Lei Orgânica da PM cria mais problemas do que resolve
O Globo
Ela tenta reduzir politização de forças policiais, mas esvazia
secretarias de Segurança e enfraquece controle civil
O Senado aprovou na terça-feira uma lei orgânica para reger as
polícias militares e corpos de bombeiros, tema enviado ao
Congresso pela primeira vez ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Apoiada
pelo Palácio do Planalto e pela oposição — com destaque para a bancada da bala
—, ela busca padronizar o funcionamento das duas categorias em todo o país,
ainda que as normas tenham de ser regulamentadas pelos governos estaduais.
Embora a iniciativa tenha méritos, o texto final deixou a desejar.
O principal problema será o esvaziamento previsível das secretarias de Segurança Pública nos estados. Pela nova lei, os comandantes da Polícia Militar responderão ao governador. Não é difícil prever situações em que secretários serão escanteados. O texto peca por aprofundar um dos principais problemas na gestão da segurança no Brasil, a separação entre as polícias Civil e Militar. Quando essas forças trabalham juntas, os resultados são sempre mais satisfatórios. Quando cada uma age por conta própria, sem a coordenação de um secretário com poder de decisão, a situação tende a piorar.
Outra questão preocupante é o enfraquecimento do controle civil sobre a
apuração de ações policiais. Segundo a interpretação mais plausível do texto,
as próprias PMs serão responsáveis por isso, sem espaço para observadores
externos. Caso essa leitura se confirme, cairão as já reduzidas chances de
sucesso de investigações independentes e punições a policiais acusados de
abuso.
Defensores do texto aprovado argumentam que ele limita a politização das
forças de segurança. É verdade que há avanços. Policiais ficam proibidos de
portar armas em eventos político-partidários ou de se manifestar em público e
em redes sociais sobre política usando a farda, a patente, a graduação ou
símbolos da instituição. Diante do desafio de despolitizar quartéis e
delegacias, é uma medida desejável, embora ainda tímida.
No ano passado, 1.066 policiais militares, civis e bombeiros foram
candidatos, 43% acima do registrado em 2014, segundo dados do Tribunal Superior
Eleitoral. A maioria não se elegeu, voltou ao trabalho, mas continuou fazendo
política. Isso precisa mudar. Para se candidatar, policiais deveriam ser
reformados. Mas tal mudança exigiria alteração constitucional.
Pelo que foi aprovado no Senado, oficiais da PM precisarão ter
bacharelado em Direito ou curso de formação reconhecido pelas corporações ou
estados. “O policial militar que está na rua precisa saber muito mais de gestão
de pessoas, de criminologia, de gestão de dados, análise situacional e outras
atribuições”, diz Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz.
Transformar academias de polícia em faculdades de Direito é um desperdício.
Para que policiais sigam as leis à risca e defendam direitos humanos, não é
necessário um curso de quatro anos.
Noutro ponto polêmico, a lei reserva 20% das vagas das polícias a
mulheres. O temor é que o piso se torne um teto à participação feminina. O
projeto aprovado também dá ao agente de segurança o poder de fiscal ambiental,
em prejuízo às competências dos funcionários do Ibama.
Uma lei orgânica era necessária, e o texto enviado ao exame do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem pontos positivos, como a
regulamentação de garantias sobre seguros, auxílios e pensões. Mas cria mais
problemas do que resolve. A palavra final será de Lula.
Lula manifesta
incoerência ao manter sigilos no mesmo nível de Bolsonaro
O Globo
Presidente deveria prestar atenção ao que ele próprio disse como
candidato sobre a transparência do governo
Na campanha do ano passado, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criticou o então
presidente Jair Bolsonaro pela profusão de sigilos
decretados sobre informações de interesse da sociedade, boa parte pelo prazo
injustificável de cem anos. “Vou pegar o sigilo e vou botar o povo brasileiro
para saber por que você esconde tanta coisa. Afinal de contas, se é bom, não
precisa esconder”, disse Lula num dos inflamados debates com o adversário.
Estava certíssimo.
