domingo, 2 de julho de 2023

Gabriel Guimarães* - Presidencialismo de orçamento

O Globo

A negociação não é mais organizada pelo partido ou pela temática, mas orientada pela lógica de quanto cada deputado receberá

Desde a criação pelo cientista político Sérgio Abranches em 1988, o conceito “presidencialismo de coalizão” foi amplamente usado para explicar como se estruturava a relação entre Executivo e Legislativo no Brasil. O jogo se dava da seguinte forma: o governo atraía os parlamentares por meio de fornecimento de emendas e cargos na administração federal em troca de lealdade política na aprovação de sua agenda legislativa. Por muitos anos, a estratégia deu certo.

Uma pesquisa realizada pela FGV Direito-SP mostra que a taxa de sucesso do Executivo na aprovação de projetos no Legislativo foi, até o primeiro mandato do governo Dilma, superior a 45%. Além disso, até o fim do primeiro governo Dilma, a taxa de conversão das Medidas Provisórias em lei era superior a 65%. Ambos os dados comprovam que o jogo institucional organizado pelo “presidencialismo de coalizão” funcionava e gerou sucesso nas agendas políticas do Executivo.

Entretanto, desde a crise política oriunda da Lava-Jato, as relações entre Executivo e Legislativo passam por uma transformação. Os partidos deixaram de estruturar esse relacionamento. O aumento da fragmentação partidária passou a impor uma série de dificuldades para organizar uma coalizão de legendas minimamente homogêneas, e isso aumentou os custos de governabilidade. As bancadas temáticas que surgiram como alternativa para estruturar a relação mostraram-se circunscritas a seus temas de origem, sem capacidade de articulação para além de suas pautas.

Na medida em que os partidos e as bancadas temáticas não conseguem estruturar a relação entre Executivo e Legislativo, surge outro agente capaz de estruturá-la: o Orçamento. Desde o advento da emenda RP9, conhecida como orçamento secreto, os parlamentares descobriram um apetite político insaciável. O presidencialismo de coalizão deu lugar ao presidencialismo de orçamento. Segundo dados do governo federal, o número de emendas parlamentares empenhadas saltou do correspondente a R$ 3,5 bilhões em 2015 para R$ 25,5 bilhões em 2022.

O orçamento secreto permite, na prática, que o Brasil tenha mais 594 prefeitos com capacidade de entregar benfeitorias políticas diretas ao eleitorado. Bolsonaro instituiu o novo paradigma, e os parlamentares não querem voltar atrás. Em virtude da fraqueza de sua coalizão, o ex-presidente entregou boa parte da capacidade de organizar políticas públicas para atender a interesses eleitorais de deputados e senadores.

A negociação não é mais organizada pelo partido ou pela temática, mas orientada pela lógica de quanto de orçamento cada deputado receberá para fazer parte da coalizão governista. O “chão da fábrica do plenário”, como disse Elmar Nascimento em entrevista ao GLOBO, não tem mais relação com ministérios, mas com emendas orçamentárias.

O presidencialismo de orçamento é definido justamente a partir disto: o sucesso da agenda do governo federal no Legislativo passa, desde a RP9, mais pelo acesso a fatias do Orçamento público pelos deputados e senadores do que propriamente por conceder espaços em ministérios e autarquias a partidos. O governo Lula busca diariamente contrariar a nova forma de estruturação. Com isso, sofre derrotas e críticas à articulação política por parte dos líderes do Congresso.

Mesmo depois da vitória expressiva na votação do projeto de novo arcabouço fiscal, o governo vive um relacionamento permanentemente ruidoso com o Congresso. A persistência dessa crise é fruto da incompreensão de que a ordem do jogo agora é outra. O presidencialismo de coalizão que garantiu mandatos de relativa governabilidade nos mandatos anteriores de Lula se esvaiu, e o governo precisa se adaptar ao novo paradigma para ter sucesso no Legislativo.

