Sucesso de Milei na Argentina deve servir de alerta
O Globo
Vitória do populista nas primárias é sinal
da ameaça da extrema direita no continente americano
O candidato populista de extrema direita à
Presidência da Argentina, Javier Milei,
foi o mais votado domingo nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias
(Paso), fase em que os eleitores determinam os nomes na cédula do primeiro
turno, previsto para 22 de outubro. Com 30% dos votos, Milei, do partido A
Liberdade Avança, ficou à frente da coligação de centro-direita Juntos pela
Mudança (28,2%), liderada por Patricia Bullrich, e da peronista União pela
Pátria (27,2%), encabeçada por Sergio Massa. Os peronistas amargaram um inédito
terceiro lugar, com o pior desempenho desde a redemocratização.
Não surpreende que um político demagogo, quase caricato, como Milei tenha se aproveitado do naufrágio do peronismo. De certa maneira, a surpresa é que tenha demorado tanto. Nas últimas duas décadas, a Argentina seguiu à risca o roteiro que a torna, desde os anos 1930, o exemplo de maior decadência econômica em tempos de paz nos últimos séculos. Não bastasse o populismo econômico de Néstor e Cristina Kirchner, o ex-presidente Mauricio Macri errou ao apostar no endividamento externo e engendrou mais uma bancarrota argentina.
A volta do peronismo ao poder, com Alberto
Fernández, em nada melhorou a situação. Em março, a inflação em 12 meses passou
de 100%. Como costuma ocorrer nesses casos, a corrosão dos salários tem gerado
pobreza. A taxa de câmbio voltou a disparar ontem com o resultado das
primárias. O populismo de esquerda preparou o terreno para o populismo da
extrema direita.
Os próximos meses serão cruciais para o futuro
da democracia argentina. Milei é frequentemente comparado a Jair Bolsonaro ou a
Donald Trump pelo estilo despachado, pelo jeitão autêntico com a cabeleira
desgrenhada, pela capacidade de mobilizar apoio nas redes sociais e pela
semelhança com outros outsiders que têm tomado a democracia de assalto mundo
afora.
Mas seu perfil é distinto. Ele até tem
vínculos com as Forças Armadas, mas nada comparável a Bolsonaro. Economista
cuja popularidade cresceu graças a comentários explosivos na televisão, está
mais próximo do ideário libertário que do conservador. Fala menos de aborto ou
armas que em ideias extravagantes, como autorizar a venda de órgãos humanos,
extinguir o Banco Central ou dolarizar a economia para combater a inflação.
Para problemas complexos, oferece soluções fáceis e equivocadas. Se eleito,
mesmo que não consiga pôr em prática tudo o que promete, seu governo seria
desastroso.
Bullrich, do grupo político de Macri, e o
peronista Massa passarão os próximos dias tentando criar uma estratégia para
derrotá-lo. Ambos falarão em voto útil, e é impossível saber quem passará para
o segundo turno. A crise do peronismo leva Milei a ter mais chance contra Massa
do que contra Bullrich, mas é impossível prever qualquer resultado diante do
comportamento do eleitorado.
A abstenção no domingo foi a maior para uma
primária desde a redemocratização. Apenas 68% votaram. É incerto quanto desse
descontentamento Milei conseguirá capturar em outubro ou quantos eleitores se
sentirão compelidos a votar para impedir sua vitória. O certo é que o populismo
de extrema direita, vivo nos Estados Unidos com o trumpismo e no Brasil com o
bolsonarismo, continua a ameaçar o continente americano.
Tentativa de aumentar fundo eleitoral é
constrangedora para o Parlamento
O Globo
Defensores do aumento não estão satisfeitos
nem com R$ 4,9 bilhões aprovados em 2022 e querem mais
Não tem cabimento a movimentação de
parlamentares para aumentar o fundo eleitoral, que financia as campanhas
políticas. O Congresso articula mudança na Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) com o objetivo de elevar os recursos, contrariando a expectativa do
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de manter em 2024 os mesmos R$ 4,9
bilhões de 2022. Defensores do aumento falam em subir o valor para R$ 5,7
bilhões, mesma quantia aprovada pelo Congresso em 2021 e vetada pelo então
presidente Jair Bolsonaro. Na ocasião, a manutenção dos gastos em R$ 2,1
bilhões (valor de 2018 corrigido pela inflação) teria sido mais que suficiente.