Uma vez empossado, lamentavelmente ele reproduz a mesma falta de
transparência. Como mostrou reportagem do GLOBO, o governo atual tem mantido os
sigilos no mesmo patamar do anterior. O Painel Lei de
Acesso à Informação (LAI) revela que 7,85% dos 114.237 pedidos de informação
feitos ao Executivo entre janeiro deste ano e 1º de novembro foram negados. No
mesmo período de 2019, primeiro ano de Bolsonaro, o Planalto vetou 8,21% das
110.162 demandas.
Entre as informações consideradas segredo de Estado nos dois governos,
estão as visitas às primeiras-damas. Em resposta a pedido do GLOBO à Casa Civil
sobre a lista de visitantes a Rosângela Lula da Silva, a Janja, o Planalto
alegou que as informações “devem ser protegidas por revelarem aspectos da
intimidade e vida privada das autoridades públicas e de seus familiares”.
Primeiras-damas são figuras públicas. Janja, em especial, atua em decisões do
governo. É razoável manter a privacidade sobre visitas de estrito caráter
pessoal, mas não sobre as que possam interferir em políticas públicas.
Nos cofres do Executivo estão trancadas também informações sobre gastos
com o helicóptero presidencial, comida no Palácio da Alvorada e outros fatos
relevantes. As alegações para negar pedidos costumam ser sempre a mesma: “dados
pessoais”.
Em poucos casos, o governo voltou atrás no sigilo, mesmo assim depois de
pressionado ou instado pela Justiça. As imagens de câmeras do Planalto durante
os ataques do 8 de Janeiro só foram divulgadas por determinação do ministro
Alexandre de Moraes, do Supremo. A lista de convidados à posse de Lula no
Itamaraty só veio a público depois da repercussão negativa do veto.
A incoerência é evidente. Depois da posse, Lula determinou que a
Controladoria-Geral da União reavaliasse a miríade de sigilos impostos pelo
governo anterior — alguns por cem anos, como o do cartão de vacinação de
Bolsonaro, que mais tarde se descobriu ter sido fraudado. Fica a pergunta
óbvia: por que informação do ex precisa ser pública e do atual não?
É certo que em todo governo há dados sensíveis, que devem ser protegidos
por razões como segurança familiar ou privacidade. Mas são uma minoria. Numa
democracia, exige-se a maior transparência possível do governante. O cidadão
tem o direito de saber o que se passa na administração, pois financia a
dispendiosa máquina pública. Sair classificando tudo como “dado pessoal”,
interpretando a LAI de maneira subjetiva, é um desserviço aos brasileiros. O
presidente Lula deveria ouvir o que disse o candidato Lula.
Governos correm contra o tempo para regular a
IA
Valor Econômico
Tendência é que modelos avançados de IA
evoluam muito mais rapidamente do que a disposição e a capacidade dos governos
de regulá-los
Alguns eventos nas últimas semanas chamaram a
atenção para um tema cada vez mais urgente: a necessidade de criar regras
globais para o desenvolvimento e a utilização de ferramentas de inteligência
artificial (IA). Essa nova tecnologia traz oportunidades fascinantes, mas
também riscos igualmente importantes. E, apesar do reconhecimento crescente
desses riscos, há ainda um caminho longo a ser percorrido até que se avance
rumo a um acordo internacional sobre o tema. O perigo concreto é o de a
tecnologia correr muito mais rapidamente do que a vontade política.
Desde que a Open AI, empresa ligada à
Microsoft, lançou ao público no ano passado a sua ferramenta ChatGPT, uma série
de especialistas e executivos vem alertando para os riscos envolvidos e pedindo
a elaboração de regras que previnam o uso indevido e a perda de controle sobre
a IA.
Em outubro, o presidente Joe Biden ordenou
que agências do governo americano criem diretrizes em relação à IA. Neste mês,
o Reino Unido sediou a primeira conferência sobre o tema, que reuniu
representantes de 28 países, incluindo EUA e China. Concordou-se sobre a
necessidade de avançar em padrões de segurança compartilhados, mas pouco mais
do que isso. A União Europeia (UE) está preparando a sua própria regulação. EUA
e Reino Unido anunciaram na semana passada a criação de agências nacionais de
segurança para IA.
