Tentativa de esvaziar agências é descabida
O Globo
Congresso precisa deter retrocesso proposto
em emenda à MP que reorganizou os ministérios
Não tem cabimento a ideia do deputado Danilo Forte (União-CE) de intervir no funcionamento das agências reguladoras, subordinando suas decisões e atos normativos a conselhos vinculados aos ministérios. Uma leitura superficial das emendas propostas pelo parlamentar do Centrão à Medida Provisória 1.154/2023 pode dar a impressão de que o objetivo é seguir o princípio da “separação de poderes”, aumentar a “participação democrática” ou melhorar a “execução de tarefas” no setor público. Não é disso que se trata. A aprovação das propostas aumentaria a interferência política em áreas técnicas, elevaria o risco para investidores e faria o país dar vários passos para trás na relação entre Estado, consumidores e empresários. A recém-empossada Câmara dos Deputados precisa derrubá-las.
A criação de agências reguladoras
independentes ganhou fôlego no Brasil a partir da década de 1990. Contando com
áreas técnicas, passaram a ter duas missões: criar regras específicas de
regulação para cada setor e fiscalizar seu cumprimento. Nesses mais de 20 anos,
o saldo é sobejamente positivo. Mesmo que elas tenham sofrido todo tipo de
pressão de diferentes governos e lobbies de toda sorte, são inequívocos os
benefícios desse modelo. O mais marcante nos últimos tempos foi a resistência
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aos ataques do então
presidente Jair Bolsonaro às vacinas e às medidas de controle da pandemia.
Em 1º de janeiro, o governo federal
promoveu a reorganização dos ministérios com a MP 1.154/2023, que ainda precisa
ser votada no Congresso antes que expire o prazo de 120 dias. Interessado em
enfraquecer o poder das agências, Forte vinha tentado promover mudanças por
meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Como não obteve assinaturas
suficientes na legislatura anterior, aproveitou a MP para apresentar sua emenda
sem cabimento. Forte gosta de falar em nome de empreendedores, mas a maioria
das empresas hoje reguladas pelas agências apoia a independência.
Os alvos da tentativa estão explícitos no
texto da emenda: Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Agência Nacional
de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional do Petróleo (ANP), Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico
(ANA), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de
Transportes Aquaviários (Antaq), Agência Nacional do Cinema (Ancine), Agência
Nacional da Aviação Civil (Anac), Agência Nacional de Mineração (ANM) e Anvisa.
Pela proposta de Forte, o poder de todos
esses órgãos seria esvaziado. As regras passariam a ser determinadas por
representantes do ministério e do setor correspondente à área de atuação, da
academia, dos consumidores, e da própria agência. Os efeitos do novo arranjo
são previsíveis. Ele acabaria com decisões técnicas e abriria a porteira para
todo tipo de desmando político e aumento de subsídios a empresários amigos do
governo. “Se aprovadas, as emendas provocarão um grave aumento do risco
regulatório, com consequências negativas tanto para consumidores como para as
empresas”, afirma o engenheiro Edvaldo Santana, ex-professor da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) e ex-diretor da Aneel. O Congresso não pode
permitir que o país sofra tamanho retrocesso.
Levantamento revela descaso das plataformas
digitais com golpismo
O Globo
Pesquisadores identificaram pelo menos 185
anúncios de teor golpista no Facebook e no Instagram
A despeito da reação firme das instituições
e da sociedade aos atos antidemocráticos e ao vandalismo do 8 de Janeiro, a
desinformação ainda corre solta nas redes. A Meta, dona do Facebook, do
Instagram e do WhatsApp, autorizou, entre novembro de 2022 e janeiro deste ano,
a veiculação de pelo menos 185 anúncios de teor golpista em suas plataformas. O
levantamento, feito pelo NetLab, laboratório ligado à Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi divulgado pelo Fantástico e também
obtido pelo GLOBO.
