A Terra é Redonda
Apresentação à nova edição brasileira do livro
de Jürgen Habermas.
Publicado em 1983, pouco depois da Teoria da ação comunicativa, o
presente livro de Jürgen Habermas, Consciência
moral e ação comunicativa, contém, além de artigos que defendem e
ilustram o trabalho das ciências reconstrutivas, o importante texto que assenta
as bases teóricas da ética do discurso. Dedicado a Karl Otto Apel, o livro é
composto de quatro artigos.
Os dois primeiros, mais breves, baseiam se em palestras proferidas nos dois anos anteriores: o primeiro deles, “A filosofia como guardador de lugar e intérprete”, expõe a proposta de uma divisão de trabalho entre pesquisas empíricas e filosóficas inspiradas na epistemologia genética de Jean Piaget; o segundo, “Ciências sociais reconstrutivas versus compreensivas”, toma como modelo a teoria moral de Lawrence Kohlberg para esclarecer a interpenetração entre as explicações causais e as hipóteses reconstrutivas.
Os artigos terceiro e quarto são os mais ambiciosos, e volumosos, do livro: o longo ensaio no qual expõe o programa de fundamentação da ética do discurso, “Ética do discurso: notas para um programa de fundamentação”, e o outro extenso ensaio, que dá título ao livro, “Consciência moral e ação comunicativa”, no qual Jürgen Habermas tenta levar à prática a divisão de trabalho recomendada entre pesquisa empírica e filosófica com a teoria do desenvolvimento da consciência moral de Lawrence Kohlberg. Assim, as duas tarefas centrais do livro consistem em, de um lado, caracterizar e encaminhar o trabalho a ser realizado pelas ciências reconstrutivas e, de outro, assentar as bases de uma nova ciência reconstrutiva muito importante: a ética do discurso.
A ética do discurso – afirma Jürgen
Habermas neste livro que estamos apresentando – “remete a (e é ela própria dependente
de) uma teoria da ação comunicativa” (p.214). O mesmo acontece com as mais
importantes ciências reconstrutivas que tentam desvendar as estruturas
universais da comunicação linguística ou de outras competências humanas.
Contudo, embora as ciências reconstrutivas estejam especialmente ligadas ao
conceito de ação comunicativa, o papel delas não foi explicitamente
desenvolvido na Teoria
da ação comunicativa publicada dois anos antes. Nela aparecem,
sim, desenvolvimentos da ciência reconstrutiva mais importante até então, a
pragmática universal, mas estão intercalados nas partes do livro chamadas de
“Considerações intermediárias”, sempre em forma de esboço e sob reserva de
análises mais aprofundadas.
De certo modo, Habermas constrói a teoria
da ação comunicativa pressupondo desenvolvimentos a serem realizados pelas
ciências reconstrutivas, desenvolvimentos estes que acabaram não sendo
realizados de forma completa nem por Jürgen Habermas nem por outros autores.
Temos que reconhecer, nesse sentido, a admirável capacidade de nosso autor de
construir teoria pressupondo programas inteiros de pesquisa ainda a ser
desenvolvidos.
O fato é que, nessa coletânea de 1983, e
ainda na esteira da Teoria
da ação comunicativa, aparecem as teses mais fortes e ambiciosas
sobre o papel que devem desempenhar as ciências reconstrutivas, visto ainda
como promissor. Sabemos hoje que o destino dessas ciências não foi o esperado.
Há, contudo, uma exceção. A ética do discurso foi a única parte do amplo
projeto das ciências reconstrutivas na qual Habermas continuou trabalhando, e
foi a revisão das teses ali originalmente defendidas que levou o autor à nova
etapa que se inicia com a publicação de Facticidade
e validade. Não por acaso, o livro Consciência moral e ação comunicativa costuma ser
lembrado pelo ensaio seminal dedicado ao programa de fundamentação da ética do
discurso.
Em certo sentido, as vicissitudes da ética
do discurso nos fornecem o fio condutor para entender o desenvolvimento de toda
a teoria posterior de Habermas sobre o direito e a democracia. Parece oportuno
lembrar as teses originais e algumas balizas do longo percurso iniciado nesse livro
de 1983.