Há muitas ameaças em potencial relacionadas à
IA. A mais simples, mas talvez mais premente, é o que se chama em inglês de
“deep fake” (falso profundo), a produção com uso de IA de imagens, áudios e
vídeos falsos, mas realistas ao ponto de serem indistinguíveis dos verdadeiros,
a não ser por análises técnicas sofisticadas. Essa ferramenta pode ser usada
num sem número de fraudes. Pode, por exemplo, criar imagens de pessoas em
situação de sequestro-relâmpago com pedido imediato de resgate. Pode abalar a reputação
de pessoas, empresas ou produtos, por meio de “deep fakes” constrangedores.
Pode ser usado com finalidades políticas. Certamente veremos políticos fazendo
e dizendo coisas que eles na realidade nunca fizeram ou disseram.
Essas são todas ameaças graves às nossas
vidas pessoais, às nossas sociedades, aos negócios e à estabilidade política e
democrática. Qual será o efeito da disseminação de um vídeo falso mostrando um
líder político numa situação ilegal ou moralmente condenável? O desmentido por
uma perícia técnica poderá levar dias ou semanas. Qual será o dano causado até
lá? Poderá haver protestos violentos. E quantos irão acreditar no desmentido?
Corre-se o risco de se criar uma espiral de
dúvida e descrença que é altamente perniciosa para a sociedade e que tende a
agravar a polarização política, já que as pessoas tendem a acreditar no que é
favorável ao seu político e partido de preferência e no que é negativo em
relação ao lado oposto.
Outra ameaça grave do uso mal-intencionado da
IA é ampliar enormemente o controle do Estado e de algumas poucas empresas
sobre os cidadãos. A capacidade gigantesca de processamento em tempo real da IA
pode tornar praticamente impossível manter uma vida privada, numa escala em que
leigos em tecnologia têm até dificuldade de imaginar.
Há ainda riscos muitos importantes em termos
de defesa e segurança global. A IA pode ajudar a produzir mais facilmente desde
vírus e malwares que afetem dispositivos eletrônicos (tanto de pessoas, como de
empresas e governos) até armas de destruição em massa. Grupos criminosos ou
mesmo entidades apoiadas por países podem ter acesso a informações e ao
processamento dessas informações numa escala até agora inconcebível.
Por fim, há o perigo mais grave, que é o de a
IA ganhar autonomia e vontade própria e deixar de obedecer aos humanos, o que
ameaçaria a própria existência da humanidade. Na conferência em Londres, o
premiê britânico, Rishi Sunak, afirmou que a IA pode se tornar um risco para a
humanidade na escala de uma pandemia ou de uma guerra nuclear. O empresário
americano Elon Musk, que logo lançará uma ferramenta para concorrer com o
ChatGPT, disse na semana passada que a IA é “uma das maiores ameaças à
humanidade”.
Já houve apelos de especialistas por uma
moratória (pouco factível) no desenvolvimento da IA, até que os riscos possam
ser devidamente avaliados e pela criação de uma entidade, possivelmente ligada
à ONU, para líder com o tema, como já ocorre com energia nuclear ou mudanças
climáticas.
Sem um acordo global, porém, nenhum país limitará a pesquisa e desenvolvimento de IA, pelo temor de ficar para trás numa corrida tecnológica estratégica. Mas há ainda muita divergência entre governos e empresas sobre como proteger as pessoas do uso indevido da IA. E o tempo, nesse caso, joga contra, já que a tendência é que modelos avançados de IA evoluam muito mais rapidamente do que a disposição e a capacidade dos governos de regulá-los.
Risco em alta
Folha de S. Paulo
Fala de Lula inibe queda de juros, diz BC, no
qual comando pode gerar incerteza
O Banco Central faz sua obrigação ao apontar,
sem citar o nome nem o fato, que as
declarações de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra a meta de eliminar o
déficit do Tesouro Nacional em 2024 tornaram mais nebulosas as
perspectivas de redução da inflação e dos juros.
