O Estado de S. Paulo
Proclamada afinidade com Jair Bolsonaro e com
Donald Trump em nada ajudará Milei no esforço para livrar seu país da
estagnação e do desastre inflacionário
Palhaçadas e grosserias podem ter ficado para trás, como truques de campanha de Javier Milei, presidente eleito da Argentina, mas convém levar em conta seus acenos à extrema direita. O papa Francisco e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva relevaram as ofensas, cumprimentaram o futuro ocupante da Casa Rosada e exibiram respeito ao eleitorado argentino. Milei já mudou de tom e falou mais seriamente sobre a enorme tarefa de enfrentar a inflação e consertar as finanças públicas. Ninguém deveria, no entanto, minimizar as saudações dirigidas, logo depois da vitória, a dois ícones do direitismo e do golpismo, os ex-presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro. Não há como esquecer essas figuras quando se pensa na invasão do Congresso americano, em 6 de janeiro de 2021, e na depredação das sedes dos Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro deste ano.
“Ultraliberal” foi como Javier Milei se
identificou durante a disputa eleitoral. Para mostrar seu compromisso com o
liberalismo, prometeu reduzir a interferência do Estado na economia e
privatizar empresas controladas pelo setor público. Milei tem sido apresentado
como simpatizante da chamada Escola Austríaca, formada por figuras importantes
do pensamento econômico liberal, como Friedrich Hayek, ganhador do Prêmio Nobel
de Economia de 1974, Eugen von Böhm-Bawerk e Ludwig von Mises. Entre as
principais figuras afinadas com esse grupo, nos Estados Unidos, destacou-se
Milton Friedman, também premiado com o Nobel. Mas liberalismo significa,
tradicionalmente, algo mais que a defesa do livre mercado e, portanto, dos
preços formados sem intervenção estatal.
Se a defesa do mercado capitalista bastasse
para indicar o liberalismo, a ditadura do general Pinochet, no Chile, seria
qualificável como liberal ou quase liberal. Os milhares de presos políticos e
de cidadãos mortos pelo regime teriam sido, nesse caso, atingidos por atos de
repressão compatíveis, ou parcialmente compatíveis, com valores liberais.
No caso do Brasil, seria impossível atribuir
essa qualificação às violências praticadas pela ditadura. Afinal, a
interferência estatal na economia era muito ampla. