‘Reindustrialização’ proposta por Lula é erro à luz dos fatos
O Globo
Recursos de governo sob pressão fiscal
devem ser usados em educação, saúde e ajuda a pobres, não em subsídios
A política industrial voltou à agenda depois que, nos Estados Unidos, Joe Biden ofereceu incentivos a setores como semicondutores ou energia limpa para competir com a China. No Brasil, o governo Luiz Inácio Lula da Silva decidiu, sob o mote da “reindustrialização”, ressuscitar subsídios para automóveis, indústria naval e sabe-se lá o quê. O sufoco das cadeias de suprimento na pandemia é visto como pretexto para reviver a proteção a “campeões nacionais” ou “indústrias estratégicas”. Defensores de políticas industriais costumam justificá-las dizendo que nenhum país se desenvolveu sem adotá-las — e apontam para Estados Unidos, Europa e Ásia. Trata-se, porém, de uma interpretação equivocada dos fatos históricos.
“A crença em que os países ricos tiveram
sucesso por terem protegido a manufatura (...) se revelou uma leitura errada da
História”, escreve o economista Douglas Irwin, do Instituto Peterson para
Economia Internacional. Os Estados Unidos, diz ele, se desenvolveram em razão
da abertura para imigração, capital e tecnologia e do aumento de produtividade
no setor de serviços, não na indústria. Na Europa, o crescimento veio da
transição da agricultura. Uma simulação de economistas das universidades da
Califórnia, de Michigan e do MIT concluiu que, mesmo em economias abertas com
políticas industriais bem formuladas, os ganhos “não chegam a ser
transformadores”.
A Coreia do Sul, frequentemente citada como
modelo, foi esmiuçada por Irwin num estudo de 2021. O país, diz ele, se tornou
uma economia exportadora antes de adotar qualquer incentivo à indústria, em
razão da desvalorização da moeda nos anos 1960. “A política industrial só
começou (...) entre 1973 e 1979”, diz Irwin. “O crescimento rápido já tinha
sido deflagrado.”
A China comprova como incentivos a
indústrias “estratégicas” costumam dar errado. Um estudo de economistas das
universidades Harvard e Cornell concluiu que subsídios chineses à indústria
naval — uma das preferidas de Lula —, embora tenham aumentado sua presença no
mercado, “criaram distorções significativas e levaram a ociosidade e
fragmentação”. Estatais chinesas foram favorecidas, mas não houve benefícios
para o resto da economia.
Outro fracasso da política industrial
chinesa foi a tentativa de criar um competidor para Boeing e Airbus com a
aeronave Comac C919. Mesmo com investimentos de US$ 70 bilhões para desenvolver
o projeto, a entrega atrasou cinco anos, e nenhuma autoridade fora da China
homologou o novo avião. “Apesar do êxito na política industrial que desenvolveu
sua rede ferroviária doméstica de alta velocidade, a China foi incapaz de
reproduzir a conquista na competitiva indústria de aviação”, diz Irwin. O país
não enriqueceu pela política industrial, mas pelo aumento de produtividade
agrícola, investimento estrangeiro em manufatura e liberdade para o setor
privado.
“Só porque Estados Unidos, China ou União
Europeia podem se dar ao luxo dos subsídios não significa que outros países
devam segui-los”, afirma Irwin. “Economias em desenvolvimento não podem
oferecer subsídios generosos a produtores locais quando seu equilíbrio fiscal é
precário e os retornos incertos. Fundos públicos escassos são gastos de modo
mais eficaz melhorando a saúde, a educação e ajudando os pobres do que
dirigidos a indústrias domésticas.” O recado para o Brasil não poderia ser mais
claro.
Encolhimento de municípios não justifica
crítica a resultado do Censo
O Globo
Quase 800 cidades deverão perder repasses
federais. A gritaria expõe os abusos na criação de municipalidades
Em dezembro, centenas de prefeitos
estrilaram quando o IBGE divulgou
a prévia do Censo 2022
mostrando queda na população brasileira. Em muitas cidades, a redução
significava perdas no bolo de R$ 188 bilhões do Fundo de Participação dos
Municípios (FPM), pois um dos critérios usados na distribuição dos recursos é a
população. Os inconformados correram ao Supremo Tribunal Federal (STF) e
obtiveram uma liminar do então ministro Ricardo Lewandowski sustando mudanças
no fundo até que a pesquisa fosse concluída.