Conforme a ata da reunião do Comitê de
Política Monetária, "a incerteza fiscal se detinha sobre a execução das
metas que haviam sido apresentadas"; agora, no entanto, "cresceu
a incerteza em torno da própria meta estabelecida para o resultado fiscal,
o que levou a um aumento do prêmio de risco".
No regime de política monetária do país,
cumpre ao BC apontar de forma transparente os fatores que influenciam ou
poderão influenciar as decisões sobre os juros —e a eles se somou o abandono
público da promessa de déficit zero por parte do presidente da República.
É falacioso o argumento, vindo das hostes
governistas, de que Lula apenas repetiu o ceticismo dos analistas quanto à
possibilidade de equilibrar as receitas e despesas do governo já no próximo
ano.
Ora, se é verdade que as expectativas gerais
para o rombo do Tesouro em 2024 rondam mais de R$ 80 bilhões, tais cálculos
consideravam que o governo petista ao menos iniciaria o ano com tal objetivo
formalmente definido —o que no mínimo forçaria um bloqueio temporário de
desembolsos.
Além disso, a nova regra fiscal determina
limites mais rígidos de despesa após um eventual descumprimento de meta. O tom
da fala de Lula, porém, dá a entender que o Planalto preferirá mudar metas a
fazer algum esforço para atingi-las.
Em tal cenário, sabe-se que os gastos e a
dívida pública aumentarão —mas a intensidade dessa alta é objeto de dúvida
crescente. Quanto maior a incerteza, mais juros são demandados pelos credores.
A Selic caiu recentemente de 13,75% para
12,25% ao ano. Entretanto a previsão para a taxa no final de 2024 passou nas
últimas semanas de já elevados 9% para 9,25%.
No próximo ano, ademais, há o risco de que o
impacto inflacionário da perda de credibilidade da política fiscal se combine
com temores quanto à troca de comando da política monetária, como apontou o
ex-diretor do BC Bruno Serra ao jornal O Estado de S. Paulo.
Estará terminando, afinal, o mandato do atual
presidente da instituição, Roberto Campos Neto, e o governo petista terá
indicado a maioria dos membros do Copom.
Dado que Lula fez sucessivos ataques à
autonomia do BC e às metas de inflação, para ele ambiciosas demais, a transição
no órgão tem o potencial de deteriorar ainda mais a confiança na condução da
economia. Até lá, só medidas
responsáveis poderão reverter o estrago das palavras imprudentes.
O clubinho do TJ-SP
Folha de S. Paulo
Candidatos à presidência da corte propuseram
reforçar regalias e corporativismo
Com a soberba de quem se considera acima das
normas éticas e legais, os dois desembargadores que concorreram à presidência
do Tribunal de Justiça de São Paulo se recusaram a conceder entrevista à Folha para
tratar de suas propostas de campanha e outros temas de interesse público.
Negaram-se, além disso, a mostrar ao jornal
os programas de gestão que pretendem implementar, sob a alegação de que os
enviariam somente a seus pares.
Ainda que os eleitores desse pleito se
restrinjam aos 357 desembargadores em atividade no TJ-SP, é impossível deixar
de ver nelas as marcas do desplante e da prepotência, para nada dizer do
desrespeito ao princípio da publicidade inscrito na Constituição Federal.
Prestar contas à sociedade não constitui
favor nem exceção. Trata-se do mínimo a esperar de quem busca liderar o maior
tribunal do país e exercer funções administrativas em um órgão cujo orçamento
passa de R$ 15 bilhões em dinheiro transferido pelo contribuinte.
Os desembargadores decerto sabem disso. Se
apelaram para a falta de transparência, foi porque tentaram esconder o teor
corporativista de suas candidaturas, mais preocupadas em garantir
benesses aos magistrados do que em melhorar o atendimento da população.
De acordo com os programas que a reportagem
obteve de fontes no TJ-SP, tanto Fernando Antonio Torres Garcia como Guilherme
Gonçalves Strenger propuseram, por exemplo, aumentar a gratificação paga a
juízes caso eles recebam muitos novos processos no ano.