O fundo eleitoral surgiu em 2015, depois
que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais as doações
feitas por empresas para campanhas políticas. A decisão ocorreu em meio à
sucessão de escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava-Jato
envolvendo contribuições por caixa dois. A intenção do Judiciário era moralizar
as campanhas eleitorais, mas os políticos descobriram outras formas de
desvirtuá-las.
Os argumentos para defender a gastança
eleitoral são os mais estapafúrdios. Sustenta-se que o fundo atual é
insuficiente para os partidos divulgarem todos os seus candidatos num país de
dimensões continentais. “É preciso chegar a um valor que seja compatível com o
tamanho do Brasil e das eleições”, diz o relator da LDO, deputado Danilo Forte (União-CE).
Se o fundo eleitoral fosse realmente insuficiente para realizar as campanhas
políticas, não sobraria dinheiro para fazer churrascadas, construir piscinas,
comprar talheres e taças de vinho, alugar frotas de carros milionárias e outros
descalabros perpetrados com recursos públicos destinados às eleições.
Evidentemente, nem todos os candidatos ou
partidos fazem mau uso dos recursos. Em tese, o fundo é importante para
proporcionar equilíbrio na disputa. As prestações de contas claudicantes ao TSE
mostram, porém, que na prática não funciona assim. O controle sobre os recursos
é cada vez mais frágil. Não por culpa da Justiça Eleitoral. Mas porque as
maracutaias detectadas nas análises das contas partidárias tendem a ficar
impunes. Há sempre uma movimentação do Congresso para perdoá-las. Agora mesmo,
quando parlamentares pressionam pelo aumento do fundo eleitoral, tramita no
Congresso uma PEC que concede a maior anistia da História recente aos partidos.
Há também quem defenda, como o presidente
do Republicanos, deputado Marcos Pereira, que o fundo seja corrigido ao menos
pela inflação. Seria uma medida razoável, desde que a base adotada fosse o ano
de 2020, quando a despesa somou R$ 2 bilhões, mas não os R$ 4,9 bilhões de
2022. No Brasil de “dimensões continentais”, falta dinheiro para atender às necessidades
mais básicas. O governo anunciou bloqueio de R$ 1,5 bilhão no Orçamento deste
ano (metade em saúde e educação), porque a estimativa de gasto superou o teto.
Diante disso, deveria causar constrangimento aos parlamentares reivindicar o
aumento do fundo eleitoral.
Vitória de Milei põe em xeque sistema
político argentino
Valor Econômico
Peronistas e frente de centro-direita
perdem força nas primárias, vencidas pela extrema-direita
Javier Milei, de extrema direita, venceu as
primárias obrigatórias na Argentina, lançando uma onda de choque que ameaça os
partidos tradicionais e põe novos e angustiantes pontos de interrogação sobre o
desdobramento da crise econômica e política do país. Depois de um início
promissor, Milei vinha voando baixo nas pesquisas mais recentes. Sua vitória,
com 30,04% do total e 7,11 milhões de votos, surpreendeu a todos. O Banco
Central promoveu desvalorização oficial de 18% no peso e elevou a taxa de juros
para 118%, em uma alta de 21 pontos. Os argentinos voltam às urnas para a
eleição do presidente, metade da Câmara dos Deputados e um terço do Senado em 22
de outubro.
“Estamos diante do fim do modelo de casta,
esse modelo baseado na atrocidade que diz que onde há uma necessidade nasce um
direito, enquanto se esquece de dizer que alguém terá de pagar por esse
direito”, disse Milei logo após a vitória, repetindo seu mantra de campanha
contra os políticos em geral. Um resultado excepcional nas primárias
obrigatórias muda as chances do candidato de A Liberdade Avança. Sua campanha,
vista como exótica e quixotesca, pode atrair o apoio que não teve até agora no mundo
político, arrastando adeptos diante da perspectiva de poder.
