Folha de S. Paulo
Notório pela inconsistência mental,
Bolsonaro surgiu como aberração num interregno político-social: um chupa-cabra
de civilidade
Tornar alguém inelegível é uma forma branda
de banimento. Nas sociedades tradicionais, o banido era expulso da cidade, o
que implicava perda de solo próprio, logo, um nomadismo infamante.
Sócrates, condenado pelo conselho de justiça, preferiu
beber veneno a deixar Atenas. Hoje existe o exílio forçado por circunstâncias
políticas, mas o banimento propriamente dito comporta atenuações jurídicas,
como a temporária inelegibilidade eleitoral.
A pena cabível ao ex-presidente pode ser apenas um começo, tendo em vista a sua folha corrida de atentados à saúde pública e à normalidade republicana. Subsiste, porém, um problema de natureza ético-política: neutraliza-se agora a pessoa física, mas sua imagem deletéria continuará produzindo efeitos na vida pública. E isso é exatamente o desejável no âmbito de sua inserção partidária: espera-se que, zerado em termos competitivos, ele ganhe força como cabo eleitoral.
Não é fenômeno novo. Há toda uma história
de lideranças como Vargas, Perón e outras que, fora do poder, continuavam a
destilar efeitos ideológicos de caráter populista, amplificados por máquinas de propaganda
partidárias e jornalísticas. Nessa crônica não costuma sobressair um rol tão extenso
de imputações deploráveis, capaz de perfilar o político como figura penal.
Este, no entanto, é o caso do ex-presidente.
Para eleger Maduro, Chávez,
já morto, não virou propriamente cabo eleitoral, mas entidade do popular
espiritismo venezuelano, cultuada e incorporada por devotos. Trata-se de um verdadeiro
prodígio transpolítico: o chavismo não
é nenhuma ideologia bolivariana, é uma seita. Apertar a mão de Maduro é entrar
na corrente mediúnica.
Entre nós, apesar de toda a chantagem
politiqueira em curso, vive-se agora um estado de coisas com razoabilidade
econômica e alívio da tensão psicossocial: a nação escapou por um triz de
mergulhar no inaturável. No balanço que se faz, porém, o saldo é tão
ignominioso quanto preocupante.
Intriga a consciência de boa memória o fato
de que o ex-presidente, embora extinto eleitoralmente, possa dispor do capital
político exibido nas pesquisas. Notório pela inconsistência mental, ele surgiu
como aberração num interregno político-social: um chupa-cabra de civilidade.
Teria sido escolhido por isso mesmo, como o Recruta Zero dos quadrinhos, cujo horizonte era
o moroso Sargento Tainha. No limite, um desaguadouro de virulência, influencer
do vácuo.
Mas se espera que o zeramento
jurídico-político não prejudique seus espelhamentos populares, os seguidores,
ainda irradiados pelo bolsa-sadismo das redes sociais em que o passado tóxico
cria futuro e pessoas adoecem. De fato, é tarefa tão árdua banir o peso de
coisas mortas que elas terminam acumulando-se como capital político na miséria
da dignidade civil.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Nenhum comentário:
Postar um comentário