígenas, é de miseráveis, sem educação ou saúde, que buscam a sobrevivência de suas famílias. É preciso pensar em maneiras de tirá-los da ilegalidade. Isso passa, por exemplo, por um debate aprofundado sobre o artigo 174 da Constituição, que prevê que o Estado “favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros”.

Mas é preciso separar o joio do trigo. Como em tantos outros atentados do governo Bolsonaro à Constituição, suas medidas em relação ao garimpo, antes que promover, em interlocução com os indígenas, as condições legais e materiais para um garimpo sustentável, só buscaram descriminalizar, à revelia dessas comunidades, o garimpo predatório.

Coletando as melhores recomendações de ambientalistas, indigenistas e especialistas em segurança, os autores do estudo na Remote Sensing apontaram quatro medidas urgentes para conservar a floresta e os territórios indígenas: (i) restaurar as políticas de repressão ao desmate ilegal; (ii) melhorar iniciativas de mercado contra produtos de áreas ilegalmente exploradas; (iii) promover campanhas de conscientização; e (iv) financiar atividades econômicas nas florestas. Está cada vez mais bem documentado que Bolsonaro fez o exato oposto de tudo isso. Por isso, é preciso que ele seja responsabilizado por ações e omissões que agravaram a crise na Amazônia a ponto de haver suspeita de genocídio, mas isso não significa que a sociedade brasileira como um todo não precise assumir suas responsabilidades e remediar séculos de descaso com a Amazônia e suas comunidades.

A farra dos ex-ministros

O Estado de S. Paulo.

Ao liberar o trabalho imediato de ex-ministros em situações de evidente conflito de interesse, Comissão de Ética nomeada por Bolsonaro mostra indiferença com o interesse público

A decisão da Comissão de Ética Pública da Presidência da República de liberar ministros do governo anterior para exercerem de imediato atividades na iniciativa privada expressa bem a ligeireza com que o bolsonarismo trata questões relativas a conflitos de interesse. Vislumbra-se grave confusão entre o público e o privado, que, longe de ser um assunto meramente teórico, representa descuido do Estado e da sua capacidade de atender ao interesse público. É o antiliberalismo em sua essência.

Segundo informou o Estadão, a Comissão de Ética, formada exclusivamente por indicados pelo então presidente Jair Bolsonaro, liberou da quarentena o ex-deputado Fábio Faria, que chefiava o Ministério das Comunicações, e Bruno Bianco, ex-advogadogeral da União. Os dois vão trabalhar no BTG Pactual. Consta que Fábio Faria irá para a área de Relações Institucionais. O banco é o principal acionista da V.tal, empresa de fibra óptica que detém a maior rede neutra do País e realiza negócios com grandes empresas de telecomunicações, como a TIM e a Oi. Na avaliação da Comissão de Ética, Fábio Faria não poderia trabalhar imediatamente apenas em empresas de telecomunicação e de radiodifusão. No caso de Bruno Bianco, o colegiado liberou o trabalho no banco sob a condição de “se abster, a qualquer tempo, de fazer uso de informação privilegiada”.

Marcelo Sampaio, ex-ministro da Infraestrutura, também foi liberado para trabalho imediato na iniciativa privada. Segundo o jornal apurou, foi convidado para trabalhar na Vale. No caso de Marcelo Sampaio, a Comissão de Ética admitiu que o ex-ministro da Infraestrutura teve “informações privilegiadas”, mas o liberava da quarentena sob o argumento de que haveria “impedimento do consulente a qualquer tempo, e não apenas nos seis meses posteriores ao desligamento do cargo público, de divulgar ou fazer uso de informações privilegiadas”.

Essas liberações imediatas são bastante questionáveis, em uma interpretação tão ampla da Lei 12.813/2013 que contrariam o propósito da própria lei – que dispõe sobre conflito de interesses e impedimentos posteriores ao exercício do cargo no Executivo federal. Segundo essa lei, a Comissão de Ética pode dispensar o cumprimento de período de impedimento somente se “verificada a inexistência de conflito de interesses ou sua irrelevância”. Não parece ser o caso das três liberações.

Ao mesmo tempo, a Comissão de Ética entendeu que dez ex-ministros do governo Bolsonaro, mesmo sem apresentarem proposta concreta de novo emprego, poderão continuar recebendo os respectivos salários até o final do primeiro semestre. Ao que parece, o colegiado vê a quarentena remunerada como uma espécie de benefício privado para quem passou por um cargo público, e não uma proteção do Estado, para assegurar que pessoas com informação privilegiada não trabalhem de imediato em áreas com potencial conflito de interesse.