Mal sabiam os prefeitos que a redução
apontada na época, quando a população foi estimada em 207.750.291 habitantes,
era até otimista em comparação com o resultado final divulgado no mês passado. A
população apurada no Censo é de 203.062.512 brasileiros. Nunca,
desde que a pesquisa começou a ser feita, em 1872, o crescimento populacional
foi tão baixo: 0,52% ao ano nos últimos 12 anos.
O encolhimento das cidades é uma realidade.
Dos 5.570 municípios, 2.399, ou quatro em cada dez, perderam habitantes entre
2010 e 2022. Isso aconteceu em todas as regiões. Um terço das capitais,
incluindo Rio e Belo Horizonte, está nessa situação. Apenas duas das 27
unidades da Federação — Distrito Federal e Roraima — seguiram na contramão e
registraram crescimento populacional em todos os municípios.
Diante desses dados, não surpreende o novo
levante dos prefeitos, que ameaçam ir à Justiça pedir revisão do Censo. De
acordo com a Confederação Nacional dos Municípios, 770 cidades deverão receber
menos recursos. As perdas são estimadas em R$ 3 bilhões e se concentram nas
regiões Norte e Nordeste. O FPM é a principal fonte de receita para cerca de
70% dos municípios brasileiros.
Compreende-se a insatisfação dos prefeitos,
que têm contas a pagar e menos dinheiro, mas de nada adianta mirar o Censo. É
verdade que ele enfrentou uma série de contratempos. Primeiro, foi a pandemia,
que impediu os recenseadores de ir às ruas. Depois, faltaram orçamento e
vontade política. A pesquisa só começou depois de determinação do STF. Iniciado
o trabalho de campo no ano passado, houve sucessivos atrasos, devidos à
escassez de recenseadores, a problemas logísticos e à alta taxa de recusa para
responder aos questionários. Mas nada disso é motivo para pôr em dúvida o
resultado.
A perda de população — e, consequentemente, de verbas do FPM — apenas expõe um problema crônico. Municípios que já não têm condições de bancar suas despesas e vivem basicamente de repasses dos governos agora passam a ter menos ainda. Na grande maioria dos casos, a arrecadação não justifica a existência de toda a estrutura administrativa associada às municipalidades. Desmembrar municípios se tornou um negócio no Brasil após a Constituição de 1988, e só depois os critérios foram ajustados para evitar abusos. A conta até hoje vai para a sociedade. O Censo não tem nada a ver com isso.
Reacomodação
Folha de S. Paulo
Lula e Tarcísio dão sinais de pragmatismo
enquanto país debate reformas cruciais
Observou-se nos últimos dias uma
reacomodação de forças na política brasileira. Abandonaram-se, ao menos por
ora, o radicalismo estridente, a ideologia rasteira e o sectarismo infértil em
favor de uma agenda promissora para o futuro.
Foram gestos pequenos, não grandiloquentes;
indicam retorno à média, não transformação profunda; decorrem de cálculo
pragmático, não da busca de um ideal. Talvez seria pouco alhures, mas não num
Brasil após quatros anos de Jair Bolsonaro (PL).
Partiram, esses gestos, de dois nomes que,
no atual cenário, despontam como possíveis antagonistas na eleição de 2026: o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o governador Tarcísio de Freitas
(Republicanos), de São Paulo.
Derivou de Tarcísio a iniciativa mais
inusitada. A princípio contrário ao projeto de reforma tributária que tramita
no Congresso, mudou de posição após uma conversa republicana com o petista
Fernando Haddad, ministro da Fazenda.
O governador de São Paulo foi além. Durante
reunião do PL, defendeu o texto da reforma diante do inelegível
Bolsonaro, com quem teve
um desentendimento público.