O trunfo de Milei foi disseminado. Ele
venceu em 16 das 23 províncias argentinas, entre elas algumas das mais
importantes, como Córdoba, Mendoza, Santa Fe e Tucumán. Se repetir o mesmo desempenho
em outubro, a bancada da extrema-direita na Câmara dos Deputados poderá subir
dos atuais 3 para até 40, pouco menos de um terço dos 130 cargos em disputa. No
Senado, poderia arrebatar 8 das 24 cadeiras em jogo (jornal Ambito Financiero,
ontem).
Pela primeira vez desde o fim de uma das
mais violentas ditaduras da América Latina, em 1983, parcela significativa dos
argentinos parece votar em candidatos que não têm visão negativa daqueles anos
sombrios. A candidata a vice de Milei, Patricia Villarruel, contesta o número
de mortos pelos militares e disse que os terroristas nos anos 1970 tomaram o
poder e reescreveram a história. Milei não defende explicitamente a ditadura,
mas é conivente com ela e ferrenho anticomunista, além de contra o aborto e a
favor das armas. Alinha-se com Jair Bolsonaro, a quem cumprimentou, mesmo
derrotado, pelo resultado nas últimas eleições. Acha que o povo brasileiro, ao
dar vitória a Lula, “elegeu quem vai destruí-lo”.
Milei se diz anarcocapitalista, a favor de
privatizar tudo, fechar o Banco Central e dolarizar a economia. Ao fazer isso,
os cidadãos poderão “escolher sua moeda e não serem obrigados a suportar a
moeda emitida pelos políticos argentinos”. Essas ideias são dinamite pura em
uma economia em recessão de um país que já perdeu autonomia sobre sua moeda e
vive aguda escassez de divisas.
Milei segue em posição confortável - nada
tem a perder com a crise que atravessou mandatos dos partidos tradicionais,
como o de Mauricio Macri e o peronista de Alberto Fernández e Cristina
Kirchner. Tanto o Juntos pela Mudança, que reúne adeptos de Macri e os
radicais, quanto o União pela Pátria, das várias correntes peronistas, tiveram
resultados muito ruins nas primárias.
Os peronistas, ao se classificarem em
terceiro lugar, com 27,2% dos votos, amargaram o pior desempenho até hoje neste
tipo de disputa. Perderam 5 milhões de votos em quatro anos (Clarín, ontem).
Individualmente, Sergio Massa, candidato e ministro da Economia, foi o segundo
mais votado, com 21,7% do total, ou 5,07 milhões, à frente de Patricia
Bullrich, macrista, com 3,9 milhões. O Juntos pela Mudança perdeu 1,5 milhão de
votos e teve menos sufrágios que o derrotado Macri em 18 dos 24 distritos
eleitorais do país.
Massa, candidato peronista, comandou piora
substancial da economia, conseguindo apenas evitar uma desvalorização cambial
desordenada que levaria o país ao caos. Moderado, com pontes na centro-direita,
no kirchnerismo e na esquerda, ele delineia um campo político bem distinto do
direitismo de Milei.
Já Patricia Bullrich tem um problema. Seu
discurso mais duro sobre a segurança pública e a corrupção a aproxima do
eleitorado de Milei, mas pode alienar os moderados, que escolheram Horacio
Larreta, que concorreu à nomeação e teve 2,65 milhões de votos. Parte deles
pode se bandear para o lado de Sergio Massa se a candidata escolhida
radicalizar seu discurso para tentar vencer Milei em seu campo. A moderação no
discurso, no entanto, não lhe dá muitos trunfos em relação ao peronista Massa,
que teve um milhão de sufrágios a mais que ela no domingo.
O surgimento de um radical de direita com chances de vitória encolheu o campo do centro, que tende a ser vítima de voto útil nos dois lados do espectro político. As chances de Patricia Bullrich galvanizar o voto peronista, com o alijamento de Massa da disputa no primeiro turno, é pouco provável. Desde 1945 não houve eleições livres sem que o peronismo fosse competitivo, a menos que o salto no escuro representado por Javier Milei tenha alterado radicalmente as percepções dos eleitores argentinos.
Guinada argentina
Folha de S. Paulo
Com derrocada econômica, primárias para
Casa Rosada reforçam oposição à direita
Tornou-se quase eufemístico descrever a
situação da Argentina como uma crise. Mais do que transtornos conjunturais, o
país vizinho vive há anos um processo de degradação das instituições econômicas
e de dissenso político que inviabiliza as reformas necessárias.