Os anúncios propagam as costumeiras
mentiras e teorias da conspiração. Contestam a vitória do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, levantam dúvidas sobre as urnas eletrônicas, pedem
intervenção militar e convocam ou incentivam acampamentos golpistas em frente
aos quartéis (desmobilizados apenas depois de 8 de janeiro). As peças foram
veiculadas por 124 anunciantes, quase todos de pequeno porte. Uma minoria reúne
políticos, empresas e líderes ou instituições religiosas. Do total de anúncios
golpistas, apenas 21 foram removidos pela Meta (depois do 8 de Janeiro, o
conglomerado anunciou que bloquearia conteúdos de apoio às invasões).
Os pesquisadores responsáveis pelo
levantamento dizem que as autoridades brasileiras precisam discutir a criação
de regras de publicidade e a definição de parâmetros para as plataformas, na
medida em que não há transparência na moderação, e não fica claro se a Meta
está se empenhando para combater os anúncios golpistas.
Ainda que não seja um número expressivo no
universo da empresa, os anúncios golpistas levantam mais uma vez a necessidade
de discutir de forma sensata regras para as plataformas digitais. O governo
Lula tem batido na tecla do combate à desinformação, mas as medidas cogitadas
até agora para a alegada “defesa da democracia” correm o risco de resvalar para
abusos ou mesmo para a censura. Não adianta trocar um problema por outro. É
preciso buscar o delicado equilíbrio entre a proteção à liberdade de expressão
e a punição a atos criminosos que atentam contra as leis e a Constituição.
O melhor seria fazer avançar no Congresso o
Projeto de Lei 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, que já passou por
mais de 30 audiências públicas. Entre outros pontos positivos, ele exige que as
plataformas adotem políticas públicas e transparentes para moderação de
conteúdo, assumindo parte da responsabilidade pela publicação. No ambiente
digital, não se pode ficar à mercê da lentidão de decisões da Justiça, como
tantas vezes acontece. Moderar conteúdo não é papel das Cortes, muito menos de
governos, por mais bem-intencionados que sejam. Tão importante quanto regular a
atuação das plataformas é preservar a liberdade de opinião.
É preciso mais que orçamento para alavancar
o ensino técnico
Valor Econômico
Alunos do ensino técnico profissionalizante
se saem melhor do que os que frequentaram o ensino médio regular
A defesa do ensino técnico
profissionalizante é uma constante no discurso oficial. O tema fez parte das
promessas de campanha dos principais candidatos nas últimas eleições
presidenciais, do vencedor Lula a Jair Bolsonaro, passando por Simone Tebet e
Ciro Gomes. Apesar disso, o dinheiro do orçamento da Educação destinado ao ensino
técnico vem diminuindo. Também as matrículas nos cursos técnicos caíram no
levantamento mais recente disponível, de 2021, na véspera da entrada em vigor
da reforma do Ensino Médio, que tem como uma das vertentes exatamente estimular
a educação profissionalizante.
Pesquisa do Itaú Educação e Trabalho
constatou que o ensino técnico perde participação no orçamento do Ministério da
Educação e Cultura (MEC) desde 2016, o que contraria as gestões dos
ex-presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro, que diziam incentivar o
aprendizado especializado para estimular a produtividade e a empregabilidade da
população, beneficiando, em consequência, a economia. No fim da década passada,
o ensino técnico tinha uma fatia de 11% do orçamento da Educação. O percentual
caiu para 10% no início desta década, e para 9% no orçamento deste ano, ou
seja, para R$ 14,9 bilhões em um total de R$ 158,9 bilhões. A PEC da Transição
abriu espaço para gastos maiores, mas ainda não está definido se o ensino
técnico será beneficiado.
A perda de espaço no orçamento ocorre no
momento em que a reforma do Ensino Médio começa a ser implantada, com a oferta
de opções de itinerários para os estudantes, entre eles o de formação técnica e
profissional, e de estudo em período integral, o que vai exigir esforço
adicional das escolas estaduais em todo o país. Não é por outro motivo que a
contribuição obrigatória da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica (Fundeb) vai subir de 10% para 21%.