Tarcísio entendeu que o país tem muito a
ganhar com um novo marco tributário, a ponto de essa discussão ultrapassar as
fronteiras estreitas da disputa partidária. O ex-presidente assumiu uma posição
sectária contra a proposta, baseado em argumentos primários.
Já Lula deu a Haddad o respaldo necessário
para fazer avançar a pauta econômica, baseada, ademais da reforma tributária,
na nova regra fiscal. Foram mais do que boas conversas e muitos rapapés, dos
quais políticos não abrem mão; o apoio incluiu esforços concretos para montar,
no Congresso, uma base capaz de aprovar as propostas.
O governo de esquerda precisa acostumar-se
a lidar com um Legislativo de outra vertente. A aproximação demanda, por
exemplo, ceder em certas ideias para conquistar um acordo em algum ponto entre
os extremos —nada mais que uma negociação, que Lula conhece bem, mas o PT, nem
tanto.
O pragmatismo também reúne aspectos
problemáticos. Envolve uma liberação
recorde de emendas às vésperas das votações importantes, que ameaça
a qualidade do gasto público, e um rearranjo nos ministérios, a fim de
assegurar a fidelidade de legendas estratégicas —caso da União Brasil e seu
pleito pela pasta do Turismo.
Há, sem dúvida, algo a lamentar nessas
barganhas e um tanto a comemorar nas negociações. Salvo pela possibilidade de a
reforma tributária andar, nada disso é novidade na política brasileira. Pouco
importa. Se superada a polarização estéril, a normalidade tem o peso de uma
revolução.
Pressa com a dengue
Folha de S. Paulo
É preciso agilizar burocracia para fornecer
vacina contra a doença no SUS
Desde o começo da série histórica do
Ministério da Saúde sobre a incidência da dengue, em 2000, observa-se aumento
da gravidade da moléstia, com mais casos notificados, hospitalizações e óbitos.
Entre 2000 e 2010, foram registrados 4,5
milhões de casos e 1.869 mortes. Já na década seguinte, os números saltaram
para 9,5 milhões e 5.385, respectivamente.
Uma vacina para conter essa arbovirose
—doença transmitida por insetos— é, portanto, premente.
A boa notícia é que o imunizante japonês Qdenga, que tem eficácia de 80%, foi
aprovado para venda no país em março. A má notícia
é que ele custa no mínimo R$ 301,27 e, pior, não se sabe quando
será ofertado pelo sistema público de saúde.
Isso porque a vacina corre o risco de se
perder nos meandros kafikianos da burocracia estatal. Mesmo com aval da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária, que atestou segurança e eficácia para
comercialização, ela ainda precisa ser analisada pela Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde para ser distribuída
gratuitamente.
O laboratório japonês pretende solicitar
pedido à Conitec neste mês, porém o prazo para o parecer do órgão é de 180
dias. Nos primeiros 180 dias deste ano, já foram registrados mais de 1,3 milhão
de casos, e 635 brasileiros morreram devido à dengue.
Não faz sentido que pequena parcela da
população, a que pode pagar, tenha acesso ao imunizante enquanto a maioria
fique à mercê de um vírus que pode ser fatal.
Os ciclos epidêmicos de dengue vêm se
agravando neste século, mas o gasto público para pesquisas sobre arboviroses se
manteve praticamente estagnado entre 2004 e 2020, segundo levantamento feito
pela Universidade de Brasília.
Ademais, 81% da verba foi para pesquisas
biomédicas, que investigam mecanismos das doenças, e só 11% foram
para pesquisas clínicas, que podem gerar vacinas.
Há 14 anos o Instituto Butantan desenvolve
um imunizante, mas a data prevista para submissão do estudo à Anvisa é dezembro
de 2024.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o fenômeno El Niño, ao provocar fortes chuvas na América do Sul, tende a aumentar a disseminação de arboviroses em 2023 e 2024. Um país tropical com histórico de crises sanitárias causadas pelo mosquito da dengue deveria racionalizar a alocação de recursos e agilizar a burocracia para combater essa enfermidade.
