terça-feira, 15 de agosto de 2023

Míriam Leitão - O que impede o acordo com a União Europeia

O Globo

UE exigiu do Brasil o inaceitável para fechar a negociação. Além disso, a sombra da extrema direita na Argentina prejudica o avanço do acordo entre os blocos

A União Europeia exigiu o inaceitável durante os recentes desdobramentos da negociação. Quer que a aferição do desmatamento da Amazônia não seja feita pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE. Quer impor o monitoramento por institutos europeus. O INPE é uma instituição que custou a ser feita, exigiu grande empenho e investimento por décadas, e recentemente sobreviveu ao ataque frontal do governo Bolsonaro. Imagina se seria o governo Lula a aceitar que ele seja colocado de lado, em favor do que quer que fosse?

Há outros pontos de dificuldades, no item compras governamentais, mas a tentativa de tirar o INPE de seu papel institucional é que se tornou uma pedra inamovível neste acordo. O governo não tem entrado em detalhes, e quando critica os europeus fala apenas do protecionismo, principalmente o francês, que é notório. Mas o que realmente pegou foi isso.

Curioso é que é um momento em que Brasil e Europa estão de acordo sobre os pontos principais: a necessidade de proteger a Amazônia, de fortalecer os órgãos de controle, de combater o crime e ter metas de desmatamento zero. Em 2019, quando houve a assinatura do acordo, nada havia em comum nesta questão, que é hoje definidora. Logo depois, por óbvio, empacou na questão ambiental. Agora, isso poderia ser removido, mas eles exigem que não seja o INPE a autoridade brasileira do monitoramento. O órgão científico brasileiro tem respeito internacional, e mostrou robustez institucional na briga recente com a extrema direita.

Mas esse é mesmo o acordo dos fantasmas sucessivos. O atual foi inventado pelos europeus. Mas outro acaba de aparecer no horizonte argentino. O cenário de que a extrema direita governe a Argentina, com um clone de Bolsonaro e Trump, aumenta a improbabilidade de se fechar um acordo bloco a bloco.

A Argentina é o país capaz de recriar várias crises simultaneamente. O Brasil pelo menos viveu a crise inflacionária e de dívida externa entre o começo da década de 1980 e meados de 1990. A crise política que levou a um governo de extrema direita, com um presidente de falas e comportamentos delirantes e insultuosos, ocorreu só agora, entre 2019 e 2022. Lá eles parecem querer unir o pior da economia com o pior da política. Ontem, a crise econômica se agravou com alta do dólar em 22%, juros com taxas de 118% ao ano, inflação anual de 115,6% registrada em junho e a sombra do fortalecimento da extrema direita.

Há ainda chance de a Argentina evitar a eleição de um governante como Javier Milei, porque afinal o que houve agora foram as primárias. O país vai passar até o fim do ano pelos dois turnos das eleições. Mas, convenhamos, tanto a esquerda, quanto a direita erraram na condução da economia e levaram os argentinos a um tormento econômico que parece sem fim. É exatamente nessa conjuntura que surgem pessoas como Javier Milei com seu projeto desconexo e desorganizador.

Enquanto essa sombra pairar sobre a Argentina, pouca chance há de o acordo entre os dois blocos sair do papel, das intenções, dos discursos para a realidade. E ainda que o pior cenário seja afastado, a desorganização econômica argentina já começou a piorar. Ontem houve maxidesvalorização do peso. Isso vai alimentar a inflação e os temores de novos confiscos como o famoso corralito.

Mesmo se não houvesse a desordem econômica e a extrema incerteza política argentina, haveria esse outro obstáculo a paralisar as negociações pelo lado do Brasil. Eu conversei com autoridades que me disseram que não há possibilidade de se aceitar qualquer acordo que tire a autonomia do INPE. É difícil construir e manter instituições. E o Brasil acaba de passar por um teste de estresse de grande magnitude.

É lamentável que a União Europeia não tenha entendido o que foi a resistência institucional brasileira dos últimos quatro anos. A Argentina tem a origem da sua crise exatamente no enfraquecimento de órgãos do estado. Um clássico desse fenômeno foi o desmonte do Indec, o IBGE argentino, feito pelo governo Cristina Kirchner. Levou ao aumento da inflação e da crise de confiança nos indicadores. Depois Cristina fez uma intervenção no Banco Central, também desastrosa. Milei propõe, sem explicar como, acabar com o Banco Central. A qualidade das instituições é parte fundamental de qualquer projeto de estabilidade econômica e democrática.

 

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