Folha de S. Paulo
Entre a 'sociologia pouco viril' e o habeas
corpus : Freyre e o 'Grande Ruy'
Em Casa Grande
& Senzala, publicada há exatos 90 anos, Gilberto
Freyre foi acusado de praticar uma "sociologia pouco
viril"; "uma sociologia de casas velhas, que sugere preocupações
apenas femininas em torno de assuntos melancolicamente mortos ou docemente
inofensivos", como escreveu em Sobrados e Mocambos. A obra pecaria,
segundo seus críticos, pelo que chamou de falta de "varonilidade
sociológica".
Sua preocupação com a casa, um espaço socialmente dominado pela mulher; com a vida privada, a vida sexual de senhores e escravos ("uma sociologia do interior de alcova"; famílias e hábitos. E contrastava com o que entendiam ser uma sociologia masculina "para eles ligada apenas as questões jurídicas e políticas, aos problemas do dia agitados na ágora, na praça, na rua, por homens públicos seguros de tudo poderem resolver dentro do legalismo ou da lei, dentro da constituição ou com o habeas corpus."
Freyre foi
perseguido durante a ditadura varguista (sua correspondência foi confiscada
durante três anos) e acusado de "negrofilia", apologia dos mocambos e
do xangô ("africanismos"). "Mesmo assim não conseguiu o chamado
‘Estado Forte’ paralisar o esforço intelectual do autor. Apenas dificultá-lo.
Nem abalar sua confiança nos pardos, euroasiáticos, nos malaios, nos mestiços,
nos cafuzos do Brasil" (Prefácio à 5ª. edição de C G & S, 1946).
Como modelo intelectual, seu antípoda seria
Ruy Barbosa. Seus críticos, afirmou, "lamentam que ‘o grande Ruy’ – isto é
Ruy Barbosa – não tenha continuadores nesta época que consideram pouco viril,
em que alguns dos sociólogos brasileiros invés de agitarem nos fóruns ou no
mercado as questões do dia se escondem por trás de sobrados velhos e tachos de
doce".
Mas a oposição Ruy-Freyre contrapõe dois
tipos ideais - o estadista e o acadêmico - em um contexto em que este último
ainda era incipiente. Era a antropologia se libertando do direito. Ela também é
mais que isto. Vilipendiado intensamente, em proporção inversa ao conhecimento
de sua obra, Freyre antecipou uma crítica já banalizada hoje de um
patriarcalismo na divisão social de objetos de pesquisa. Freyre mais uma vez
surpreende.
A ciência política ganhou autonomia
disciplinar quando se libertou da normatividade dos bacharéis, e adotou o
cânone da ciência positiva que busca identificar padrões, testar hipóteses e
explicar porque os fenômenos são como são. A normatividade militante cega o
zelo analítico e bloqueia o conhecimento científico. É certo, contudo, que na
esfera pública, a normatividade aliada à enorme capacidade analítica e
assombrosa erudição – da qual Ruy é o paradigma - faz muita falta hoje.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Um comentário:
Gilberto Freyre é dez.
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