Bolsonaro, nanico moral e político
O Estado de S. Paulo
O autoproclamado grande líder da direita
não lidera ninguém.
Sempre houve especulações sobre o real
tamanho que Jair Bolsonaro teria na vida nacional após deixar a Presidência da
República. O tema ganhou novo destaque após a decisão do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) que o tornou inelegível por oito anos. Qual será de fato o
papel do ex-presidente na política brasileira? Sem poder se candidatar, qual
será sua influência na vida nacional?
Nesta semana, o assunto saiu do campo da
especulação e pôde ser observado na realidade. No dia 4 de julho, Jair
Bolsonaro lançou um manifesto contra a reforma tributária em tramitação na
Câmara, qualificando-a de “verdadeiro soco no estômago dos mais pobres”. O
ex-presidente conclamou os deputados do seu partido, o PL, “pela rejeição total
da PEC da reforma tributária”.
Em tese, era de esperar que um posicionamento
tão incisivo, vindo de alguém que obteve 58 milhões de votos no segundo turno
das eleições do ano passado, despertasse alguma comoção e representasse algum
empecilho à tramitação da reforma tributária. A voz do autoproclamado grande
líder da direita nacional – que se apresenta como representante do liberalismo
e dos interesses do empresariado – deveria produzir alguma consequência sobre
tema tão fundamental para o desenvolvimento social e econômico do País. No
entanto, a oposição de Jair Bolsonaro à reforma tributária não gerou
rigorosamente nenhum efeito. Nem no seu partido nem também naquele que é
considerado um dos principais sucessores do bolsonarismo, o governador de São
Paulo, Tarcísio de Freitas.
Ainda que seja paradoxal, tendo em vista o
cargo que Jair Bolsonaro ocupou até o fim do ano passado, a nulidade do
manifesto bolsonarista contra a reforma tributária não deve, a rigor,
surpreender ninguém. Ela expõe a exata dimensão da figura de Bolsonaro na vida
nacional. Está em plena conformidade com suas quase três décadas de completa
irrelevância como deputado federal.
Em 2018, diversos grupos sociais e
políticos apoiaram a candidatura de Jair Bolsonaro. Mas esse apoio, como agora
uma vez mais se comprova, foi meramente circunstancial. Bolsonaro nunca foi
capaz de articular politicamente setores e grupos da sociedade. Basta ver sua
trajetória de trocas contínuas de legendas e o fracasso, mesmo estando na
Presidência da República, na hora de criar seu próprio partido. Uma coisa é
organizar motociatas ou ter muitos seguidores (e robôs) nas redes sociais.
Outra, bem diferente, é exercer uma efetiva liderança política, congregando
interesses por meio de ações políticas coordenadas.
Com a publicação do manifesto bolsonarista
contra a reforma, maliciosa e falsamente chamada no texto de “reforma
tributária do PT”, era nítida a pretensão de Jair Bolsonaro de se recolocar
como a grande liderança antipetista. Eis sua estatura moral. Na tentativa de
alavancar popularidade, não teve pudor de opor-se integralmente à proposta,
fruto de anos de trabalho legislativo, que busca superar um dos grandes
entraves nacionais. O resultado da manobra foi, no entanto, um grande fiasco.
Ninguém fez caso da sua opinião.
Evidencia-se aqui outro aspecto da pequenez
de Jair Bolsonaro. Não é mera ausência de capacidade de articulação política.
Diante de um cenário nacional de debate longamente amadurecido sobre o sistema
tributário, seu manifesto pela “rejeição total” da reforma explicitou que
Bolsonaro não tem nada a propor ao País. Seu discurso é feito exclusivamente de
chavões e de desinformação. Não tem diagnóstico, não tem proposta, não tem
argumento. Ou seja, a indiferença ao tal manifesto, tanto por parte dos agentes
políticos como pelos vários setores da sociedade envolvidos diretamente na
discussão da reforma, era mais que natural. Não havia nenhum motivo para alguém
gastar tempo com tão evidente disparate.