A ética do discurso
Vale lembrar os principais passos teóricos
que conduzem à fundamentação da ética do discurso, tal como exposta no livro de
1983:
– A investigação que conduz à ética do
discurso tem como ponto de partida uma análise de tipos de ações sociais na
qual se mostra que o agir social não pode ser concebido como uma interação
estratégica, sendo, na verdade, uma ação orientada para o entendimento, ou
comunicativa, em que os atores se orientam por pretensões de validade ligadas
aos atos de fala. Esse passo depende, por sua vez, de uma análise do uso
comunicativo da linguagem. A ideia central é que a comunicação linguística não
pode ser modelada instrumentalmente. A linguagem não pode ser entendida apenas
como um instrumento. A linguagem usada comunicativamente impõe-nos obrigações
que não seriam apenas ilocucionárias, mas vinculadas à ação (p.59 ss.).
– Nesse passo, uma ciência reconstrutiva, a
pragmática universal (ou “teoria do significado pragmático formal”), desempenha
a tarefa de explicar o significado das pretensões de validade normativas (em
analogia com as pretensões de verdade), apelando para seu resgate ou resolução
discursiva. As pretensões de validade normativa erguidas na ação comunicativa,
quando questionadas, levam a um tipo de interação mais exigente, que consiste
exclusivamente na troca de argumentos: o discurso prático (p.68 ss.).
– Chega se assim à teoria da argumentação
moral – ou lógica do discurso prático. Por “discurso prático”, no singular,
entende se, neste momento, uma forma de argumentação moral que visa provar a
validade de normas em geral, sejam morais ou jurídicas. Jürgen Habermas ainda
não havia elaborado uma distinção entre diferentes tipos de discurso. Nesse
contexto, postula se o princípio de universalização (“U”), entendido como uma
regra da argumentação que permite chegar a um acordo simétrico sobre a validade
moral das normas. O ponto de vista moral é algo que está incorporado no
procedimento de uma argumentação conduzida intersubjetivamente (p.112 ss.).
– O passo seguinte é a prova de “U”. É
nesse ponto que Jürgen Habermas usa o argumento pragmático transcendental
baseado em contradições performativas, interpretando o como uma prova empírica
no sentido das ciências reconstrutivas. Todos os que entram em argumentações
têm que fazer pressuposições pragmáticas gerais (iguais direitos de
participação, veracidade, ausência de coerção etc.). Além do mais, todos têm um
saber intuitivo a respeito de como justificamos maneiras de agir (ou normas que
a elas subjazem). Disso se segue que todos os que entram em argumentações
aceitam “U” (p.167 ss.).
A ética do discurso é, sem dúvida, uma
teoria moral muito peculiar. Além de se autocompreender como uma ciência
reconstrutiva, nela desempenha um papel central a teoria da ação comunicativa.
O ponto de partida para sua fundamentação é uma teoria da ação social, e o
ponto de chegada, uma teoria da argumentação moral. Como vimos, o primeiro
passo é mostrar que a ação social não é apropriadamente concebida como uma
interação estratégica, mas como uma ação orientada por pretensões de validade,
que as pretensões de validade normativas estão implícitas nas ações sociais e
necessariamente apontam para uma resolução discursiva; depois, o argumento
pragmático transcendental pode “provar” “U” como uma regra da argumentação dos
discursos práticos.
Mas não pode prová-lo apenas pressupondo
regras argumentativas. É necessário que o destinatário do argumento já tenha
sido socializado, saiba o que significa ter obrigações morais e possa vincular
esse saber às obrigações argumentativas. Apenas se essas condições estiverem
dadas, ao participar em um discurso moral, poderá aceitar a exigência de
considerar imparcialmente os interesses de todos e adotar uma atitude
autocrítica com respeito a seus próprios interesses. Nessa concepção de ética,
a força da obrigação moral provém das normas que são introduzidas nos discursos
prático morais pelo fato de elas terem se tornado problemáticas. O dever moral
está, para Jürgen Habermas, nas normas moralmente vinculantes que operam como
mecanismo para coordenar as interações no mundo da vida. São essas normas
sociais que podemos examinar criticamente e justificar do ponto de vista moral
no discurso prático.