Garcia, que
venceu a eleição nesta quarta (8), também defende um adicional por
tempo de serviço, enquanto Strenger, que é vice-presidente do tribunal,
prometeu afrouxar certas regras de produtividade.
Isso em favor de uma categoria que embolsa salários mensais superiores a R$ 35
mil —com remunerações efetivas não raro acima de R$ 50 mil, quando se somam
todos os penduricalhos já existentes.
Não custa lembrar, ademais, que o TJ-SP
sempre se opôs às inspeções do Conselho Nacional de Justiça que procuravam
disciplinar cumprimento de prazos e investigar pagamentos nababescos.
Em vez de lutarem contra esse histórico de regalias e corporativismo, os dois candidatos fizeram de tudo para reforçá-lo —como se fossem presidir não um órgão do sistema de Justiça, mas um clubinho voltado apenas aos interesses de seus próprios membros.
A falta de luz e de bom senso
O Estado de S. Paulo
Apagão em SP anima os antiprivatização, como
se atendimento fosse melhor quando era estatal. Mas, com bons contratos e
fiscalização, o serviço privado costuma ser mais eficiente
Após o blecaute em São Paulo, a arena
política foi varrida por um vendaval de recriminações. Pré-candidatos à
Prefeitura previsivelmente abriram fogo contra o prefeito. Outros foram além.
“Espero que o debate da privatização perca força com o caso da Enel”, disse o
secretário nacional do Consumidor, o petista Wadih Damous, em referência à
concessionária que adquiriu a Eletropaulo. “As empresas que assumem as
concessões no Brasil não prestam um bom serviço”, arrematou ele. Mesmo os
supostos liberais do Partido Liberal, além de correligionários bolsonaristas,
prometem dar os braços ao PSOL e ao PT para barrar a privatização da Sabesp no
Supremo Tribunal Federal. Como se vê, o oportunismo é suprapartidário.
Não se tem o contrafactual para saber como
seria a distribuição de energia de São Paulo se ainda fosse realizada por uma
estatal. No passado houve muitos apagões. Neste último, os temporais foram
excepcionais. Uma das principais causas dos blecautes foi a queda de árvores,
cuja manutenção cabe ao poder público. Não obstante, é preciso apurar se a Enel
descumpriu seu contrato e se esse contrato foi bem feito. Mas há dados para
avaliar a generalização de Damous de que as desestatizações não geraram bons serviços.
Até a onda de desestatizações nos anos 90, no
interior do País só tinha acesso à eletricidade quem tirava de seu bolso parte
dos investimentos nas redes de energia. Os brasileiros com mais de 40
primaveras se lembram da época em que linhas telefônicas eram ativos valiosos
que custavam cerca de mil dólares. A fila de instalação levava anos. Alguns
apelavam ao mercado paralelo a custos que chegavam a 10 mil dólares.
Todos os indicadores mostram que os temores
em relação às desestatizações não se concretizaram e, em geral, elas
acarretaram mais investimentos, produtividade, receitas, melhores serviços e
preços e menos corrupção.
Por outro lado, há um setor conhecido por
ilustrar o exato oposto dessas experiências bem-sucedidas: o saneamento. Os
serviços de água e esgoto ainda são prestados quase que exclusivamente por
estatais contratadas sem licitação nem metas. O fracasso é flagrante: são 35
milhões de brasileiros sem água potável e metade da população sem esgoto.
Isso não significa consagrar a desestatização
como um dogma. Mas a experiência mostra, e a Constituição estabelece, que a
atuação do Estado na atividade econômica deve ser excepcional. Tampouco a
desestatização significa Estado “mínimo”, e sim a mudança de um Estado
“empresário” para um Estado “regulador”. Serviços públicos continuam a ser
públicos, só são geridos e prestados por entes privados, e o Estado tem
critérios objetivos para avaliar sua qualidade e fiscalizar sua execução, o que
permite expandir bons programas e sepultar os ineficientes.
Isso reduz a margem para o patrimonialismo, o
clientelismo e o corporativismo. E aí, sim, há uma explicação consistente para
a vociferação de políticos da esquerda e da direita e suas manobras para
debilitar agências reguladoras, leis de governança das estatais ou programas
que avaliam seu desempenho.