Se é triste constatar a diminuta dimensão
moral e política de quem ocupou a Presidência da República por quatro anos, é
alvissareiro reconhecer que Jair Bolsonaro volta a ter agora o exato peso que
sempre mereceu ter. A mais cabal e rigorosa irrelevância.
Lula, os evangélicos e o espírito
republicano
O Estado de S. Paulo
Atender os evangélicos não é beneficiar
financeiramente lideranças religiosas, com novas isenções fiscais. É governar
responsavelmente, respeitando os valores de cada um
Para melhorar a relação com os evangélicos,
o Palácio do Planalto estuda a possibilidade de apoiar projetos de lei que
ampliam benefícios e isenções fiscais às igrejas. É realmente desolador. O PT
não faz nenhum esforço para compreender as reais aspirações dessa parcela da
população. No entanto, querendo obter com ela rendimentos político-eleitorais,
o governo Lula se movimenta para atender a interesses pouco republicanos de
lideranças religiosas.
Antes de mais nada, é preciso fazer uma
distinção. As isenções fiscais que a bancada evangélica almeja – seja qual for
o governo, ela sempre está em busca de um benefício monetário a mais – não
atendem aos interesses dos fiéis dessas igrejas. Elas atendem apenas e
exclusivamente aos bolsos dos líderes e administradores dessas igrejas.
Na proteção do exercício efetivo da
liberdade religiosa, a Constituição de 1988 proíbe que a União, os Estados e os
municípios instituam “impostos sobre templos de qualquer culto” (art. 150,
inciso VI, alínea b). Trata-se de medida adequada, que assegura o funcionamento
das igrejas e, em último termo, a liberdade de culto. Nenhum templo será
fechado por não pagar imposto, porque o Estado, em suas diversas esferas, não
pode cobrar impostos das igrejas. Este é o interesse dos fiéis: que possam
livremente praticar sua fé.
No entanto, há uma parcela de lideranças
religiosas que quer mais do que o livre exercício da fé. Almeja mais isenções
fiscais; em outras palavras, melhores condições financeiras para suas
atividades. Exemplo disso ocorreu no governo Bolsonaro, quando o Congresso
estendeu a imunidade tributária prevista na Constituição à cobrança da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). É esquisito que entidades
“religiosas” façam distribuição de lucro. Na ocasião, dissemos que tal prática
“deveria levar a um questionamento se essas entidades fazem jus à imunidade
tributária prevista na Constituição” (O escândalo dos vetos, 19/3/2021). No
entanto, não apenas fizeram a distribuição, como conseguiram não mais pagar
CSLL sobre esses valores.
Agora, na busca por condições mais
benéficas para as igrejas, a bancada evangélica deseja isentar de imposto toda
compra de bem ou serviço feita por um CNPJ de igreja. A rigor, pretende-se
criar um feudo de imunidade: tudo o que supostamente se relacionar com uma
entidade religiosa estaria imune de tributos. Ou seja, mais do que uma igreja,
essas lideranças querem ter um negócio altamente lucrativo. Outra frente de
pressão da bancada evangélica é a liberação da tributação da folha de pagamento
dos empregados das igrejas.
Um governo responsável com o interesse
público, que deseja prover condições para políticas públicas efetivas, tem o
dever de resistir a pressões não republicanas da bancada evangélica. Foi
justamente cedendo a esse tipo de demanda que se construiu no País, ao longo
dos anos, um sistema tributário disfuncional, complexo e injusto. Se o
presidente Lula deseja aproximar-se da população evangélica, mais do que
facilitar que pastores e líderes religiosos tenham negócios altamente
lucrativos, é preciso atender aos reais interesses dessa parcela da população.
Como todos os brasileiros, querem inflação baixa, emprego, atendimento médico
adequado, escola de qualidade, segurança na sua rua, transporte público
pontual, saneamento básico e tantos outros serviços que não se relacionam com
ser de esquerda, de direita ou de centro.
