Folha de S. Paulo
Ofensiva pode ser outra das mudanças que
sacolejam o país na década da depressão
O motivo imediato da ofensiva do
Congresso contra o Supremo foi a decisão da corte de dar a
indígenas mais direitos sobre as terras que ocuparam e de tratar de aborto e
maconha. O ataque é uma das tantas críticas a uma década de exorbitâncias do
STF —críticas de interesse, mérito e qualidade variados.
Caso a ofensiva vingue, será outro dos
rearranjos, reformas e depredações do sacolejo institucional e social
incessante que ocorre desde 2013, na década da depressão econômica.
Não dá para dizer que o Brasil foi virado do avesso. A casca grossa da desigualdade, da violência e da incapacidade de crescer continua evidente. Depois de tantos transplantes e implantes, o país parece um Frankenstein que passou por harmonização facial, com alguns órgãos novos. É muita mudança para resultados até agora sinistros ou sem efeito maior nas condições de vida e na civilização.
Houve muita mudança institucional na
economia, várias que tocam na medula de relações sociais, a maior parte
projetada sob Michel Temer (2016-18), pela coalizão que depôs Dilma Rousseff.
Quase sem resistência, mudaram a Previdência (2019),
o trabalho (2017) e o Banco
Central (2021). Pode passar a tributária. Menos visíveis,
mudaram leis de licitações, crédito, estatais, subsídios de juros (que
permitiram um mercado de capitais maior) etc.
Houve mais privatização: saneamento, gás,
Eletrobras. Sobra pouca coisa maior para vender. O capital mudou de cara. A
lista nova da grande empresa é dominada por agro, commodities em geral e pelo
ruído de fundo da finança.
Apesar do bochicho recente, sindicatos e
centrais quase desapareceram. Há precarização do trabalho e desprezo dos novos
trabalhadores pelo sistema velhusco de proteção social.
O teto de gastos de Temer (2016) e o teto
móvel de Lula 3 são mais sintoma do que reforma, sintoma de que o tamanho e a
organização do gasto público chegaram a uma situação crítica e de impasse.
Dentro da estrutura e do tamanho do orçamento e de possibilidades políticas e
econômicas de aumento de impostos, não há como fazer mais (ou melhor) política
social nem investimento público. É imobilismo maior e crítico entre as
mudanças.
O Congresso avança sobre poderes restantes de
gasto do Executivo sem assumir responsabilidade de governo, o que também
depreda o que sobra do Orçamento. Controla meios de financiar partidos e
caciques do centrão ora dominante (fundões partidários, eleitorais e emendas).
Ocioso mencionar o colapso do sistema
partidário de 1994-2014. Além da organização
da extrema direita, difunde-se uma cultura alucinada sobre fatos da
política, da sociedade e da história, o que se chama de
"negacionismo", mas vai bem além disso.
A política passou mais e mais pelo sistema de
Justiça. Além do exemplo óbvio da Lava Jato e sua tentativa de acabar com Lula
e o PT, vide agora, em escala menor, o STF como respiro para o programa de uma
esquerda derrotada no Congresso.
Forças que fermentavam desde os anos 1970,
como periferia e favelas largadas à própria sorte e o interior rural, se
organizaram com poder maior por meio da política dos evangélicos e do partido
do agronegócio. Outro efeito da sedimentação da desgraça social foi a organização
nacional e profissional do crime, que se estabilizou,
"institucionalizou", na década passada.
Celular, influencers e fenômenos pop
autônomos das redes definem o debate cultural relevante. É universal, claro,
mas o impacto é maior em um país que não passou pela difusão da cultura letrada
e da escola.
É um sumário limitado de um tempo em que o
país é batido em um liquidificador histórico. É grande, intenso, mas difícil
dizer que tenha direção, sentido ou, pior, resultante benigna.
2 comentários:
Excepcional!
Verdade,análise perfeita.
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