É nesse contexto que se dá a ascensão de um
candidato exótico, Javier Milei, o mais votado nas primárias para a Casa Rosada
realizadas no domingo (13). A tendência a uma guinada se completa com o segundo
lugar obtido pela coalizão oposicionista a ser encabeçada pela conservadora
Patricia Bullrich.
As primárias são uma peculiaridade do
sistema eleitoral argentino. Antes do pleito, cujo primeiro turno está marcado
para outubro, os eleitores manifestam previamente suas preferências nas urnas,
de modo a eliminar candidaturas irrelevantes e a definir disputas dentro dos
partidos e coalizões.
O rito mostrou a força espantosa de Milei,
um deputado que se define como "anarcocapitalista" e é classificado,
a depender do ponto de vista, como de extrema direita, ultraliberal ou
libertário.
É mais útil apresentar seu ideário e sua
conduta. Economista com passagem pelo setor financeiro, ele prega cortes
radicais de despesa pública e redução drástica de regulações do Estado —com
um voluntarismo que parece desconhecer obstáculos legais e políticos.
Discursa contra a política, embora seja um
congressista. Nesse aspecto, aproxima-se do bolsonarismo, do qual recebe
manifestações de simpatia. Defende o acesso a armas e combate o aborto. Com
frequência se expressa de modo chulo e recorre a bravatas.
Já Patricia Bullrich foi ministra da
Segurança do ex-presidente Mauricio Macri, liberal que governou o país de 2015
a 2019 e fracassou em seu programa de ajustes. A
presidenciável adota uma retórica linha-dura contra a criminalidade.
O governismo peronista, representado pelo
ministro da Economia, Sergio Massa, ficou em um modesto terceiro lugar das
primárias —efeito óbvio de uma inflação que passa dos 100% ao ano enquanto a
administração recorre à emissão de moeda para fechar suas contas, elevando a
pobreza, a desigualdade e a fome.
A eleição argentina é realizada em dois
turnos, o que, ao menos em tese, contribui para a aglutinação de forças e a
moderação de discursos. Há tempo para uma reconfiguração do cenário eleitoral.
Mais difícil, no entanto, será um
entendimento nacional mínimo em torno das medidas necessárias para superar o
enorme atraso de um país ainda preso na agenda dos anos 1980, sem dispor nem
mesmo de uma moeda crível e dependente do socorro financeiro do Fundo Monetário
Internacional (FMI).
Disparidade doméstica
Folha de S. Paulo
Mulheres têm mais tarefas no lar do que
homens, o que as prejudica no mercado
Dados do IBGE de 2022 mostram que 40,69%
das mulheres com três filhos ou mais não conseguem trabalhar, ante apenas 0,62%
dos homens na mesma situação. Mesmo com apenas um filho, o abismo
entre mães e pais se verifica, com 21,89% e 0,55%, respectivamente.
Essa diferença abissal se explica, em
grande parte, pela permanência de práticas culturais que relegam às mulheres os
cuidados da casa, dos filhos e de familiares.
Segundo o módulo da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) que analisa atividades não remuneradas,
as brasileiras dedicaram 9,6 horas por semana a mais a tarefas domésticas do
que os brasileiros em 2022. Elas usaram
21,3 horas para administrar o lar, e eles, só 11,7.
Ademais, o único tipo de serviço que recebe
mais dedicação masculina é esporádico: 60,2% deles realizam consertos na casa,
no carro e em eletrodomésticos. Já as mulheres são maioria significativa em
tarefas cotidianas, como cozinhar e lavar louça (95,7%), limpeza das roupas
(92,3%) e da casa (82,6%).
De acordo com Claudia Goldin, primeira
mulher professora titular no departamento de economia da Universidade Harvard e
uma das maiores especialistas sobre a relação entre gênero e trabalho, a
disparidade ocupacional e salarial entre homens e mulheres se deve pouco ao
preconceito e muito a mudanças na atividade econômica.
Com jornadas de trabalho mais flexíveis, os
empregados capazes de se dedicarem por mais tempo ao emprego passaram a ser
mais valorizados. Por não darem tanta atenção ao lar, homens ocupam cargos com
melhor remuneração —que têm carga horária maior, prazos rígidos ou exigência de
viagens.