Atender aos interesses reais das pessoas de
fé não é, portanto, beneficiar financeiramente lideranças religiosas. É
governar responsavelmente. Em vez de se tornar refém dessas lideranças que
distribuem lucros e querem transformar o CNPJ de suas entidades num passe de
mágica para o não pagamento de tributos, Lula e o PT têm a obrigação de
respeitar a população evangélica, a começar por não desautorizar sua
compreensão de mundo, majoritariamente conservadora, que valoriza a família
tradicional. O pluralismo democrático exige respeito efetivo aos valores de
cada cidadão.
Transbordamento de uma tragédia
O Estado de S. Paulo
Crescimento da população de Roraima decorre
da crise na Venezuela e impõe enorme desafio ao Brasil
O aumento expressivo da população de
Roraima, o maior registrado no País nos últimos 12 anos, como apontou o Censo
2022, colocou diante do governo do Estado – e do governo federal, na medida de
sua responsabilidade – um desafio sem precedentes na história recente. Como
administrar um salto tão concentrado de 41,2% na população, que saiu de 450 mil
habitantes, em 2010, para 636 mil, em 2022, mantendo a oferta de serviços
públicos em patamares mínimos de qualidade?
Esse crescimento populacional em escala
inaudita está diretamente relacionado, é evidente, ao fluxo migratório
decorrente da tragédia humanitária na Venezuela, país com o qual o Brasil
divide uma fronteira de 2,2 mil km. A violência e a fome resultantes dos
desmandos do ditador Nicolás Maduro têm levado milhões de venezuelanos a buscar
guarida em países vizinhos, sobretudo Colômbia e Brasil. De acordo com o
Ministério da Justiça, entre 2017 e 2022, 702 mil venezuelanos viram o Brasil
como a via de acesso para uma nova vida; cerca de metade desse contingente aqui
permaneceu e fez do País a sua nova pátria.
Para escapar dos horrores do regime
chavista, os venezuelanos mais ricos emigraram para os Estados Unidos e para a
Europa; os mais pobres não puderam ir tão longe. Os milhares que chegaram ao
Brasil aumentaram sobremaneira a demanda por serviços públicos oferecidos pelos
governos estaduais, particularmente o de Roraima, que recebeu o maior afluxo de
estrangeiros. Isso, é claro, custa dinheiro. Ao Estadão, o governador do
Estado, Antonio Denarium, disse que tem cobrado do governo federal o
ressarcimento pelo custeio desses serviços, sem sucesso. “Crescemos tudo isso
(em número de habitantes) e pagamos sozinhos o gasto com saúde, educação e
segurança”, disse o governador.
A bem da verdade, o governo federal
contribuiu para a ajuda humanitária por meio da Operação Acolhida, iniciada em
março de 2018. A operação estabeleceu abrigos provisórios para os refugiados
venezuelanos na área urbana de Boa Vista e alguma infraestrutura de
acolhimento. O papel do Exército nessa empreitada foi, e continua sendo,
decisivo para o bom andamento das ações humanitárias. Contudo, como toda ação emergencial,
passadiça por definição, a Operação Acolhida tem deficiências e ao Palácio do
Planalto cabe a responsabilidade de dar-lhes soluções.
A gestão de uma crise migratória dessa
magnitude impõe a atuação coordenada dos governos nas três esferas administrativas.
É fundamental um planejamento adequado, centralizado pelo governo federal, para
lidar com o aumento da demanda por serviços de saúde, moradia, segurança e
educação em Roraima de forma perene, haja vista que muitos refugiados, como foi
dito, vieram para ficar.
O presidente Lula da Silva precisa
compreender que a crise provocada pelo arbítrio de seu “companheiro” Maduro tem
impacto direto no bem-estar de milhares de brasileiros e venezuelanos.
Condescender com o furor liberticida de Maduro só contribui para agravar a
crise.
Uma Venezuela democrática e estável
representará um novo sopro de vida para milhões de pessoas, inclusive, e
sobretudo, no Brasil.
