terça-feira, 15 de agosto de 2023

Andrea Jubé - Um pé em cada canoa na política

Valor Econômico

Uma habilidade tão antiga, que se pode dizer secular

A habilidade de alguns caciques políticos de navegar em águas nem sempre tranquilas com um pé em cada canoa é uma arte secular. Remonta ao teatro italiano do século XVIII, à farsa mirabolante e ao humor cínico característicos da commedia dell’arte .

Escrita pelo veneziano Carlo Goldoni em 1745, a peça “Arlequim, servidor de dois amos” - um clássico dessa dramaturgia - revela uma afinidade espantosa com a atual conjuntura política, em que dirigentes de partidos políticos proclamam a independência do governo federal com a mesma naturalidade com que negociam ministérios com o presidente da República à luz do dia.

As semelhanças da peça com o cenário político brasileiro são salientes. “Mas essa é boa mesmo: tanta gente que não consegue sequer arranjar um patrão, e eu arrumei logo dois, vejam só”, tripudiou Trufaldino, o Arlequim na trama em questão. “Mas não posso ser o criado dos dois”, refletiu, por alguns segundos.

Depois, recuou: “Espera aí, quem foi que disse que não posso? Por acaso, não é um bom negócio ganhar dois ordenados e comer dobrado? É sim, se eles não souberem um do outro; e se descobrirem, não perco nada porque se for despedido por um, fico com o outro”, concluiu, com o pragmatismo peculiar a uma parcela dos políticos brasileiros.

No enredo, irritado com o patrão que não lhe proporcionava no tempo devido e nas quantidades esperadas as devidas refeições, Trufaldino/Arlequim - alguém de apetite insaciável - começou a prestar serviço a dois amos, simultaneamente, a fim de se locupletar, e de se empanturrar, não exatamente nessa ordem.

“Com este patrão a gente come pouco e nunca tem hora para comer”, reclamou em relação ao primeiro amo. “Aprendam a ter mais consideração com o estômago dos criados”, cobrou, em pensamento, ao ser alimentado pelo segundo amo.

Arlequim que é protagonista de mais de uma trama da commedia dell’arte é um personagem astuto, ágil, capaz de ardis e de tiradas maliciosas para se safar das enrascadas em que se envolve enquanto busca, antes de tudo, o melhor para si. Uma inspiração para adeptos do pragmatismo, inclusive político.

Muitas lideranças nacionais, reconhecidas pela habilidade e capacidade de diálogo, destacam-se na arte de servir a dois amos, assegurando espaços de poder estratégicos, e declarando-se politicamente independentes.

O secretário de Governo de São Paulo e presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, fez escola. O ex-prefeito de São Paulo tornou-se influente, simultaneamente, nos espaços políticos mais importantes do país. Além de se consolidar como um dos principais conselheiros do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), um dos líderes da oposição ao PT, o PSD tem o vice-governador Felicio Ramuth. Concomitantemente, o partido controla três ministérios no governo Lula: Minas e Energia e Agricultura - duas das pastas mais cobiçadas -, e Pesca e Aquicultura.

Em meio à reforma ministerial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, testemunhamos os presidentes do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), e do Progressistas (PP), senador Ciro Nogueira (PI), percorrerem a mesma trilha de Kassab e do Arlequim, pioneiro na estratégia.

A retórica dos caciques é de que os partidos são independentes, e os ministérios que conduzem (no caso do PSD), ou que vão conduzir no governo Lula terão como titulares quadros indicados pelas bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Como se fosse possível um time de futebol entrar em campo dividido: o ataque com um uniforme, a retranca com outra camisa, e a torcida perplexa.

Pereira deve se reunir com Lula nesta quarta ou quinta-feira para discutir o ingresso do partido no primeiro escalão do governo federal, e qual espaço seria reservado para a legenda.

Nogueira joga no bastidores, enquanto o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e o líder da bancada, André Fufuca (MA) - que será ministro - são os interlocutores do PP com o presidente. Lula deve ter nova conversa com Lira hoje, na volta do Paraguai.

A retórica da “independência com ministérios” não tem precedentes nos governos Lula 1 e 2 ou na gestão Dilma Rousseff, em que Republicanos e Progressistas não foram aliados pela metade.

Em julho de 2005, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PE), do PP, o “Lira” da ocasião, indicou o então deputado federal Ciro Nogueira para assumir o Ministério das Comunicações de Lula. Depois a articulação mudou e o secretário-executivo do Ministério do Planejamento, Márcio Fortes, um quadro técnico do PP, virou ministro das Cidades na cota cedida ao partido. Já o Republicanos foi aliado por completo do PT na gestão Dilma, com Marcelo Crivella na pasta da Pesca, e George Hilton no Esporte. Como presidente do Republicanos, Pereira foi ministro de Michel Temer à frente do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC).

“No momento, meu objetivo e minha preocupação é ajudar o governador Tarcísio a ser um bom governador e o presidente Lula a ser um bom presidente”, resumiu Kassab sobre a arte de se equilibrar em duas canoas, em um evento com empresários em maio.

 

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