Mas a prova mais contundente da falência do
“Estado empresário” é que políticos como Damous falam em frear o debate sobre
privatizações, mas não em acelerar o debate sobre “reestatizações”. O motivo é
simples: o Estado não tem dinheiro para bancar o controle das empresas
privatizadas. Há governantes que encamparam as desestatizações pela convicção
de que isso acarretaria melhores serviços. Mas muitos consentiram a
contragosto, pelo mero fato de que não tinham caixa para capitalizar suas
estatais.
Se a população espera que o que aconteceu em
São Paulo não se repita, é justamente por se tratar de um serviço prestado por
um ente privado. À época dos monopólios públicos, a única opção era uma
indignação resignada. Hoje, se as concessionárias não cumprem seus contratos,
espera-se que sejam multadas ou trocadas. Se os contratos são ruins, espera-se
que sejam reformulados. Mas, para isso, é preciso um Estado “forte”, com
agências reguladoras independentes, técnicas e eficientes – bem diferentes,
aliás, das agências fracas e politizadas ambicionadas por lulopetistas e
bolsonaristas.
Graduação é mais do que um diploma
O Estado de S. Paulo
Má qualidade da educação superior constatada
pelo Enade exige redefinição de políticas públicas e a reformulação de
processos pedagógicos pelas instituições de ensino
Os fracos resultados de 26 áreas de ensino
superior avaliadas pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) do
Ministério da Educação (MEC) comprovam que a triste deficiência educacional no
Brasil se estende do fundamental à graduação. Menos da metade (45,2%) dos quase
10 mil cursos analisados conseguiu alcançar um padrão mediano. Quase um terço
deles (29,2%) foi qualificado como ruim ou péssimo. Em nível de excelência, uma
parcela mínima de 5,5%.
O Enade é aplicado anualmente com um
determinado grupo de áreas por vez, de modo que cada curso seja avaliado a cada
três anos. O conjunto de 2022 foi formado por 13 cursos de tecnologia e 13 de
bacharelado, como Administração, Ciências Econômicas, Direito, Jornalismo,
Psicologia, Relações Internacionais, entre outros. São aplicadas provas a
estudantes e coordenadores e o conceito final se insere numa escala de 1 a 5.
Não há distinção entre as instituições. Pela mesma régua passam as públicas e
privadas, com ou sem fins lucrativos, ensino presencial ou a distância.
O fato de o exame ter confirmado desempenho
pior no ensino a distância (EAD) do que no presencial reforça a visão de que
está na hora de rever parâmetros para o ensino que a pandemia se encarregou de
disseminar. No EAD, 33,7% dos estudantes que estão concluindo o curso obtiveram
conceito 1 e 2, os piores da tabela, e somente 3,7% desses cursos receberam
conceito máximo. No presencial, essas notas corresponderam, respectivamente, a
28,2% e 5,9%. Saldo um pouco melhor, mas igualmente preocupante.
Durante a divulgação do resultado, a
declaração do ministro Camilo Santana de que o MEC “não tem perna suficiente”
para a supervisão adequada no ensino superior soou quase como um pedido de
desculpas para a inaptidão generalizada que o Enade descortinou. Mas não há
desculpas. O ensino superior é responsabilidade do Ministério, assim como o de
nível médio cabe às secretarias estaduais e o fundamental, às municipais.
Se as avaliações periódicas demonstram um
nível vergonhosamente baixo de ensino, é sinal de que as políticas públicas
para a educação ou são ineficientes, ou mal planejadas, ou até inexistentes. A
fragilidade que se alastra por diferentes níveis de ensino atesta a total falta
de coordenação entre os organismos encarregados de definir padrões e zelar pela
qualidade da educação. No nível superior, o exame que abrange diferentes áreas
e traz o mesmo retrato desfocado de cursos tão diferentes é a prova de que o
erro começa de cima – vem dos formuladores de políticas públicas.
