terça-feira, 2 de maio de 2023

Míriam Leitão - Plataformas contra a lei

O Globo

O projeto ficou sob intenso ataque no final de semana, inclusive das plataformas digitais, e pode nem entrar em votação nesta terça-feira

O PL 2630 passou o fim de semana e o feriado sob ataque. Mas o pior deles foi o feito pelas plataformas, especialmente o Google. Fizeram anúncios contra, e até aí tudo bem, é do jogo democrático, mas bloquearam e reduziram o alcance dos perfis e dos posts que são a favor do projeto que regula a comunicação digital no Brasil, o chamado PL das Fake News.

– Isso é censura. É a plataforma decidindo o que vale e o que não vale no debate público na definição de uma política pública, no país que nem é o país-sede das plataformas. É abuso de poder – afirmou Nina Santos, especialista em comunicação digital, e representante da Sala de Articulação contra a Desinformação.

Doutora pela Universidade de Paris, Nina Santos faz pós-doutorado no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital e tem acompanhado em detalhes a tramitação do projeto da regulação das plataformas digitais. O alerta que ela faz contra a atitude de interferir no debate é gravíssimo. Publicar anúncio defendendo a posição das plataformas é normal, mas usar o fato de que controlam as ferramentas para calar as vozes das quais discordam é inaceitável.

– Eles estão bloqueando anúncios a favor do PL 2630. Bloquearam, no domingo, o anúncio do Sleeping Giants no Youtube. Tem um perfil chamado “Regular para proteger", uma campanha da Avaaz, que foi bloqueado no Twitter. É enfim, uma série de bloqueios, além da diminuição do alcance das postagens a favor da regulação. O alcance está caindo brutalmente — alertou Nina Santos.

Do ponto de vista político, o Republicanos se posicionou contra, apesar de ter votado majoritariamente a favor da urgência do projeto. A bancada evangélica não ficou satisfeita com a mudança para afastar temores levantados de que o texto impediria a liberdade religiosa. A proteção foi tal que tem gente que argumenta que equivaleria a uma imunidade. A pior questão do projeto é o que dá imunidade aos parlamentares em geral, apesar de muitos deles serem grandes disseminadores de fake news, mas esse ponto é considerado inegociável. O debate ficou intenso no fim de semana prolongado, a tal ponto que não se sabe se o PL será mesmo colocado em votação nesta terça-feira.

Nina Santos avalia que o PL, como foi protocolado pelo relator Orlando Silva, tem avanços significativos.

– Há exigência de transparência das plataformas e de prestação de contas. Criam-se parâmetros mínimos em termos de quais são os elementos que precisam deixar públicos ou acessíveis em relação ao funcionamento interno. Um outro avanço é em relação à publicidade e a questão da responsabilização. No texto está claro que as plataformas se tornam co-responsáveis por todo o conteúdo publicitário, tudo que envolva transação monetária nas plataformas. Isso é um avanço importante porque até agora elas estavam cobertas pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet, que tira a responsabilidade das plataformas.

O outro avanço, apontado por Nina Santos, é o do que ela chama de “dever do cuidado”. O texto traz balizas claras sobre temas sensíveis e prioritários como conteúdos que atinjam crianças e adolescentes, que estimulem a violência, conteúdos contra o Estado Democrático de Direito.

— Se essas previsões legais já estivessem em vigor talvez não tivéssemos o 8 de janeiro, nem ataques às escolas — diz a especialista.

Um dos problemas do texto é não prever órgão regulador independente, mas felizmente ontem estava sendo afastada nas negociações a ideia que surgiu na sexta-feira de ser a Anatel. A agência de telecomunicações poderia ter conflitos de interesse. Por enquanto, as dúvidas serão decididas ou pela Justiça ou pelo Comitê Gestor da Internet, mas em algum momento o governo precisará enfrentar isso.

Um debate intenso no fim de semana foi sobre a remuneração do jornalismo. Alguns veículos menores passaram a dizer que o texto poderia privilegiar as grandes empresas. A ANJ soltou nota negando isso e dizendo que será para todo o espectro do jornalismo. A Fenaj não ficou contra o texto, mas disse que é preciso assegurar o alcance geral do jornalismo. Esse ponto pode até ser mudado para ficar mais claro.

Pela intensidade do debate desses últimos dias, pela reação antidemocrática das plataformas, pelos riscos a que estamos todos expostos, é importante que o Brasil vote a regulação das plataformas digitais, o chamado PL das Fake News.