A reforma deixa o Brasil menos injusto
Correio Braziliense
Além da simplificação, que dará
transparência ao regime tributário, a reforma resultará em mais justiça fiscal
O Brasil deu um passo enorme com a
aprovação, pela Câmara dos Deputados, da reforma tributária. Cabe, agora, ao
Senado ratificar as mudanças no mais sistema de impostos mais complexos do
mundo, para que, enfim, o país entre em um novo e consistente processo de
crescimento econômico, com mais empregos e renda. Sabe-se que há várias
imperfeições na proposta elaborada pelo relator Aguinaldo Ribeiro, mas pior
seria a frustração de um debate enterrado pela demagogia, pelo fisiologismo e
pela ideologia. A reforma tributária é um projeto de Estado, não de governos ou
de lideranças políticas específicas.
O cipoal de alíquotas e regras que hoje
inibem o ambiente de negócios e os investimentos produtivos será substituído
pelo imposto sobre valor agregado (IVA), composto por apenas dois tributos, a
Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), resultado da fusão do IPI, do PIS e
da Cofins, e o Imposto sobre Bens e Consumo (IBS), integrando o ICMS estadual e
o ISS municipal. Além de evitar aberrações como a cumulatividade de impostos e
os impagáveis créditos tributários, o futuro sistema deixará explícito à
sociedade o quanto ela recolhe aos cofres públicos sobre tudo o que consome. É
assim na maior parte do mundo civilizado.
Além da simplificação, que dará
transparência ao regime tributário, a reforma resultará em mais justiça fiscal.
Em termos proporcionais, os pobres e a classe média pagam mais impostos do que
os ricos. Dados da Receita Federal apontam que, de tudo o que entra no caixa do
Tesouro Nacional, 75% são impostos sobre o consumo e a renda do trabalho. Essas
distorções vêm sendo debatidas há mais de 30 anos, mas só agora se teve a
coragem de se enfrentar os lobbies poderosos que sempre embarreiraram o
discurso em favor de um ajuste no sistema de impostos do país. Não havia mais
porque se render a uma minoria que grita alto e fechar os olhos e ouvidos para
a injustiça com a maioria da população.
E há de se registrar: esta é a primeira
reforma tributária realizada desde que o Brasil se livrou da ditadura militar.
É emblemático. Contudo, a proposta que saiu da Câmara com apoio estrondoso e
deverá ser ratificada em breve pelos senadores é apenas a primeira etapa de
mudanças mais profundas que devem ser feitas. O que se está corrigindo agora é
a tributação sobre o consumo. O passo seguinte será reduzir as desigualdades
nos impostos que incidem sobre a renda. Apenas a correção da tabela do Imposto
de Renda pode livrar quase 20 milhões de contribuintes que ganham até R$ 5 mil
por mês das garras do Leão. O que essas pessoas deixarão de pagar será mais do
que compensado pela tributação sobre lucros e dividendos. Apenas Brasil e
Estônia não taxam essa fonte de recursos usada pelos mais ricos para fugir do
Fisco.
Há de se pontuar, ainda, a importância de
os parlamentares, em sua maioria, não terem se rendido aos disparates propagados
pela extrema direita. Líderes desse grupo radical acreditaram ter força para
manter o Brasil com os dois pés fincados no atraso. Não só saíram menores desse
episódio, por total falta de credibilidade, como viram o surgimento de uma
direita moderada, que entende as demandas da população e está disposta a manter
o equilíbrio necessário dentro do sistema democrático.
Daqui em diante, é vital que a sociedade eleve a pressão sobre o Congresso para que a reforma tributária efetivamente passe a valer, respeitando seus prazos — a CBS e o IBS serão adotados gradualmente em 2026, passando a valer, integralmente, em 2033. A gritaria dos que gostam de exceções será forte — alguns, infelizmente, mantiveram os privilégios —, mas esse movimento será calado pela racionalidade e pelo real desejo de um Brasil menos desigual e com potencial maior de crescimento. Estima-se que a reforma tributária elevará o Produto Interno Bruto (PIB) em 20 pontos percentuais nos próximos 15 anos. É muito.
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