A ética do discurso é uma teoria moral
baseada numa concepção fortemente “normativista” da justificação moral. Nela se
pressupõe que nas controvérsias morais cotidianas as pessoas discutem – no
chamado “discurso prático – primariamente sobre a validade de normas, e não
sobre a validade de maneiras de agir na situação à luz de normas. Trata se de
uma teoria moral não substantiva, mas sim procedimental, centrada na questão
da justiça das normas sociais, uma teoria que, no que concerne à
fundamentação moral, coloca em segundo plano, portanto, qualquer questão sobre
a “vida boa”. Nas palavras de Habermas: “o princípio de universalização
funciona como uma lâmina que faz um corte entre ‘o bom’ e ‘o justo’ […]”
(p.185).
O projeto reconstrutivo que ilumina a
fundamentação de uma ética do discurso também inclui a tentativa de exposição e
análise da gênese do ponto de vista moral explicitado na forma do princípio
moral “U”. Ou seja, segundo Jürgen Habermas, “o princípio de universalização
[…] deixa se compreender como uma reconstrução daquelas intuições cotidianas
que são subjacentes à avaliação imparcial de conflitos de ação morais” (p.193).
A reconstrução dessas intuições cotidianas é investigada por Habermas com base
na teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg. Trata se de entender
que o ponto de vista moral universalista, pressuposto em sociedades pós
tradicionais, é na verdade resultado de um processo individual e coletivo da
consciência moral.
Jürgen Habermas se interessa em compreender
os diferentes “estágios da consciência moral” estudados por Kohlberg que
conduzem de uma perspectiva mais particularizada e contextualizada em direção a
uma perspectiva (moral) descentrada e universal, na qual os indivíduos adquirem
a capacidade de agir moralmente, isto é, agir levando em consideração os
interesses simétricos de todos os outros concernidos.
Nesse sentido, pode se dizer que os dois
últimos ensaios do livro se complementam de maneira bastante estreita: no
primeiro deles, a ética do discurso é fundamentada a partir das pressuposições
pragmáticas da argumentação em geral; no texto final, o princípio moral “U” é
investigado como ponto de chegada, por assim dizer, de um complexo processo de
formação da consciência moral. Importa a Jürgen Habermas apresentar, assim, a
lógica de desenvolvimento pressuposta na teoria moral universalista, ou seja,
elaborar uma reconstrução dos estágios da consciência moral.
Como foi dito, várias das teses dessa
versão da ética do discurso de 1983 tiveram que ser atenuadas ou modificadas.
Foram essas modificações que levaram a uma
teoria do discurso voltada a incorporar a dimensão do direito e da democracia,
teoria que foi fundamentada em seu livro Facticidade e validade, e que exerce grande influência
até hoje.
Da ética do discurso à teoria do discurso
Em 1989, Jürgen Habermas visitou o Brasil,
dando conferências em Porto Alegre, São Paulo e no Rio de Janeiro. Uma das
conferências proferidas tinha por título “Sobre o uso pragmático, ético e moral
da razão prática”. Nela é introduzida uma grande mudança. Jürgen Habermas já
não fala em “discurso prático”, no singular, mas em três diferentes discursos
ou usos da razão prática.
A pergunta “o que devo (racionalmente)
fazer?” pode ter diferentes sentidos. Um é o sentido básico de dever escolher o
melhor meio para um fim. Esse uso da razão é chamado por Jürgen Habermas de
pragmático. A pergunta pelo que devo fazer adquire um outro sentido quando está
ligada à compreensão que uma pessoa tem de sua própria vida. Que eu deva ou não
fazer algo, nesse sentido, depende dos valores aos quais adiro. Esse uso da
razão, que compreende a identidade da pessoa, e por isso aparece
gramaticalmente apenas em primeira pessoa, é chamado de discurso ético. Quando
usado na primeira pessoa do plural, trata-se de um discurso ético-político. O
terceiro uso é o moral.
Quando a pergunta pelo que devo fazer
adquire um sentido moral, ela já não pode ser associada a nenhum dos sentidos
de bom. Não se trata de dever fazer algo porque é bom para um fim, nem de dever
fazer algo porque é bom para mim ou para nós. Trata-se de dever fazer algo
porque é justo. As questões de justiça, por seu próprio sentido, nos levam além
do horizonte de uma forma de vida.
