domingo, 9 de julho de 2023

Ruy Castro - Típica salada de Paris

Folha de S. Paulo

Um hotel em Montparnasse onde se diziam besteiras e genialidades nos anos 20

Em Paris é assim. Você procura um endereço histórico, encontra-o e descobre, ao lado, outro ainda mais importante. Deu-se comigo outro dia, quando saí atrás da rue Campagne Première, em Montparnasse, onde Jean-Luc Godard filmou a sequência final de "Acossado" (1959) —em que Jean-Paul Belmondo recebe ordem de prisão dos tiras, tenta fugir, é baleado e sai trôpego pelo asfalto, seguido pela câmera, até cair e morrer. Mal sabia eu que, no número 29 da rua, quase em frente de onde cai Belmondo, fica o Hotel Istria.

A placa na fachada é impressionante. "Na efervescência criadora dos anos 1920", diz ela, "o Hotel Istria acolheu, entre outros, Francis Picabia, Marcel Duchamp, Moïse Kisling, pintores, Man Ray, fotógrafo, Kiki de Montparnasse, modelo e musa, Erik Satie, compositor, Rainer Maria Rilke, Tristan Tzara, Vladimir Maiakovski, poetas, e Louis Aragon, que se encontrava aqui com Elsa Triolet." E segue-se um couplet de Aragon, dizendo que "só se apaga quem brilha e, ao sair do Hotel Istria, tudo era diferente na rue Campagne Première, em 1929, por volta do meio-dia." Aragon, naturalmente, era o poeta e romancista, e Triolet, escritora, casada com ele e cunhada de Maiakovski.

Uns pelos outros, esses homens e mulheres —franceses, russos, vienenses, americanos, uma típica salada de Paris— geraram o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, o ready-made, a pop art, o teatro do absurdo etc, e estilhaçaram o verso.

Namoravam o comunismo, esbofeteavam padres nas ruas e seguiram o enterro do medalhão Anatole France aos gritos de "Um cadáver já em vida!". E praticaram entre si várias combinações sexuais de gênero, etnia e estado civil. Não eram modernistas de salão. Correram riscos, pagaram para ver.

E pensar que essa turma vivia ali, naquele então modesto endereço, cruzando-se nos corredores e dizendo besteiras e genialidades uns para os outros!

 

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