Folha de S. Paulo
Fé não se discute, mas o cabimento de
projetos de ampliação da isenção tributária das igrejas sim
O poeta e semiólogo Décio Pignatari
relatou-me certa vez como produziu, por encomenda, a marca nacional de um óleo
lubrificante para automóveis: programou no computador uma combinação de
palavras oscilantes entre brasilidade e lubrificação, de modo a obter um
resultado satisfatório. Faz pouco, o processo me pareceu reverberar numa rua de
subúrbio do Rio, onde entrepostos religiosos ostentam variações de
"primitiva de Cristo" a "tabernáculo de fogo". Há 150 mil
deles no país, e crescem.
Fé não se discute, seja na eficácia de um óleo posto no mercado, numa divindade que passe tempo eterno contabilizando dízimos ou na sacralidade indiana da vaca. Scholars do pensamento social enxergariam com razão preconceito em argumentos contrários.
A discussão pode incidir, entretanto, sobre
o cabimento de projetos de ampliação da isenção tributária das igrejas que tramitam na
Câmara. Livros, fora de cogitação. Ou então sobre a tragédia que seria a
organização social da fé assumindo uma feição desmedida na exploração do
povo-massa espiritualmente desenraizado e sofrido, com insidiosas inclinações
políticas.
A palavra-chave para uma reflexão proativa
está no "comum", que sempre se construiu como algo coletivo e
diverso, mas que no âmbito de configurações religiosas estreitas é anulado pela
mesmerização privatista (mistificação da prosperidade, rentabilização da
crença) e pela ausência de fé em finalidades sociais. Cooperação e
solidariedade são figuras de retórica pastorais.
Progressistas ainda perplexos com a
penetração de discursos abstrusos da ultradireita na esfera civil teriam muito
a ganhar com a leitura de Ernst Bloch, para quem "os homens querem ser
enganados" (em "Princípio Esperança", 1976). Ele se referia aos
anos de "estupidez funcional e sistêmica" da primeira metade do
século passado, mas o diagnóstico permanece atual na ficcionalização eletrônica
do mundo. Não se trata mais de "ópio do povo" (Marx) e sim da droga
tecnologicamente fabricada como relação social na hegemonia ético-política do
capital globalizado.
O fio que liga os polos verticais dessa
fabricação é a magia redentora do dinheiro, atuante nos bilionários que
tripulam espaçonaves pelo êxtase extraplanetário ou nos danados da Terra
vulneráveis a logros sobre prosperidade individual. Passa despercebida a
crueldade de se condicionar, como sanguessugas de esperança, a fé ao preço.
A metástase dos entrepostos com denominações aleatórias, um deepfake bíblico, desenha a face
miserável do capitalismo convertido em religião. Uma pirâmide extrativista: no
topo, lavam-se bilhões e se elegem bancadas parlamentares, enquanto na base
lavam-se cérebros por overdose de fé integrista.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Nenhum comentário:
Postar um comentário