Quando não acabam por desistir da carreira,
muitas mulheres precisam escolher ocupações que requerem menos tempo de
dedicação e, em consequência, oferecem remuneração menor.
Assim, tentar resolver o problema somente
com a criação de leis, como a que aumenta a punição para diferença salarial,
recentemente proposta pelo governo e aprovada pelo Congresso, é tarefa
inglória.
Para diminuir a disparidade de gênero, é necessária mudança cultural em torno das tarefas domésticas e corporativas. Também é premente a criação de uma robusta rede pública de creches e, no âmbito legislativo, a discussão de licenças parentais no pós-parto que permitam a divisão do tempo dedicado ao cuidado do filho pelo casal.
O Estado de S. Paulo
Para evitar nulidades como na Lava Jato, devem ser respeitadas as regras de competências, sem ampliar as hipóteses de conexão. Moraes não é juiz universal dos casos envolvendo Bolsonaro
Diante da gravidade das suspeitas
envolvendo Jair Bolsonaro no caso das vendas das joias, é preciso advertir que
as instituições – polícia, Ministério Público e Judiciário – devem atuar
estritamente dentro da lei. Não basta gerar escândalo. Não basta suscitar
indignação. É preciso investigar seriamente, apurar as correspondentes
responsabilidades e punir quem deve ser punido. E, para que tudo isso ocorra, a
lei tem de ser seguida.
Nesse cuidado para que o trabalho
investigativo possa cumprir sua finalidade, um ponto é decisivo: a observância
das regras de competência. Pouco adianta investigar se o inquérito é conduzido
por quem não tem atribuição para fazê-lo. Recentemente, acolhendo o parecer da
Procuradoria-Geral da República (PGR) de que teria havido desrespeito às regras
de competência, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF),
anulou provas colhidas na Operação Hefesto, que apura supostas fraudes na
compra de kits de robótica por prefeituras de Alagoas, nas quais o presidente
da Câmara, Arthur Lira, estaria envolvido.
Nessa seara, o maior exemplo de como a
violação das normas processuais sobre competência inviabiliza a punição dos
crimes é a Lava Jato. Apesar de ter levantado enorme quantidade de indícios de
crimes – muitos deles gravíssimos, envolvendo altas esferas da República –, a
operação fracassou na atribuição de responsabilidades. E esse fracasso foi obra
não dos críticos da Lava Jato, mas de quem esteve à frente dela. Foi a própria
13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba que abriu caminho para a anulação das
provas produzidas, ao tomar para si casos que não eram de sua competência.
A história da Lava Jato é muito pedagógica.
Instaurou-se em Curitiba uma espécie de juízo universal de combate à corrupção,
o que é uma aberração no Estado Democrático de Direito. No entanto, as regras
de competência nunca foram violadas formalmente. Em nenhuma decisão, o juiz
Sérgio Moro desprezou expressamente as normas processuais de competência. Em
tese, ele estava aplicando as regras do Código de Processo Penal (CPP). O
problema era a leitura completamente distorcida que fez delas.
Ou seja, a reiterada violação das regras de
competência na Lava Jato – que levou à esdrúxula situação de um juiz de
Curitiba se considerar apto a julgar todos os casos de corrupção envolvendo o
governo federal – não exigiu um desprezo formal às regras processuais. Bastou a
interpretação ampliada do art. 76 do Código de Processo Penal. O juiz Sérgio
Moro achava que todos os novos casos estavam conectados com os anteriores.
O art. 76 do CPP trata da chamada
competência por conexão: aqueles casos em que a definição do juízo competente
para julgar é dada por um caso anterior conexo a ele. Além de economizar
recursos públicos, essa regra tem o objetivo de evitar decisões conflitantes. O
dispositivo traz três hipóteses de competência por conexão: (i) se duas ou mais
infrações tiverem sido praticadas por várias pessoas reunidas num mesmo lugar,
em concurso ou umas contra as outras; (ii) se as infrações tiverem sido
praticadas “para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade
ou vantagem em relação a qualquer delas”; e (iii) “quando a prova de uma
infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de
outra infração”.
