Correio Braziliense
Devemos pedir perdão pelo que fizemos aos
escravizados, mas também manifestar gratidão pelo que eles fizerem, obrigados
pela violência da escravidão
Em 14 de abril de 2005, o presidente Lula fez discurso na fortaleza de Gorée, no Senegal, pedindo desculpas pelos 350 anos de escravidão de povos africanos no Brasil. Embora triste, foi um momento de orgulho assistir a um dirigente brasileiro fazer essa manifestação. Nestes cinco séculos, desde que chegou um primeiro grupo de escravos, nenhum outro presidente brasileiro havia apresentado esse pedido de desculpas. Provavelmente, também nenhum português, nem qualquer papa. Por isso, surpreende que aquela manifestação não tenha tido o reconhecimento que mereceu na época e que surjam tantas críticas ao discurso da semana passada, em Cabo Verde, no qual, em vez de se desculpar pelo sofrimento da escravidão, Lula agradeceu a contribuição dos escravizados na construção do Brasil.
Foi uma declaração incompleta por ter
esquecido aquela de 20 anos atrás, em Gorée, mas não errada. Devemos pedir
perdão pelo que fizeram aos escravizados, mas também manifestar gratidão pelo
que eles fizerem, obrigados pela violência da escravidão. Não foi um discurso
errado, foi um discurso incompleto, por deixar de assumir compromissos para o
futuro. O discurso correto deveria juntar o pedido de desculpas pela maldade
com o reconhecimento pelo papel dos escravizados na construção do Brasil. Sob a
maldade da violência e da violentação, eles criaram riqueza material e formação
cultural, além da miscigenação biológica de nosso povo. Incompleto também por
esquecer dos milhões de brasileiros que nasceram escravos, já no Brasil,
durante os séculos até a Lei do Ventre Livre.
O presidente Lula deveria cobrar de seus
assessores, de demógrafos e outros cientistas brasileiros a estimativa de quantos
escravos exploramos, nascidos brasileiros. Os africanos precisam saber que
nossa maldade tratou como escravos os brasileiros que nasceram de mãe negra. No
livro A última trincheira da escravidão, publicado no final do ano passado pela
Editora Universidade Zumbi dos Palmares, cheguei a fazer estimativa desse
número e me surpreendi com a população de escravos nascidos no Brasil. Um
número quase igual ao dos escravos que foram trazidos da África. O número pode
ser menor, a maldade, não. Lula precisa pedir desculpas às mulheres negras
cujos ventres eram usados como navios negreiros durante os nove meses de
gestação de seus filhos.
Nos nossos pedidos de desculpas aos
africanos, precisamos reconhecer que a Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea apenas
soltaram, sem libertar os escravizados e seus descendentes. Extinguimos a
legalidade na venda e na compra, mas não demos a eles a educação necessária
para transformar o solo em livre. As duas leis tiraram algemas, mas nem elas
nem as seguintes ensinaram como usar o mapa que uma pessoa solta precisa para
ser livre, sabendo o propósito para onde caminhar e conhecendo os obstáculos no
caminho da vida.
Faz 135 anos que uma princesa decretou que
a escravidão era ilegal, mas tanto ela quanto seus sucessores mantiveram a escravidão
do analfabetismo. Lula precisa pedir desculpas, porque, até hoje, o Brasil tem
mais de 10 milhões de brasileiros adultos escravizados pelo analfabetismo.
Todos descendentes sociais dos escravos, parte substancial deles descendentes
também raciais. Nestes meses de seu governo atual, ainda não se viu um programa
para a erradicação do analfabetismo. No primeiro ano do primeiro governo Lula,
houve um esforço com o programa Brasil Alfabetizado, que visava erradicar o
analfabetismo em 4 a 6 anos, mas pouco foi feito desde então.
Em novembro, o presidente voltará à África.
Será uma ocasião para repetir seu discurso de desculpas que fez no Senegal, e
afirmar, corretamente, o discurso da semana passada em Cabo Verde. Mas deverá
dizer também como seu governo está pagando a dívida com a África, ao ter uma
estratégia clara para que cada descendente social dos escravos tenha acesso à
escola de base com a mesma qualidade onde estudam os descendentes sociais de
seus proprietários. E ainda convidar os presidentes africanos para virem
assistir à solenidade em que o Brasil declarará seu território livre da
escravidão do analfabetismo.
*Cristovam Buarque - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Um comentário:
Muito bom!
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