terça-feira, 2 de maio de 2023

Paulo Hartung* - Brasil: um novo início

O Estado de S. Paulo

Sob gigantesca sombra de equívocos e arrastando correntes de obsolescências, marchamos rumo ao futuro de costas para ele

Em sua clássica reflexão sobre o tempo, Santo Agostinho concluiu que, nas sucessivas durações finitas que compõem o existir, temos apenas o presente, formulando que “talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras”.

O recurso a Santo Agostinho e seu avassalador conceito sobre a temporalidade humana aqui se faz especificamente para nos referirmos à encruzilhada em que se teima aprisionar o Brasil: com olhos no retrovisor, no mapa da polarização reinante, lamentavelmente, muitos dos rumos apontam para retrocessos. Ou seja, tanto a “visão presente das coisas presentes quanto a esperança presente das coisas futuras” estão de alguma sorte amarradas à “lembrança presente das coisas passadas”.

O que passou deve ser visto como fonte riquíssima em qualquer civilização, seja para conhecimento, seja principalmente para aprendizados. Isso, à luz de um horizonte que, muito antes de repetir o que já foi, esteja o mais distante possível de seus equívocos e descaminhos. Assim, o passado que se tenta impor à conversação sobre o nosso presente e nosso futuro, antes de inspirar, deveria mesmo nos educar como nação acerca do que se deve evitar, principalmente no campo da política e da economia. A verdade é que não há paraíso perdido a recuperar, seja ele passado A ou B, recente ou distante.

Além disso, nestes novos tempos, a sociedade se transmuta vertiginosamente a partir de sua base sociotécnica, o que dificulta ancorar propósitos em mitologias pretéritas. Afinal, a atualidade demonstra que, sem eficácia administrativa, com planejamento sólido e boas equipes, um Estado, por si só, pouco ajuda, ou, antes, pode muito atrapalhar.

Assim, sob gigantesca sombra de equívocos e arrastando correntes de obsolescências, marchamos rumo ao futuro de costas para ele, sendo guiados por rastros, em vez de inspirados por aprendizados, observações e escutas sobre o que se passa e das possibilidades que se abrem.

Com este quadro, é fundamental que a sociedade civil e lideranças dos mais diversos campos, conjugando razão e emoção, coloquem-se ativamente no circuito dos debates nacionais, oxigenando-os.

Essa agenda, que tenho chamado de “novo início”, só deslancha com a realização de reformas estruturantes. Não dá para seguirmos com um sistema tributário caótico, que impõe uma letargia intolerável e incompatível com as nossas possibilidades econômicas. A máquina governativa deve deixar de ser nicho de patrimonialismos e seara de ação corporativista, a fim de adequar-se aos padrões da era digital.

É urgente investir na educação básica, incluindo tempo integral na escola e formação técnico-profissionalizante no ensino médio. Pela relevância do Sistema Único de Saúde (SUS) na pandemia, ficou claro que é preciso reforçar o sistema público da saúde, especialmente nos aspectos gerenciais. A segurança pública é assunto urgente, que precisa de ação conjunta entre União, Estados e municípios. Pesquisa científica e inovação devem ser impulsionadas, de modo a dinamizar a economia. É preciso reorganização completa das políticas assistenciais para que contribuam, efetivamente, à ação de superação da vergonhosa realidade de concentração de renda no País.

A proteção e a preservação do meio ambiente, em especial da Amazônia, devem compor políticas públicas vigorosas e que impulsionem a geração de renda e valor para a população local, diante de inaceitável contingente vivendo abaixo da linha da pobreza.

Por causa da baixa capacidade de investimento público, a iniciativa privada deve ser atraída para parcerias que possibilitarão o desenvolvimento. Cabe ao Estado garantir agências regulatórias profissionalizadas e marcos institucionais claros e confiáveis, ou seja, ambiente de negócio com segurança jurídica e atratividade.

Essa organização dará fôlego para o País aproveitar as possibilidades oferecidas pela digitalidade e pelas demandas por infraestrutura, como portos, ferrovias, dados/5G, rodovias, energia, saneamento, entre outras. Olhando para além de nossas fronteiras, é completamente factível ampliar as interfaces econômicas do Brasil com o mundo, especialmente neste momento de reorganização das cadeias globais de suprimentos.

Temos de colocar a economia verde no centro de nossa estratégia. Hoje, por exemplo, já alimentamos 10% da população mundial e temos condições de avançar como provedor de comida e fibras, sem a necessidade de derrubar florestas nativas, uma vez que há mais de 80 milhões de hectares de terras degradadas em nosso território. Além disso, 45% da nossa matriz energética já provêm de fontes renováveis, e ainda contamos com enorme potencial para evoluir em geração de energia limpa, como eólica, solar e de biomassa.

Enfim, como se percebe, é preciso focar nas superações que temos de cumprir e nas enormes oportunidades que não podemos deixar escapar. Meu profundo desejo, que norteia minha militância, é por um Brasil contemporâneo do nosso tempo, atento às transformações da sociedade e de olho no futuro, que pode nos auxiliar a legar o País próspero que seu povo merece. Vamos juntos redesenhar o que está sendo e formatar o que virá.

*Economista, presidente-executivo da IBÁ, membro do Conselho Consultivo do Renovabr, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)

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