O Globo
Uma Proposta de Emenda à Constituição que
consistirá, prosperando, no maior perdão da História a partidos políticos no
Brasil. Algo sem precedentes até para a cultura corporativista brasileira.
A melhor representação — o mais preciso
rosto — do Congresso Lira, com seu rito-ritmo atropelador do Parlamento, está
na chamada PEC da Anistia, a PEC do Esculacho, como prefiro; uma Proposta de
Emenda à Constituição que consistirá, prosperando, no maior perdão da História
a partidos políticos no Brasil. Algo sem precedentes até para a cultura
corporativista brasileira.
Protocolada em março na Câmara, passou largamente — em maio — pela Comissão de Constituição e Justiça, 45 x 10, e só não teve comissão especial instalada em julho, antes do recesso, por gestões proteladoras do PSOL, que se valeu dos instrumentos de obstrução ainda restantes à atividade legislativa, combinadas sobretudo à imposição da ordem do dia do Congresso Nacional, que fez soar o gongo e determinou o adiamento da sessão.
É questão de tempo, porém. Pouquíssimo. E
não será surpresa se a cousa andar já em 1º de agosto. Andará rapidamente —
dúvida não há. Logo, acelerado por urgências artificiais, chegará ao plenário.
A matéria é prioritária — muito mais que a apreciação da LDO — para os
deputados; especialmente para os donos dos partidos. É fácil compreender as
razões.
A PEC tem somente três artigos, aos quais
concedo o mérito da clareza. Não há o mais mínimo pudor. Nenhum rubor. A
proposta de esculacho é objetiva. Concentrada. Focada. Obra-prima da concisão.
Tentarei ser igualmente conciso para resumi-la.
1. Estende ao período da última eleição — a
de outubro de 2022 — a anistia a partidos que descumpriram a cota mínima de
repasses de recursos públicos a candidaturas de mulheres e negros.
Estende porque, em abril do ano passado, o
Congresso — com o estadista Pacheco e outros alcolumbres — já aprovara e
promulgara emenda à Constituição que anistiava os partidos por ignorarem as
cotas em eleições passadas. É legislação em causa própria sobre legislação em
causa própria — essa sucessão de desmandos se dando sob a forma de puxadinhos
inscritos, como quem bebesse água, na Carta.
Não vi barulho, certamente não um alto, dos
ministérios do governo Lula que cuidam dos direitos iguais para mulheres e
negros. Decerto houve constrangimento, já que o PT — de braços dados com o PL
de Bolsonaro e Valdemar — apoia a PEC. Espero que tenha havido vergonha.
Tenho certeza de que haverá negócio. E
intuo que esse — por mais midiaticamente escandaloso — seja o artigo
negociável. Abrandado, flexibilizado, em nome da manutenção do próximo — o que
verdadeiramente fará a rapaziada lavar a égua.
2. Estabelece que — e veja-se o grau de
inconstitucionalidade admitido pela CCJ da Câmara, instância tornada mera
carimbadora dos interesses liristas — “não incidirão sanções de qualquer
natureza, inclusive de devolução e recolhimento de valores, multa ou suspensão
do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, nas
prestações de contas de exercício financeiro e eleitoral de partidos políticos
que se derem anteriormente à promulgação desta alteração de emenda
constitucional.”
Preferi reproduzir o texto, entre aspas,
para não parecer que exagero ao apontar a gravidade do troço. Propõe-se anistia
geral, absoluta, sem senões, a cobrir mesmo, para além do que seria um marco
tangível, a eleição de 2022, o futuro — o que se faz agora e o que se fará, com
dinheiros públicos, até a promulgação da lei. É um convite, cheque em branco, a
que se barbarize ainda mais e imediatamente — um estímulo a que partidos
adquiram aviões, renovem a frota de automóveis e comprem toneladas de carnes
para churrasco. Serão anistiados. E — a história indica, arrombada a porteira —
de novo e de novo.
Aprovada a PEC, seus efeitos equivalerão a
anular todo o trabalho de análise da Justiça Eleitoral sobre as contas dos
partidos. Para que se tenha a ordem de grandeza da tunga: só no último pacote
de julgamentos das prestações partidárias, o TSE determinou a devolução de R$
40 milhões aos cofres públicos.
Foram 19 as contas reprovadas. Dezesseis as
aprovadas com ressalvas. Não à toa tão unidos, com raras exceções, partidos
cujos discursos apregoam visões de mundo de todo diversas — menos na hora de
proteger o tesouro (para geri-lo sob lógica privada) proveniente de fundos
públicos.
3. Permite que os partidos voltem a receber
dinheiro de empresas “para quitar dívidas com fornecedores contraídas ou
assumidas até agosto de 2015” — uma afronta, indisfarçada, à decisão do Supremo
Tribunal Federal (de setembro de 2015) que proibiu financiamento empresarial a
partidos e campanhas.
Aprovada, a PEC do Esculacho formará — ao
lado da institucionalização do orçamento secreto, que continua — como símbolo
das lideranças de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco no Congresso Nacional.
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