Alguns Estados estão mais bem preparados,
como São Paulo, mas ainda assim apresentam carências. A rede paulista de ensino
em tempo integral foi quintuplicada na gestão de João Doria e Rodrigo Garcia
(PSDB), chegando a 2.311 unidades neste ano. Nem sempre a estrutura já está
adequada e podem faltar professores. O governo de Tarcísio de Freitas pretende
resolver as deficiências e incentivar o ensino profissionalizante. O novo
governo trabalha para que metade das matrículas do ensino médio sejam
direcionadas ao ensino profissionalizante no próximo ano. Atualmente, só 10,6%
dos alunos da rede estadual estão em cursos técnicos, ou cerca de 143,8 mil
entre 1,35 milhão de estudantes. Currículos com aulas de programação e educação
financeira estão entre os projetos para atrair os jovens paulistas para o ensino
profissionalizante.
Iniciativas desse tipo são importantes uma
vez que dados mais recentes da Diretoria de Estatísticas Educacionais (Deed) do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)
mostram a queda das matrículas no ensino profissionalizante. De 1,936 milhão de
estudantes em 2020 passaram a 1,892 milhão em 2021, uma redução de 2,3%, o
menor patamar desde 2017.
Diante desses números parece inviável
atingir a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de chegar perto de 5 milhões
de matrículas no ensino técnico profissionalizante até o próximo ano. O
objetivo foi traçado na década passada, quando o ensino técnico se mostrava
mais promissor e deu um salto de 36% em quatro anos, partindo de 1,361 milhão
de matrículas em 2010. Agora, tornou-se irrealista: desde 2014, os números
parecem estagnados.
Para os padrões internacionais, é baixo o
percentual de estudantes brasileiros que concluem o ensino médio com formação
técnica. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), em 2021, só 9% obtiveram diploma técnico em comparação com 38% da média
dos demais países do grupo. Em algumas nações como Alemanha e Suíça, o
percentual é ainda mais elevado e chega a dois terços.
Os especialistas precisam se debruçar sobre
o problema que certamente vai além do orçamento baixo. De um lado, dados do
Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2021 elaborados pela
plataforma QEdu, mostram que os alunos do ensino técnico profissionalizante se
saem melhor do que os que frequentaram o ensino médio regular: em língua
portuguesa, 57% atingem nível considerado adequado em comparação com 31,3%; e
em matemática, 17,9% frente a 5%.
Ouro ilegal
Folha de S. Paulo
Governo e Congresso precisam rever
regulação que facilita o garimpo clandestino
É fato que o debate sobre a lavra
garimpeira em terras indígenas e áreas de preservação ambiental sofreu
retrocessos nos quatro anos de Jair Bolsonaro (PL). No entanto também é fato
que a procrastinação no combate ao avanço da atividade na região amazônica
precede o governo anterior.
O controle
dessa extração é negligenciado há décadas, inclusive pelos estados
que, não raro, emitem leis regionais a favor de garimpeiros —o que conflita com
a Constituição, dado que invadem áreas sob a esfera federal.
Pesquisas indicam que ao menos 30% do ouro
brasileiro apresenta indícios de irregularidades e boa parte sai das terras de
povos como areõe, xikrin, kayapó, kayabi, além dos yanomamis.
Combater o desastre da extração de minério
ilegal tornou-se uma urgência humanitária apenas quando veio a público a
tragédia dos yanomamis —ilhados em suas próprias terras, sem pesca, sem caça,
contaminados por mercúrio e sucessivos surtos de malária, alvos de violência
física e sexual.
Contudo, além de apoiar os indígenas,
retirar os garimpeiros e adotar procedimentos para recuperar o território
arrasado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) precisa ser ágil na
mudança do arcabouço institucional que favorece a legalização e garante os
ganhos desse ouro ilegal.
Não há negócio, lícito ou ilícito, que
persista sem lucros, e a facilidade
para "esquentar" o ouro do garimpo ilegal incentiva o crime,
como sustentam especialistas.
