sábado, 10 de junho de 2023

João Gabriel de Lima* - Financiar políticas ou pagar políticos?

O Estado de S. Paulo

Livro afirma que o presidencialismo de coalizão brasileiro praticamente inviabiliza reformas

Numa cena clássica da série The Newsroom, o âncora de TV Will McAvoy resume os Estados Unidos em números. “Somos líderes apenas em três categorias: presidiários per capita, gastos militares e porcentagem da população que acredita em anjos”, diz McAvoy em debate numa universidade. O tom provocativo assusta a aluna que havia perguntado de forma singela: “Por que somos o melhor país do mundo?”

E se McAvoy, personagem inesquecível interpretado por Jeff Daniels, fosse instado a falar do Brasil? Poderia responder: “É o quinto país do mundo em superfície e o oitavo em população, mas não está entre as dez maiores economias do mundo. Na América do Sul representa a metade de tudo: superfície, população e economia. Destaca-se por sua maravilhosa cultura e estatísticas ruins: apenas 1% do comércio internacional e 15% dos homicídios globais”.

Esses dados estão num dos verbetes sobre o Brasil incluídos no Dicionário Arbitrário de Política, de Andrés Malamud, um dos principais cientistas políticos argentinos. Ele é presença constante na mídia de seu país pelo poder de síntese, clareza de pensamento e humor afiado – qualidades que transporta para o livro, recém-lançado na Argentina e que pode ser comprado pela internet.

No livro, Malamud diz que o presidencialismo de coalizão brasileiro não impede que o

País seja governável, mas praticamente inviabiliza reformas. “Brasil, Argentina, México e EUA são federações de Estados com sistema presidencialista, mas só o Brasil combina isso com uma alta fragmentação partidária, o que exige do presidente poder de negociação de primeiro-ministro europeu”, disse Malamud em entrevista ao minipodcast da semana. No livro, ele resume nosso dilema numa frase: o orçamento brasileiro é usado mais para pagar políticos do que para financiar políticas.

Os insights sobre o Brasil, factuais como a fala de McAvoy, nos fazem pensar que poderíamos estar falando sobre modelos de desenvolvimento, papel do Brasil no mundo e em como tornar o País mais “reformável”. Em vez disso, discutimos bobagens como o risco de Lula transformar o Brasil numa “nação comunista”.

Novamente Malamud vem em nosso socorro – com fatos. “Nem com Lula nem com Dilma o Brasil constituiu governos de esquerda: tratava-se de um partido de esquerda liderando governos de fragmentos”, diz num verbete. Em outro, define comunismo: “Sistema de ideias e governo que desconfia do indivíduo. Sua implementação produziu milhares de mortos. Insulto favorito de fascistas e ignorantes”.

O debate público brasileiro tem muito a ganhar se superar a ignorância e abraçar os fatos.

*Escritor, pesquisador do Observatório da Qualidade da Democracia na Universidade de Lisboa e professor da Faap

 

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