sábado, 10 de junho de 2023

Pablo Ortellado -Junho de 2013 foi o ovo da serpente?

O Globo

A tese é uma explicação sem pé nem cabeça que atribui a ascensão de Bolsonaro à mobilização popular por direitos e retira do PT qualquer tipo de responsabilidade

Ao aderir ao complô para assassinar Júlio César e salvar a república romana, Brutus pondera o seguinte: “A luta não diz respeito ao que ele mostra ser agora, mas posso argumentar: sua essência, dilatada, há de crescer a tais e tais extremidades; e devo então pensar que é o ovo da serpente: ao ser chocado, há de tornar-se peçonhento, e é preciso matá-lo ainda na casca ”. (Tradução de José Francisco Botelho para a tragédia de William Shakespeare.)

Desde que o cineasta Ingmar Bergman usou a passagem de Shakespeare para se referir à ascensão do nazismo, o tema do ovo da serpente que precisa ser exterminado, ainda na casca, antes de se tornar peçonhento, se tornou lugar-comum da retórica antifascista. No Brasil, tem sido exaustivamente mobilizado por setores da esquerda para se referir a uma sequência causal imaginária que liga os protestos de junho de 2013 às manifestações anticorrupção; essas, por sua vez, ao impeachment de Dilma Rousseff, à prisão de Lula e à eleição de Jair Bolsonaro. O ovo da serpente que teria sido necessário exterminar são os milhões de jovens que saíram às ruas pedindo direitos sociais e o fim da corrupção em junho de 2013.

Essa alegada sequência causal confunde contexto com causa e faz uma conexão amalucada, completamente desprovida de evidências, insinuando que os futuros eleitores de Bolsonaro animavam os protestos de junho de 2013.

Os protestos de junho de 2013, sobretudo os da segunda quinzena, foram bastante estudados. Sabemos que os jovens que estavam nas ruas não se identificavam com a direita, nem tinham qualquer preferência partidária. A principal pauta reivindicada nos protestos eram a redução das tarifas de transporte e a melhoria dos serviços públicos de saúde e educação, uma pauta que não pode ser considerada de direita, muito menos de extrema direita.

É verdade que, em junho, petistas foram escorraçados de um protesto na Avenida Paulista, mas lideranças de direita também foram. E, afinal de contas, o que os petistas imaginaram que aconteceria ao aparecerem com bandeiras partidárias num protesto que gritava “sem partido”, cuja pauta principal era lutar contra um aumento determinado por um prefeito do PT?

Quando a onda gigante de protestos arrefeceu, com a revogação dos aumentos nas tarifas no final de junho, a insatisfação social permaneceu difusa e órfã. Nesse momento, grupos de direita tentaram mobilizar a população, sem muito sucesso. Entre junho de 2013 e novembro de 2014, nenhum grupo de direita conseguiu fazer uma mobilização significativa. O pós-junho foi marcado por um impulso nas ocupações de sem-teto em São Paulo, pela greve dos professores no Rio de Janeiro, pela constituição da Assembleia Popular Horizontal em Belo Horizonte, pelo movimento em defesa do Parque do Cocó em Fortaleza e pelos protestos contra as remoções para a construção dos estádios da Copa do Mundo.

Em novembro de 2014, um ano e cinco meses depois de junho de 2013, grupos de direita convocaram um protesto contra a reeleição de Dilma Rousseff, e esse protesto impulsionou depois as manifestações anticorrupção e anti-Dilma de 2015 e 2016, que levaram ao impeachment.

Não há muita coincidência entre quem protestava em junho de 2013 e quem protestava contra Dilma em 2015 e 2016. Os manifestantes de junho de 2013 eram jovens com menos de 30 anos, da classe média baixa e da classe trabalhadora. Os manifestantes contra Dilma —e também os que saíram em defesa da presidente Dilma —eram de idade e meia-idade, com escolaridade superior e renda alta.

Mesmo os manifestantes anticorrupção não adotaram uma identidade de direita até 2018, cinco anos depois de junho. Em 2015 e 2016, no auge dos protestos contra Dilma Rousseff, a maioria dos manifestantes preferia se definir como “nada disso” quando questionada se se identificava como direita, esquerda ou centro —cerca de 15% inclusive se identificavam como de esquerda. Foi apenas em 2018, no contexto da campanha pela eleição de Bolsonaro, que manifestantes convocados pelos grupos anticorrupção adotaram majoritariamente as identidades de direita e de conservador.

Como se vê, muita coisa aconteceu entre junho de 2013 e a eleição de Bolsonaro, e a conexão causal direta que liga as duas coisas não passa de um delírio petista — irmão de outro delírio que é a tese adotada por Lula, segundo a qual os protestos de junho de 2013 foram promovidos pelo serviço secreto de Barack Obama. A tese do ovo da serpente é uma explicação sem pé nem cabeça que atribui a ascensão de Bolsonaro à mobilização popular por direitos e retira do PT qualquer tipo de responsabilidade.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

O ovo da serpente continua presente.