O respeito às regras de competência é
caminho para a efetividade do princípio do juiz natural, elemento indispensável
de um julgamento imparcial. O art. 76 do CPP explica, por exemplo, por que
todos os casos de atos antidemocráticos foram distribuídos no STF ao ministro
Alexandre de Moraes. Ele era o juiz competente, a quem deviam ser encaminhados
os novos indícios. No entanto, não sendo hipótese de conexão, entender que todo
novo caso, como o da venda das joias, deve estar sob a jurisdição de Alexandre
de Moraes – simplesmente porque Jair Bolsonaro estaria envolvido – é repetir o
grande erro da Lava Jato, abrindo caminho para a impunidade. O País não merece
reviver essa frustração.
A volta dos que não foram
O Estado de S. Paulo
Governo não tem alternativa senão apostar
no setor privado ao ressuscitar o PAC, mas insiste em projetos que fracassaram
no passado recente e custaram bilhões ao País e à Petrobras
Com pompa e circunstância, o governo lançou
a terceira versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Desta vez,
está previsto R$ 1,7 trilhão em obras e projetos de infraestrutura nas mais
diversas áreas e em todos os Estados do País. “Hoje começa o meu governo. Até
agora, o que nós fizemos foi reparar aquilo que tinha desandado”, disse o
presidente Lula da Silva sobre aquela que é a maior das bandeiras petistas.
À exceção de Lula, ficou claro, na cerimônia
de lançamento, haver uma preocupação do governo em mostrar que o PAC 3 não
repetiria os erros de suas edições anteriores. A maior parte do investimento,
um total de R$ 612 bilhões, virá do setor privado, por meio de concessões e
parcerias público-privadas. A parte que caberá ao Tesouro será bem mais
limitada, da ordem de R$ 60 bilhões por ano até 2026, e ficará dentro dos
limites do arcabouço fiscal. Haverá prioridade para retomar obras inacabadas e
projetos vinculados à transição energética e à agenda verde.
Ninguém, em princípio, seria capaz de
criticar esses princípios, ainda mais em um país tão carente em infraestrutura.
Os PACs anteriores, enquanto planos de investimento, tampouco eram iniciativas
condenáveis. A má fama que acompanha os planos anteriores não diz respeito à
intenção, mas à sua gestão e execução, ou seja, a fases posteriores ao
lançamento. Lamentavelmente, não há nada a indicar que esses problemas não
voltarão a se repetir.
A exemplo de seus antecessores, o programa
atual conta com milhares de obras divididas em diferentes eixos e regiões. Não
é um trabalho trivial acompanhá-las de perto e solucionar problemas de forma
célere. Mais do que corrupção ou complicações legais ou jurídicas, deficiências
no projeto inicial, falhas na programação de recursos e dificuldades técnicas
de execução estão por trás da enorme lista de obras inacabadas no País, como já
diagnosticou o Tribunal de Contas da União (TCU).
Viabilizar o PAC dependerá de
financiamento. Com o espaço fiscal bastante limitado, o governo dependerá de
agências reguladoras fortalecidas e marcos regulatórios e jurídicos seguros e
estáveis para atrair o capital privado. Será preciso ter muito realismo para
garantir uma taxa de retorno realmente atrativa, que supere a taxa básica de juros.
No passado, o governo optou por apelar a empréstimos do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com juros subsidiados e bancados
pelo Tesouro Nacional. Promete-se que, dessa vez, não será assim.
Há evidências, no entanto, de que o governo
não está disposto a abandonar algumas das práticas que estão por trás de
fracassos históricos atrelados ao PAC. Uma das principais é a enorme
dependência de investimentos por parte de estatais, da ordem de R$ 343 bilhões
– e a imensa maioria concentrada na Petrobras.
Entre os projetos incluídos no eixo de óleo
e gás estão a retomada de estaleiros e a ampliação da capacidade da Refinaria
Abreu e Lima, em Pernambuco. Projetos como este, aliados à mão pesada do
governo para controlar os preços de combustíveis, quase levaram a Petrobras à
ruína no passado recente. Mesmo irrigada com subsídios, a indústria naval nunca
foi capaz de chegar nem próximo da eficiência de concorrentes no exterior.