*Gabriel Guimarães, cientista político formado pela FGV/CPDOC, é mestre e doutorando em ciência política no Iesp-Uerj

Um comentário:

EdsonLuiz disse...

O Brasil precisa caminhar para a adoção do parlamentarismo!

O orçamento não sairá mais do controle dos parlamentares, por isso o orçamento federal precisa deixar de ser para o usufruto e passar a ser para a responsabilização dos deputados e senadores. Essa responsabilização virá com a adoção do parlamentarismo.

Nossos "presidentes" da última ditadura foram reprovados pelo conjunto da obra:: assassinaram os brasileiros e assassinaram a nossa economia. Enfileirando nossos presidentes pós abertura politica --Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro, do que fizeram de realmente relevante para o país vejo apenas a estabilização da economia e alguns avanços para a proteção dos mais pobres e reconhecimento de direitos de grupos sociais. Neste momento estamos com instabilidade política e crise econômica, que se somam a uma disputa ideológica de baixíssimo nivel entre os populismos lulista e bolsonarista que impossibilitam qualquer sonho de ter um país melhor.
(Por favor, não estou dizendo que o problema é o PT ou o PL; estou dizendo que vejo como problema o populismo político de Lula e Bolsonaro).

Da forma como estamos o Brasil está condenado a desinvestimento e a oscilar entre baixíssimo crescimento seguido de recessão econômica. E a instabilidade econômica e política pode desembocar o Brasil em outra intervenção militar, que como da última vez pode se transformar em ditadura.

O Brasil pós ditadura militar de 1964 avançou na criaçào de uma rede de proteção aos mais pobres, com o SUS e os programas de auxilio, e também com boas politicas de reconhecimento de direitos das minorias e das maiorias discriminadas. E só!

Com os governos Itamar e Fernando Henrique veio a estabilização da economia, que foi mantida no governo Lula1 e começou a ser mais uma vez perdida em Lula2, instabilidade só aumentada por todos os governos que vieram depois e a estabilização econômica conquistada está se perdendo ; os avanços nas politicas de reconhecimento de direitos das minorias e de maiorias discriminadas, que começaram com Fernando Henrique, mas que se aprofundaram realmente nos governos do PT, também começam a entrar em risco de retrocesso com a polarização.

O Brasil está parado pelo impasse em que se tornou a relação entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Este impasse está sendo perigosamente aumentado, com uma aproximação crescente entre o Executivo e o Judiciário para se contraporem ao poder legislativo e já não há como falar de independência e harmonia entre os três poderes, que só estão se entendendo pelo uso de conveniências de parte a parte que são venais ao país.

Já estamos no auge desse conflito entre os poderes Executivo e Judiciário de um lado e o poder Legislativo do outro ; o conflito apenas não explodiu ainda.

Estando o Brasil sem forças políticas substanciais organizadas para reagir a este impasse institucional e com a nossa política flutuando entre dois polos populistas, os dois fundamentalmente movidos por ideologismos, igualmente corruptos e cada um completamente desacreditado por aproximadamente 50% do eleitorado, a paradeira em que estamos faz 15 anos tende a se aprofundar, agravada que será pela inércia econômica dos próximos tempos e aumento da dívida publica, ainda que mais lento pela aprovação do Arcabouço Fiscal.

Para sair deste impasse o Brasil deveria caminhar para a adoção do parlamentarismo. O orçamento como decisão de gasto já é feito quase na totalidade pelo parlamento mesmo, cabendo ao executivo tão somente executar, e isso não vai mudar. Só com a adoção do parlamentarismo os parlamentares vão ser responsabilizados pela alocação do gastos, que hoje eles só desfrutam para benefício próprio. E respondendo pelo orçamento e pela política fiscal os parlamentares terão que assumir responsabilidade sobre a estabilidade política do país, que está agora em um momento mais grave que a situação de nossa economia.