Aponta-se que a Receita Federal, órgão
ligado ao Executivo, preserva há mais de 20 anos uma instrução normativa que
prevê nota fiscal de papel no trânsito do ouro como ativo financeiro. Essa
medida pode estimular fraudes e lavagem de dinheiro, além de prejudicar a
fiscalização da origem do metal e as investigações da Polícia Federal.
A Lei 12.844, sancionada em 2013, instituiu
a declaração de boa-fé na venda do ouro de garimpo para instituições
financeiras, o que, de acordo com estudiosos, gera proteção para quem compra o
metal de origem suspeita.
Esse instrumento dificultaria ainda a ação
do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários contra distribuidoras de
títulos e valores mobiliários acusadas de conivência com garimpeiros.
O Legislativo tem os meios para modernizar
as normas legais dessa atividade. Há projetos em tramitação na Câmara dos
Deputados e no Senado que buscam o ambiente regulatório para instituir a
rastreabilidade do ouro.
No mínimo, os textos propiciam a
oportunidade para discussão aprofundada e entendimento político em torno do
tema, fundamental para o futuro dos yanomamis.
Sarrafo paulistano
Folha de S. Paulo
Com folga de caixa, Nunes deve ser cobrado
por melhoras, a começar na zeladoria
A maior metrópole do país é um notório
moedor de reputações políticas e administrativas. Desde a redemocratização, os
moradores de São Paulo nunca elegeram duas vezes um mesmo prefeito, tendo
experimentado opções à direita, à esquerda e ao centro político.
Tampouco puderam ver grandes avanços
no enfrentamento
de mazelas que afligem a cidade há décadas, casos do trânsito
caótico, da escassez de moradias, da população de rua, da vulnerabilidade a
enchentes e até das deficiências na zeladoria —para nem falar de carências em
educação e saúde, que não são peculiaridades paulistanas.
Por muito tempo se atribuiu o desmazelo ao
exorbitante endividamento do município, herança das gestões de Paulo Maluf
(1993-96) e Celso Pitta (1997-2000), que travava o acesso ao crédito e consumia
parcela expressiva do Orçamento com juros e amortização.
Entretanto uma renegociação obtida por
Fernando Haddad (PT) em 2015, com apoio do governo da correligionária Dilma Rousseff,
reduziu consideravelmente as despesas financeiras locais.
O problema ali passava a ser a crise fiscal
produzida por Dilma, que levou o país a recessão profunda seguida por anos de
quase paralisia —e os entes federativos sofreram tais efeitos na arrecadação.
Dado esse contexto, a situação da
prefeitura hoje pode ser considerada das mais favoráveis. O auxílio federal
recebido durante a pandemia e a expansão da economia e das receitas nos últimos
dois anos fortaleceram os cofres municipais.
Eles receberam R$ 85,8 bilhões no ano
passado, num salto de 17,2% ante os R$ 73,2 bilhões, em valores corrigidos, de
2019, último exercício antes da crise sanitária.
No entanto os resultados desse incremento
portentoso não parecem claros sob o prefeito Ricardo Nunes (MDB), cuja gestão
ainda não dispõe de uma marca clara.
De mais visível no cotidiano dos
paulistanos, a zeladoria permanece motivo de queixas aos milhares —mais
precisamente, 1.221 feitas
por dia em razão de lixo, calçadas e pistas, em média, entre janeiro e setembro
de 2022, acima das 1.044 no período correspondente de 2021, como
noticiou a Folha.
Não se desconhece a complexidade de gerir
uma metrópole de desequilíbrios históricos e superlativos. Todavia inexistem,
no momento, desculpas para a escassez de melhorias. Ainda que possa se mostrar
fugaz, a folga orçamentária precisa ser aproveitada.
Um combate em várias frentes na Amazônia
O Estado de S. Paulo.