Outro mau exemplo é a retomada de Angra 3.
Com um projeto que remonta ao regime militar e que soma quase 40 anos de
construção, entre idas e vindas, o custo da usina nuclear aumentou
exponencialmente, à medida que alternativas energéticas se tornavam mais
baratas e economicamente viáveis. Sem a Eletrobras, agora nas mãos do setor
privado, quem pagará o custo dessa escolha?
Em razão das limitações orçamentárias, o governo não tem alternativa senão apostar no setor privado como alavanca da nova edição do PAC. Por outro lado, opta por reeditar as mesmas políticas do passado esperando resultados diferentes por pura teimosia, recusando-se a reconhecer erros que custaram bilhões ao País e à sua maior empresa. São justamente esses aspectos, tão celebrados pelo presidente Lula, que ameaçam o sucesso do plano novamente. Dessa vez, não será por falta de aviso.
A revolta dos argentinos
O Estado de S. Paulo
Bem-sucedido nas primárias, extremista
Javier Milei sintetiza a rebelião contra o ‘establishment’
Os argentinos estão a ponto de se rebelar
contra o Estado, conforme se depreende do resultado das eleições para a escolha
dos candidatos à presidência do país, em 22 de outubro.
Javier Milei, de extrema direita, angariou
30% dos votos válidos e atropelou as duas forças tradicionalmente rivais na
política do país vizinho – o peronismo e a centro-direita, maculados pelo
fracasso na condução da economia do país. A perspectiva de chegar em terceiro
lugar na disputa presidencial dá a exata medida da profunda crise do peronismo.
A proposta de Milei de liberar a venda de
órgãos é a menos chocante de sua inacreditável plataforma política, chamemos
assim. Na hipótese de Milei ser eleito e conseguir implementá-la, o resultado
prático será a desmoralização do establishment argentino, situação em que a
política inexiste ou é apenas acessória do populismo.
Ao que parece, a irresistível ascensão de
Milei é impulsionada pelos votos de jovens que não sabem o que é uma Argentina
estável e próspera. São décadas de incúria, desmandos e corrupção que
arruinaram a economia do país e minaram drasticamente a confiança dos cidadãos
nos políticos e nos partidos. A alta abstenção, embora o voto seja obrigatório,
reforça a sensação de desencanto e raiva.
A Argentina jamais esteve tão perto da
ingovernabilidade, do caos econômico e da ruína democrática neste século. Nem
mesmo quando a turba em desespero derrubou o governo de Fernando de la Rúa, em
dezembro de 2001. Como sintetizou o jornal La Nación, a vitória de Milei nas
primárias teve o efeito de um “terremoto”.
O surgimento de uma nova força política na
Argentina, assentada no fortalecimento da democracia liberal e em propostas
econômico-sociais coerentes e factíveis, traria confiança nos rumos do país.
Eleitores, países vizinhos e a comunidade internacional tenderiam a aplaudir a
terceira via. Nada disso se assemelha ao fenômeno Milei. Seu discurso contra as
“castas” políticas vem acompanhado de promessas econômicas irresponsáveis,
razão pela qual não surpreendem a desvalorização de 18% do peso e o aumento da
taxa de juros no dia seguinte às primárias.
Sob a égide do Estado limitado e do
livre-comércio, seu plano de governo oculta demônios capazes de apavorar os
mais respeitáveis gestores e teóricos liberais. Milei quer eliminar o Banco
Central, como meio de combater a inflação, e quer dolarizar de vez a economia –
um passo além do que ocorreu nos anos 1990, com desfecho desastroso em 2001. O
comércio seria liberalizado ao extremo. Os impostos e os gastos públicos
sofreriam cortes ferozes, como se não houvesse subsídios sociais necessários
num país em que metade da população é pobre. A dívida pública não é mencionada
nas 34 páginas do plano.
Milei faz parte da onda populista de
ultradireita, a mesma que gerou Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro
no Brasil e Viktor Orbán na Hungria. Não há dúvidas sobre seu desprezo pelo
Estado de Direito e sobre a sandice de suas propostas econômicas, mas não será
fácil para o peronismo e a centro-direita reconquistarem parte dos indignados
que se entusiasmaram pelo candidato que promete implodir a Argentina.