Nessa diferenciação de discursos, a razão
prática se desagrega nos aspectos do adequado para um fim, do bom e do justo.
Dada a existência de discursos, no plural, a grande questão que se coloca é se
existe alguma hierarquia entre eles. Há uma primazia do discurso moral? Pode
ainda se falar em razão prática no singular? A resposta de Jürgen Habermas, que
fica mais clara no último parágrafo da palestra quando esta foi publicada, é a
seguinte: “A teoria moral deve deixar esta pergunta em aberto para a filosofia
do direito. A unidade da razão prática só pode ser realizada de maneira
inequívoca em uma rede em que se façam valer formas públicas de comunicação e
práticas nas quais as condições de uma formação da vontade coletiva tenham
adquirido solidez institucional.
Essa grande mudança na concepção da razão
prática, essa passagem do que era “o” discurso prático para discursos, no
plural, e essa abertura a reconsiderar o papel do direito e da política nas
sociedades modernas foi, sem dúvida, influenciada por inúmeras críticas que
recebeu. Em minha opinião, foi Albrecht Wellmer quem melhor apontou para o
problema central que apresentava a versão da ética do discurso de 1983. Segundo
Albrecht Wellmer, nela se defendia uma concepção implausível de moral, porque
confundia questões de justiça com questões de legitimidade democrática. A ética
do discurso, apontava Albrecht Wellmer, não distinguia adequadamente moral e
direito:
A ligação do direito com a moral no
princípio U consegue-se ao preço de uma assimilação conceitual dos problemas
morais aos problemas jurídicos. No princípio U “misturam-se” um princípio moral
universalista com um princípio de legitimidade democrática, e isso ocorre de
uma maneira tão confusa que, no final das contas, não fica convincente nem como
princípio moral nem como princípio de legitimidade.
Em 1992, Habermas publica Facticidade e validade, o livro no
qual redefine por completo a arquitetura da teoria. O princípio moral de
universalização “U” já não aparece no topo da construção teórica, e também não
mais pretende ser um princípio de legitimidade. No topo da construção temos o
chamado princípio do discurso (D), que exprime a ideia de imparcialidade nos
juízos práticos, mas de maneira neutra, ainda indiferente à distinção entre
moral e direito. Ele tem de ser especificado em cada caso para que possa servir
de critério de correção, respectivamente, para as normas morais ou para as
normas jurídicas: no primeiro caso, adota a forma do princípio moral de
universalização “U”; no segundo, adota a forma do princípio da democracia.
Na passagem da ética do discurso para a
teoria do discurso, a razão prática, que na versão de 1983 já tinha deixado de
ser entendida como uma faculdade subjetiva para se tornar razão comunicativa,
encarna-se agora em instituições e processos políticos. Nessa nova
configuração, há uma nova compreensão da relação entre moral e direito. Não
apenas se evita a subordinação jusnaturalista do direito à moral, mas também se
recusa a tese positivista da separação completa entre direito e moral.
Uma compreensão adequada das condições da
vida social no Estado moderno exige levar a sério a separação entre moral e
direito como diferentes domínios de normas de ação, mas ao mesmo tempo dar
conta da relação que existe entre ambos os domínios. Não existe uma hierarquia
entre os discursos. As normas jurídicas podem ser justificadas por razões
pragmáticas, ético-políticas ou morais, em discursos ou negociações que
possamos presumir racionais.
Nesse livro de Habermas de 1983, há ideias
instigantes e poderosas. Algumas deram lugar a desdobramentos teóricos da maior
relevância para a discussão atual na filosofia moral e política, no direito e
nas ciências sociais, nas controvérsias acerca da justiça e da democracia ou
nos ricos debates levados a cabo pelo feminismo; outras, como apontamos aqui,
perderam força depois, sendo reatualizadas. Certamente a publicação desta
tradução de Consciência
moral e ação comunicativa estimulará uma retomada de pesquisas
que permitam resgatar a intenção das ciências reconstrutivas e, mais
especificamente, a própria ética do discurso.
*Marina Velasco é professora do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Referência
Jürgen Habermas. Consciência moral e ação comunicativa. Tradução: Rúrion Melo. São Paulo, Unesp, 2023, 312 págs.
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