Lembremos. As jornadas de 2013 foram desencadeadas contra o
aumento de 20 centavos nas passagens do transporte coletivo de São Paulo. As
manifestações de rua começaram a se avolumar. De início com foco e direção
definidos. De repente, num fenômeno social inédito na história brasileira, um
rastilho de pólvora espalhou a chama por todo o território nacional. A
insatisfação social armazenada e reprimida explodiu nas ruas e os 20 centavos
perderam o protagonismo em troca de uma agenda difusa de insatisfação com a
qualidade dos serviços públicos e com a corrupção.
Não havia palanque, nem dirigentes do movimento. Era um movimento espontâneo e o partido ou organização que tentasse se apropriar era rejeitado. Diferente dos grandes movimentos cívicos anteriores como as lutas pela Anistia, pelas Diretas-Já e pelo Impeachment de Collor, não havia uma pauta clara de reivindicações, uma estratégia de mobilização e uma coordenação centralizada. Qual uma panela de pressão que explode, as manifestações convocadas pelas nascentes redes sociais, eram espontâneas e dispersas.
Foram manifestações impressionantes predominantemente de
jovens, que depois envolveram suas famílias, de classe média urbana – é ilusão
pensar que os trabalhadores e cidadãos pobres foram ativos no movimento. O
Brasil se preparava para receber a Copa do Mundo em 2014, com grandes
investimentos em construção e reforma de estádios de futebol. Criou-se o mote:
“Queremos educação, saúde e transporte padrão FIFA”. O 7x1 para a Alemanha
parece uma vingança do destino. Não havia, para usar o jargão, uma bandeira de
luta unificadora. Cada um ia para a rua com sua faixa ou cartaz pessoal,
manifestando suas angústias, esperanças e insatisfações. O caráter difuso das
jornadas ficou registrado em minha memória através da foto publicada de um
cartaz alegórico nas mãos de um manifestante: “Só saio da rua quando o Kinder
Ovo custar 1 real”.
A corrupção era outro foco. Lembremos que o julgamento do
mensalão bateu recordes de audiência, em 2011 e 2012, através da TV Justiça,
popularizando figuras como o Ministro do STF Joaquim Barbosa.
Infelizmente, os Black
Blocks mascarados se infiltraram, promoveram quebra-quebras e deram fim às
lindas, cidadãs e poéticas jornadas de junho de 2013.
O que me incomodou em grande parte das análises foi um “tour
de force” para conectar, em ligação mecânica e inverídica, as jornadas de 2013
com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. As jornadas surpreenderam a todos, revelando
uma grave insatisfação e um desconforto geral com o sistema político, ou seja,
com o que ficaria conhecido como “velha política”. Mas a relação de causalidade
termina aí.
Esquecem alguns que em 2014, Aécio Neves quase ganhou de
Dilma Roussef. Que em 2015, entramos na maior recessão de nossa história. Que o
impeachment de Dilma reavivou os movimentos de rua, com outra natureza e
dinâmica, surgindo movimentos como MBL, Vem Pra Rua e Patriotas pela Intervenção
Militar, alimentando a polarização política, mas com objetivos e convicções não
homogêneos. Ainda assim, o PSDB obteve, em 2016, a sua maior vitória eleitoral
no plano municipal. Foram 803 prefeituras conquistadas e o PSDB teve a maior
votação entre todos os partidos, 17,6 milhões de votos. O PMDB também obteve
excelente resultado conquistando 1.038 prefeituras. O PT foi o grande derrotado
vendo cair em 60% o número de prefeituras e de votos. Até este momento,
Bolsonaro tinha apenas 8% das intenções de voto para a presidência da República
(Datafolha).
Outro fato, as redes sociais e os aplicativos de mensagens só
passaram a ter papel político relevante a partir da campanha do impeachment em
2016 e depois nas eleições gerais de 2018. Em 2014, tinham papel periférico. As
fakes news eleitorais eram difundidas por call centers telefônicos, cartazes e
folhetos apócrifos, e-mails e sutilmente pela própria TV.
No primeiro semestre de 2017, vieram a público as delações
premiadas da Lava Jato, amplamente divulgadas pela TV e tiveram lugar os fatos
envolvendo o empresário Joesley Batista. De outubro de 2016 a setembro de 2018,
foram presos - justa ou injustamente, observando ou não os ritos legais -
importantes líderes políticos, deputados e ex-governadores. Em abril de 2018,
Lula foi preso. As estruturas políticas tradicionais de esquerda e de centro
foram confrontadas e o desgaste político foi enorme. Vivemos a crise do governo
Temer, que vinha produzindo importantes reformas. Foi aí que Bolsonaro, como
outsider, em nome de uma “nova política” alcança o patamar de 16%. O sprint
final para a vitória só se deu após o monstruoso atentado, durante a própria campanha,
no segundo semestre de 2018.
O ponto que gostaria de realçar é que as jornadas cívicas de
2013, que completam agora dez anos, foram um evento histórico da maior
importância, sendo a maior manifestação de massas espontânea e difusa que se
tem notícia no Brasil, revelando um mal estar social profundo com o sistema
político vigente, que não soube fazer a leitura correta e a necessária mudança
de postura. Mas, os resultados das eleições gerais de 2018, não tenho dúvidas,
têm muito mais a ver com os acontecimentos havidos no interregno entre as
jornadas de 2013 e a eleição de Bolsonaro.
Fora isso: Viva o espírito cidadão e participativo presente
nas memoráveis jornadas de 2013!
*Economista
Um comentário:
Viva nada.
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