O ministro Camilo Santana defendeu a criação
de uma agência reguladora para as instituições de ensino superior, capaz de
regulamentar e fiscalizar o segmento. Se é esse o diagnóstico, pois bem, que se
criem os meios para prescrevê-lo. Mas isso não tira a responsabilidade do MEC
em relação ao problema. Tampouco é crível a ideia de que uma agência reguladora
fará a mágica de elevar a qualidade do ensino universitário por meio da
fiscalização.
Recentemente, dados do censo promovido pelo
próprio Ministério mostraram que a quantidade de cursos superiores ministrados
a distância cresceu 700% nos últimos dez anos. E até agora não houve qualquer
mudança de diretriz para dotar de maior credibilidade e eficiência essa
modalidade que, pelos dados do Enade 2022, é predominante entre estudantes de
31 a 40 anos de idade. O aumento do acesso ao ensino superior, especialmente
num país como o Brasil, é de extrema importância. Mas merece atenção, tanto das
universidades quanto do poder público, a busca de instrumentos para nivelar o
conhecimento dos que ingressam na vida acadêmica – compensar eventuais
deficiências trazidas do ensino médio ou mesmo de períodos fora da escola.
O Enade existe para subsidiar, com as provas
e questionários aplicados, tanto as instituições de ensino, que devem rever
processos guiadas pelas deficiências apontadas, quanto os órgãos públicos, para
verificar que tipo de serviço é prestado pelas instituições autorizadas a
funcionar. Não basta medir a qualidade se desse monitoramento não saírem
soluções de melhoria dos processos pedagógicos.
Emenda indecente
O Estado de S. Paulo
Reeleição ilimitada da Mesa Diretora da Câmara de São Paulo trai princípios republicanos e cidadania
Ofende diversos princípios republicanos, a
começar pela necessária alternância no poder, a recente aprovação, pela Câmara
Municipal de São Paulo, da possibilidade de reeleição ilimitada de sua Mesa
Diretora.
Chama a atenção, sobretudo, o fato de que o
texto da emenda à Lei Orgânica de 1990 foi aprovado, no dia 1.º passado, por 46
dos 55 vereadores. Apenas a bancada do PSOL se opôs. Ou seja, a possibilidade
de eternização de um ou outro grupo político na direção da Câmara paulistana
não parece ter incomodado a maioria absoluta dos vereadores – o que autoriza
especular toda sorte de intenções subjacentes, nenhuma delas boa.
Recorde-se que a medida foi tomada sob a
presidência do sr. Milton Leite, veterano vereador da Casa, que está no seu
sétimo mandato. O parlamentar é habitué do poder em São Paulo: presidiu a
Câmara em 2017 e 2018 e voltou ao cargo em 2021. Desde então está lá, removendo
os obstáculos legais para sua perpetuação na presidência da Casa – um deles, o
que não permitia uma segunda reeleição consecutiva, foi alterado no ano
passado. Como não parece ter nenhuma intenção de deixar o cargo ao final do
atual mandato, o sr. Milton Leite fez encaminhar o tal projeto de reeleições
infinitas, ao estilo do chavismo venezuelano. E, claro, já é candidato à
reeleição em dezembro, numa votação que, a julgar pelo placar acachapante
obtido pela medida casuística recém-aprovada, será apenas um procedimento
burocrático para sua recondução.
É legítimo perguntar qual é a razão para que
os vereadores de São Paulo em peso, à esquerda e à direita, tenham facilitado a
cristalização do grupo político representado pelo sr. Milton Leite no poder.
Não deve haver uma única resposta para essa questão, mas, seja ela qual for, há
uma única certeza: a possibilidade de reeleições sem limite para a presidência
da Câmara é péssima para a democracia e o espírito republicano, ao forjar uma
relação semifeudal entre o comando suserano da Casa e os vereadores avassalados.
Sendo o presidente da Câmara o responsável
por determinar o andamento da agenda de votações, é preciso que ele atue
segundo o interesse público, mas nada nesse arranjo que agora se concretizou
permite supor que esse interesse prevalecerá. É mais provável que impere o
compadrio, quando não coisa pior.