Primárias argentinas preocupam o mercado
Correio Braziliense
A vitória do candidato de extrema direita
Javier Milei, nas eleições primárias, inquieta os agentes econômicos. O político
que autodenomina anarcocapitalista pretende dolarizar a economia e fechar o
banco central, medidas que prejudicariam o Brasil
É forte a aversão ao risco no mercado
financeiro após o resultado das eleições primárias na Argentina, em razão da
vitória do candidato de extrema direita Javier Milei, cujas principais
propostas econômicas são dolarizar a economia e fechar o banco central do país.
O político se apresenta como "anarcocapitalista".
A narrativa política de Milei também preocupa
o mercado financeiro. Pretende proibir o aborto, legalizar a venda de órgãos e
adotar outras medidas ultraconservadoras e polêmicas. A crise econômica
desiludiu os argentinos com os partidos políticos e abriu as portas para Milei,
que seduziu os jovens. O voto nas primárias, obrigatório para os adultos, é um
ensaio geral para a eleição de 22 de outubro, uma indicação clara de quem é o
favorito à Presidência.
A eleição de outubro afeta o enorme setor
agrícola da Argentina, um dos maiores exportadores mundiais de soja, milho e
carne bovina. São impactados os títulos públicos e as negociações do acordo
sobre a dívida de 44 bilhões de dólares com o Fundo Monetário Internacional
(FMI). A inflação argentina, que está 115,6% em 12 meses, com juros em 118% ao ano,
deve disparar.
Somente neste ano, o peso argentino sofreu
uma desvalorização de quase 40%. A dolarização da economia e o fim do câmbio
negro são propostas que também seduzem a classe média argentina. Mas são
medidas de curtíssimo prazo, que não enfrentam nenhum problema estrutural do
país vizinho.
A Argentina ficaria totalmente dependente
da política monetária dos Estados Unidos. Com isso, o Mercosul seria
inviabilizado, mais uma vez, às vésperas de conseguir um acordo com a União
Europeia. Se isso ocorrer, será um grande revés para a política de integração
regional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
As primeiras reações do mercado financeiro
argentino ontem foram péssimas: a cotação do dólar blue, extraoficial, chegou a
670 pesos. A reação do Banco Central argentino foi subir a taxa de juros e
fixar o câmbio oficial em 350 pesos, até outubro, quando ocorrerão as eleições.
Entretanto, a dolarização informal já está em curso, por causa do clima de
instabilidade política e da derrota do candidato peronista, que ficou em
terceiro lugar.
Com adoção do dólar como moeda oficial pelo
governo, a dolarização seria completa e o peso argentino deixaria de circular.
O principal impacto, segundo os especialistas, seria sobre as pessoas de baixa
renda, que passariam a receber seus salários também em dólar, sem precisar mais
trocar as moedas, sujeitas às fortes oscilações das taxas de câmbio. O efeito
mais imediato seria a estabilização dos preços, pois o governo do país não
poderia mais emitir moeda. Teoricamente, os preços internos seriam equalizados
aos preços dos produtos importados, para que haja competitividade e menos
inflação.
O Brasil seria o país mais impactado por
essa mudança. A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. As
duas nações representam 63% da área total da América do Sul, 60% de sua
população e 61% do PIB. Obtivemos saldo comercial positivo de US$ 2,2 bilhões
com a Argentina em 2022. Foram US$ 15,3 bilhões em exportações para o país
vizinho contra US$ 13,1 bilhões em importações de mercadorias argentinas.
Milei obteve mais de 30,5% dos votos, muito acima do previsto, com o principal bloco conservador de oposição bem atrás, com 28%; e a coalizão governista peronista ficou em terceiro lugar, com 27%. Dentro da coalizão Juntos pela Mudança, a candidata conservadora Patrícia Bullrich, ex-ministra da Segurança, venceu o moderado prefeito de Buenos Aires Horácio Larreta, que prometeu apoiar a campanha dela. O ministro da Economia, Sergio Massa, candidato peronista, sofreu uma derrota anunciada: era o candidato errado no momento errado, pois quatro de cada 10 argentinos estão abaixo da linha de pobreza. Essa foi a maior derrota eleitoral dos peronistas na história.
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