O Globo
Luiz Inácio Lula da
Silva nunca escondeu que pretendia fazer da política externa um ponto alto de
seu terceiro mandato, quem sabe até mesmo se qualificando para um Nobel da Paz.
Se não conseguir, não terá sido por falta de oportunidade. Desde que Lula tomou
posse, começaram duas guerras com potencial real de ameaçar o equilíbrio
geopolítico do planeta.
Mas sua primeira tentativa de fazer
diferença, na crise entre a Rússia e
a Ucrânia,
já foi desperdiçada. Ao mesmo tempo que insistia numa retórica que igualava o
país invadido ao invasor, o Brasil tomava
atitudes que confrontavam a noção de neutralidade — como receber no Brasil o
chanceler de Vladimir
Putin ao mesmo tempo que esnobava o convite de Volodymyr
Zelensky para uma visita à Ucrânia. Sergei Lavrov ainda saiu da visita
dizendo que Brasil e Rússia tinham visões semelhantes sobre o conflito, e não
foi desmentido.
Com o conflito em Israel, Lula tem
nova chance, turbinada porque a guerra estourou no mês em que o Brasil ocupa a
presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU.
Os desafios impostos pela complexidade da crise e pelas mudanças no contexto
político, porém, são imensos.
Para começar, não parece haver mais espaço para uma discussão séria sobre a proposta histórica da diplomacia brasileira de constituição dos dois Estados, o judeu e o palestino. O professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas Matias Spektor, um dos nossos maiores especialistas em política externa, explica por quê.
“A presença de Israel nos territórios ocupados hoje é excessivamente grande, tanto que não seria mais possível criar um Estado palestino em território contínuo. Além disso, extremistas de ambos os lados dizimaram as pontes de interlocução. A desconfiança mútua vive um pico histórico. Os palestinos não têm uma liderança unificada, e não há uma força política em Israel com viabilidade eleitoral que faça da solução dos dois Estados sua principal bandeira. O último grande expoente foi Yitzhak Rabin, assassinado por um extremista da direita israelense em 1995”.
O cenário interno também dificulta bastante a
tarefa de Lula. Hoje, ao contrário do que ocorreu em seus primeiros mandatos, o
conflito divide a opinião pública brasileira de forma radical. Prova disso é a
guerra de narrativas que tomou conta das redes sociais e do Congresso desde que
o Hamas lançou suas bombas.
A esquerda, que tem laços históricos com a
causa palestina,
resiste a condenar o terrorismo do Hamas com a mesma veemência com que repudiou
os ataques de Israel aos territórios ocupados. Muita gente na base de Lula
justifica a ação do Hamas pelos “terrorismo de Estado” de Israel, invertendo as
responsabilidades pelo início das hostilidades.
A direita se apropriou da defesa de Israel, a
reboque do bolsonarismo e da “evangelização” da política — e fez isso com tanta
eficiência que o conflito no Oriente Médio rivaliza com pautas que estão na
ordem do dia, como a descriminalização do aborto ou a proibição do casamento
gay.
A mera disputa sobre o teor das moções de
repúdio à guerra paralisou
uma sessão da Câmara nesta semana, depois que deputados de direita
descobriram que o texto do PT repudiava
também “a violência do Estado de Israel” e não apenas o terrorismo do Hamas.
Lula parece ter aprendido algo com a crise da
Ucrânia, ao não embarcar novamente na retórica dos dois culpados pela guerra e
declarar-se chocado pelo terrorismo. Ainda assim, não citou o Hamas. Na nota
oficial sobre os brasileiros mortos nos ataques, o Itamaraty referiu-se
apenas ao “falecimento”, e não ao assassinato deles, sem mencionar os
responsáveis.
No Conselho de Segurança, o Brasil tem se
movido com cautela. Por ora, se concentra na defesa de um cessar-fogo para a
libertação de reféns, especialmente as crianças na zona de conflito. É uma
iniciativa importante, necessária e de execução bastante difícil, que pode
render à política externa de Lula seu primeiro gol neste mandato.
Mesmo dando certo, terá sido apenas o
primeiro trajeto de um campo totalmente minado. Uma das armadilhas à frente é o
debate sobre se a ONU deve ou não classificar o Hamas como grupo terrorista.
Muita gente na esquerda brasileira acha que não. Lula não deu pistas do que
faria nessa situação. Será interessante observar. Pode parecer uma filigrana diplomática,
mas é a partir desse tipo de decisão que brotam as narrativas políticas e se
constroem as imagens dos pacificadores.
2 comentários:
Excelente! E as minas, prezada jornalista, foram plantadas por quem? Só pelos terroristas do Hamas, ou também pelo terrorismo de Estado israelense?
Hamas errou primeiro,Israel perdeu o senso da medida depois,o ser humano está sempre errado,so Jesus na causa.
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