Criada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a quarentena para ministros e autoridades do segundo escalão, incluindo diretores de empresas públicas, fundações e autarquias, foi um importante avanço institucional, como medida de proteção do interesse público. Titulares de cargos de confiança que deixam o governo passaram a ter de esperar por quatro meses – depois, o prazo foi ampliado para seis meses – antes de aceitarem empregos na iniciativa privada na área de atuação. No período, os profissionais continuam vinculados ao órgão em que estavam lotados e recebem um salário compensatório equivalente ao que tinham no exercício da antiga função.

Nas decisões da Comissão de Ética Pública da Presidência da República liberando o trabalho imediato, em vez da proteção da moralidade pública e da aplicação rigorosa da lei, há uma contundente defesa dos interesses das pessoas que estavam nos cargos públicos. Em vez de servir ao público, o Estado fica refém do privado. É mais um aspecto da destruição do Estado operada pelo bolsonarismo, cujo apregoado “liberalismo” não passava de lorota.

Liberdade só para a patota

O Estado de S. Paulo.

Cassação de vereadora revela que, para o bolsonarismo, só bolsonaristas têm liberdade irrestrita

A Câmara de São Miguel do Oeste (SC), por 10 votos a 1, cassou o mandato da vereadora Maria Tereza Capra (PT) porque a parlamentar denunciou que um grupo de munícipes bolsonaristas teria feito uma “saudação nazista” em frente a um quartel do Exército, pouco depois da derrota eleitoral do então presidente Jair Bolsonaro para o petista Lula da Silva.

Ou seja: a Câmara de São Miguel do Oeste achou que era o caso de punir com nada menos que a perda do mandato uma parlamentar que exerceu seu direito de expressar indignação com aquele gesto que lhe pareceu infame. Para o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, a vereadora petista “propagou notícia falsa”, além de “atribuir aos cidadãos de Santa Catarina e ao município de São Miguel do Oeste o crime de fazer saudação nazista e de ser berço de uma célula neonazista”.

Numa cidade que votou em peso em Bolsonaro (foram 65% no segundo turno), presume-se que não seja nada popular denunciar como simpatizantes do nazismo os inconformados com a derrota de seu “mito”. Daí a cassar um mandato conferido pelo voto direto, que é o castigo mais significativo que um parlamentar pode sofrer, vai uma imensa distância.

É um caso exemplar do duplo padrão moral bolsonarista: os mesmos campeões da liberdade de expressão, que denunciam a “ditadura” do Judiciário quando este procura pôr cobro aos abusos e crimes que cometem nas redes sociais, são aqueles que, sem mais nem menos, decidem que uma vereadora não pode falar o que pensa – a despeito de a inviolabilidade dos vereadores por suas opiniões e palavras ser garantida pelo artigo 29, inciso VIII, da Constituição.

O fato é que a saudação dos bolsonaristas, registrada em vídeos que circularam amplamente por meio das redes sociais, é tão semelhante ao infame sieg heil nazista que as embaixadas da Alemanha e de Israel no Brasil e o Museu do Holocausto sentiram-se compelidos a repudiar aquela manifestação.

No frigir dos ovos, é irrelevante a interpretação que se faça daquela saudação. O que importa é notar a falácia do discurso bolsonarista sobre liberdade de expressão. Em nome de uma suposta defesa de uma garantia fundamental consagrada pela Constituição, tanto Bolsonaro como parlamentares bolsonaristas e um séquito de apoiadores já disseram, nos mais diversos meios, as maiores barbaridades.

Nessa visão absolutamente deturpada da garantia constitucional, decerto os insultos e ameaças de morte recebidos por Maria Tereza Capra e por outras duas vereadoras catarinenses não seriam mais do que o exercício do direito à manifestação de “opinião” ou das prerrogativas do mandato parlamentar. No mesmo sentido, acampar diante de quartéis para pedir um golpe militar e ameaçar o presidente da República, ministros do Supremo Tribunal Federal e seus familiares também seriam “livres manifestações” cobertas pelas “quatro linhas” da Constituição.

O episódio de São Miguel do Oeste resume, portanto, o espírito do bolsonarismo: em nome da “liberdade de expressão”, o que esses liberticidas reivindicam é o monopólio da irresponsabilidade.

 

 

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