Sem prejuízo da responsabilização do
governo Bolsonaro pela crise Yanomami, a sociedade e o Estado brasileiros
precisam aprofundar o debate sobre o ecossistema do crime na Amazônia
Sem dúvida, cabe ao governo de Jair
Bolsonaro a maior parcela de responsabilidade pelo recente aumento exponencial
dos crimes na Amazônia, dos quais a tragédia Yanomami é a consequência mais
desumana. Além do desmonte dos órgãos de fiscalização e repressão, ele ignorou
dezenas de alertas do Ministério Público sobre a calamidade dos Yanomamis e
determinações do Supremo Tribunal Federal visando à expulsão de garimpeiros e
madeireiros ilegais e à prestação de segurança sanitária e alimentar. Com boas
razões, a Corte determinou a investigação de possível participação de
autoridades do governo Bolsonaro no crime de genocídio.
Mas, sem prejuízo desses inquéritos e suas
consequências, a solução do problema exige confrontá-lo em toda a sua extensão
e complexidade. A crise foi acentuada por Bolsonaro, mas ela já vinha se
avolumando bem antes.
Segundo estudo publicado na revista Remote
Sensing por pesquisadores do Inpe, da Embrapa e da Universidade do Alabama, o
garimpo ilegal em territórios indígenas, por exemplo, cresceu 1.271% entre 1985
e 2020. Em 2010 ele atingia cerca de 20 km² desses territórios; em 2019, eram
mais de 100 km². Quase toda essa atividade está concentrada em reservas de três
etnias: Kayapó, Munduruku e Yanomami.
O garimpo ilegal, praticamente todo voltado
ao ouro, tem impacto na contaminação dos rios com mercúrio, na fuga de animais
que alimentam a população local, na destruição de suas roças e na infecção de
doenças trazidas pelos garimpeiros, e está imbricado a um vasto ecossistema do
crime, que envolve lavagem de dinheiro, grilagem, prostituição, contrabando e
narcotráfico.
Como disse o ministro do STF Gilmar Mendes sobre
os Yanomamis, “é uma tragédia muito grande para acreditarmos que foi
improvisada”. Da mesma forma, o seu enfrentamento deve se dar em camadas, desde
as ações voltadas às calamidades mais pontuais e urgentes até as mais
sistêmicas e crônicas.
De imediato, é preciso restabelecer a
assistência humanitária, especialmente alimentar e sanitária. As ações do atual
governo para reprimir o garimpo ilegal mostram que, quando o Estado quer,
produz impactos imediatos: dezenas de comboios com garimpeiros já estão deixando
a área. Mas é importante não substituir um problema por outro. Há o risco, por
exemplo, de que essa evacuação gere a ocupação de outras áreas de garimpo
ilegal, como a reserva Raposa Serra do Sol.
Vale lembrar que a esmagadora maioria dos
garimpeiros, muitos deles indígenas, é de miseráveis, sem educação ou saúde,
que buscam a sobrevivência de suas famílias. É preciso pensar em maneiras de
tirá-los da ilegalidade. Isso passa, por exemplo, por um debate aprofundado
sobre o artigo 174 da Constituição, que prevê que o Estado “favorecerá a
organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a
proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros”.
Mas é preciso separar o joio do trigo. Como
em tantos outros atentados do governo Bolsonaro à Constituição, suas medidas em
relação ao garimpo, antes que promover, em interlocução com os indígenas, as
condições legais e materiais para um garimpo sustentável, só buscaram
descriminalizar, à revelia dessas comunidades, o garimpo predatório.
Coletando as melhores recomendações de
ambientalistas, indigenistas e especialistas em segurança, os autores do estudo
na Remote Sensing apontaram quatro medidas urgentes para conservar a floresta e
os territórios indígenas: (i) restaurar as políticas de repressão ao desmate
ilegal; (ii) melhorar iniciativas de mercado contra produtos de áreas
ilegalmente exploradas; (iii) promover campanhas de conscientização; e (iv)
financiar atividades econômicas nas florestas. Está cada vez mais bem
documentado que Bolsonaro fez o exato oposto de tudo isso. Por isso, é preciso
que ele seja responsabilizado por ações e omissões que agravaram a crise na
Amazônia a ponto de haver suspeita de genocídio, mas isso não significa que a
sociedade brasileira como um todo não precise assumir suas responsabilidades e
remediar séculos de descaso com a Amazônia e suas comunidades.