Há quem diga que o sr. Milton Leite é hoje o político mais poderoso da cidade de São Paulo, quase tanto quanto o prefeito, com forte influência no setor de transporte público e com ramificações inclusive no governo do Estado. Assim, explica-se o apoio de que esse vereador desfruta na Câmara, mas tal domínio é obviamente uma aberração – que, além de tudo, dificulta sobremaneira o surgimento de novas lideranças políticas na cidade mais rica do País. Ou seja, a recondução ilimitada do presidente da Câmara pode atender aos objetivos imediatos e paroquiais de quase todos os partidos, mas, na prática, amarra-os aos caprichos e favores de um único político e inibe a legítima disputa democrática pela condução do processo legislativo. Em resumo, um desastre.
Drogas, um desafio aos Três Poderes
Correio Braziliense
Os efeitos da drogadição vão além das
infrações penais e dos conflitos entre grupos criminosos, que espalham terror e
cadáveres nas cidades
Tanto o combate quanto a liberação das drogas
são temas controversos. De um lado, muitos defendem a liberação, como um dos
meios para quebrar as organizações de traficantes, que acirram a violência e
adoecem a população. De outro, há os que cobram leis mais severas contra a
venda e o consumo dos entorpecentes. Argumentam que os danos à saúde física e
mental são, em sua maioria, irreversíveis, sobretudo nos adolescentes e jovens.
Os efeitos da drogadição vão além das
infrações penais e dos conflitos entre grupos criminosos, que espalham terror e
cadáveres nas cidades. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) constatou que a guerra às drogas reduz, em média, em 4,2 meses a
expectativa de vida dos brasileiros e causa um prejuízo de R$ 50 bilhões anuais
— equivalente a 0,77% do Produto Interno Bruto (PIB) — devido às milhares de
mortes no país.
Em 2021, mais de 400 mil pessoas foram
atendidas por drogadição nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), alvo de
reclamações dos usuários que, nem sempre, conseguem a assistência desejada
devido à superlotação de hospitais e postos de saúde. O Relatório Mundial sobre
Drogas, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), avalia
que cerca de 284 milhões de pessoas, entre 15 e 64 anos, no planeta usaram
drogas em 2020 — aumento de 26% em relação a 10 anos antes.
O cenário é caótico. Ainda assim, novos
alucinógenos sintéticos, criados em outros países, chegam ao Brasil, tornam-se
"moda", atraem e são consumidos pelos jovens por seus efeitos
"psicodélicos", semelhantes aos do LSD. Nesta quarta-feira, agentes
da Polícia Civil do Distrito Federal, com apoio de policiais de Goiás e do
Piauí, cumpriram dois mandados de prisão preventiva, quatro de prisão
temporária e 18 buscas e apreensão contra o tráfico de ketamina na capital
federal. A substância de uso veterinário é, comumente, usada pelos bandidos
para dopar e furtar, entre outros crimes, as vítimas — o conhecido golpe
"boa noite Cinderela" —, mas começa a ser usada por jovens nas
baladas.
A xilazina ou droga zumbi, K9, foi produzida
em laboratório para uso como sedativo e analgésico veterinário. No ano passado,
ela se tornou popular nos Estados Unidos, por meio de vídeos divulgados pela
internet, em que as pessoas perdem o domínio sobre seus movimentos. O médico da
Casa Branca, doutor Rahul Gupta, diretor do escritório de combate às drogas,
admitiu que a K9 é uma ameaça emergente — reconhecimento, até então inédito
pela maior potência do planeta. A K9 desembarcou na cracolândia de São Paulo,
no ano passado. Em cinco meses afetou 98 pessoas. Neste ano, foram
identificados 216 usuários.
Todos os ensaios para erradicar as cracolândias espalhadas pelo país não surtiram o resultado esperado. Os serviços de inteligência do poder público não conseguem chegar aos chefes dos tráficos nem asfixiar a economia paralela, que comanda um estado concorrente dos órgãos oficiais. Impõe-se que tecnologia e outros meios do Estado sejam dedicados ao enfrentamento dessa verdadeira epidemia que consome vidas e desvia recursos, que poderiam ser destinados à saúde e a outros projetos necessários ao bem-estar da sociedade. Eis um desafio hercúleo aos Três Poderes da nação.
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