A farra dos ex-ministros
O Estado de S. Paulo.
Ao liberar o trabalho imediato de
ex-ministros em situações de evidente conflito de interesse, Comissão de Ética
nomeada por Bolsonaro mostra indiferença com o interesse público
A decisão da Comissão de Ética Pública da
Presidência da República de liberar ministros do governo anterior para
exercerem de imediato atividades na iniciativa privada expressa bem a ligeireza
com que o bolsonarismo trata questões relativas a conflitos de interesse.
Vislumbra-se grave confusão entre o público e o privado, que, longe de ser um assunto
meramente teórico, representa descuido do Estado e da sua capacidade de atender
ao interesse público. É o antiliberalismo em sua essência.
Segundo informou o Estadão, a Comissão de
Ética, formada exclusivamente por indicados pelo então presidente Jair
Bolsonaro, liberou da quarentena o ex-deputado Fábio Faria, que chefiava o
Ministério das Comunicações, e Bruno Bianco, ex-advogadogeral da União. Os dois
vão trabalhar no BTG Pactual. Consta que Fábio Faria irá para a área de
Relações Institucionais. O banco é o principal acionista da V.tal, empresa de
fibra óptica que detém a maior rede neutra do País e realiza negócios com
grandes empresas de telecomunicações, como a TIM e a Oi. Na avaliação da
Comissão de Ética, Fábio Faria não poderia trabalhar imediatamente apenas em
empresas de telecomunicação e de radiodifusão. No caso de Bruno Bianco, o
colegiado liberou o trabalho no banco sob a condição de “se abster, a qualquer
tempo, de fazer uso de informação privilegiada”.
Marcelo Sampaio, ex-ministro da Infraestrutura,
também foi liberado para trabalho imediato na iniciativa privada. Segundo o
jornal apurou, foi convidado para trabalhar na Vale. No caso de Marcelo
Sampaio, a Comissão de Ética admitiu que o ex-ministro da Infraestrutura teve
“informações privilegiadas”, mas o liberava da quarentena sob o argumento de
que haveria “impedimento do consulente a qualquer tempo, e não apenas nos seis
meses posteriores ao desligamento do cargo público, de divulgar ou fazer uso de
informações privilegiadas”.
Essas liberações imediatas são bastante
questionáveis, em uma interpretação tão ampla da Lei 12.813/2013 que contrariam
o propósito da própria lei – que dispõe sobre conflito de interesses e
impedimentos posteriores ao exercício do cargo no Executivo federal. Segundo
essa lei, a Comissão de Ética pode dispensar o cumprimento de período de
impedimento somente se “verificada a inexistência de conflito de interesses ou
sua irrelevância”. Não parece ser o caso das três liberações.
Ao mesmo tempo, a Comissão de Ética entendeu
que dez ex-ministros do governo Bolsonaro, mesmo sem apresentarem proposta
concreta de novo emprego, poderão continuar recebendo os respectivos salários
até o final do primeiro semestre. Ao que parece, o colegiado vê a quarentena
remunerada como uma espécie de benefício privado para quem passou por um cargo
público, e não uma proteção do Estado, para assegurar que pessoas com
informação privilegiada não trabalhem de imediato em áreas com potencial
conflito de interesse.
Criada durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso, a quarentena para ministros e autoridades do segundo escalão,
incluindo diretores de empresas públicas, fundações e autarquias, foi um
importante avanço institucional, como medida de proteção do interesse público.
Titulares de cargos de confiança que deixam o governo passaram a ter de esperar
por quatro meses – depois, o prazo foi ampliado para seis meses – antes de
aceitarem empregos na iniciativa privada na área de atuação. No período, os
profissionais continuam vinculados ao órgão em que estavam lotados e recebem um
salário compensatório equivalente ao que tinham no exercício da antiga função.
Nas decisões da Comissão de Ética Pública
da Presidência da República liberando o trabalho imediato, em vez da proteção
da moralidade pública e da aplicação rigorosa da lei, há uma contundente defesa
dos interesses das pessoas que estavam nos cargos públicos. Em vez de servir ao
público, o Estado fica refém do privado. É mais um aspecto da destruição do
Estado operada pelo bolsonarismo, cujo apregoado “liberalismo” não passava de
lorota.
Liberdade só para a patota
O Estado de S. Paulo.
Cassação de vereadora revela que, para o
bolsonarismo, só bolsonaristas têm liberdade irrestrita
A Câmara de São Miguel do Oeste (SC), por
10 votos a 1, cassou o mandato da vereadora Maria Tereza Capra (PT) porque a
parlamentar denunciou que um grupo de munícipes bolsonaristas teria feito uma
“saudação nazista” em frente a um quartel do Exército, pouco depois da derrota
eleitoral do então presidente Jair Bolsonaro para o petista Lula da Silva.
Ou seja: a Câmara de São Miguel do Oeste
achou que era o caso de punir com nada menos que a perda do mandato uma
parlamentar que exerceu seu direito de expressar indignação com aquele gesto
que lhe pareceu infame. Para o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, a
vereadora petista “propagou notícia falsa”, além de “atribuir aos cidadãos de
Santa Catarina e ao município de São Miguel do Oeste o crime de fazer saudação
nazista e de ser berço de uma célula neonazista”.
Numa cidade que votou em peso em Bolsonaro
(foram 65% no segundo turno), presume-se que não seja nada popular denunciar
como simpatizantes do nazismo os inconformados com a derrota de seu “mito”. Daí
a cassar um mandato conferido pelo voto direto, que é o castigo mais
significativo que um parlamentar pode sofrer, vai uma imensa distância.
É um caso exemplar do duplo padrão moral
bolsonarista: os mesmos campeões da liberdade de expressão, que denunciam a
“ditadura” do Judiciário quando este procura pôr cobro aos abusos e crimes que
cometem nas redes sociais, são aqueles que, sem mais nem menos, decidem que uma
vereadora não pode falar o que pensa – a despeito de a inviolabilidade dos
vereadores por suas opiniões e palavras ser garantida pelo artigo 29, inciso
VIII, da Constituição.
O fato é que a saudação dos bolsonaristas,
registrada em vídeos que circularam amplamente por meio das redes sociais, é
tão semelhante ao infame sieg heil nazista que as embaixadas da Alemanha e de
Israel no Brasil e o Museu do Holocausto sentiram-se compelidos a repudiar
aquela manifestação.
No frigir dos ovos, é irrelevante a
interpretação que se faça daquela saudação. O que importa é notar a falácia do
discurso bolsonarista sobre liberdade de expressão. Em nome de uma suposta
defesa de uma garantia fundamental consagrada pela Constituição, tanto Bolsonaro
como parlamentares bolsonaristas e um séquito de apoiadores já disseram, nos
mais diversos meios, as maiores barbaridades.
Nessa visão absolutamente deturpada da
garantia constitucional, decerto os insultos e ameaças de morte recebidos por
Maria Tereza Capra e por outras duas vereadoras catarinenses não seriam mais do
que o exercício do direito à manifestação de “opinião” ou das prerrogativas do
mandato parlamentar. No mesmo sentido, acampar diante de quartéis para pedir um
golpe militar e ameaçar o presidente da República, ministros do Supremo
Tribunal Federal e seus familiares também seriam “livres manifestações”
cobertas pelas “quatro linhas” da Constituição.
O episódio de São Miguel do Oeste resume,
portanto, o espírito do bolsonarismo: em nome da “liberdade de expressão”, o
que esses liberticidas reivindicam é o monopólio da irresponsabilidade.
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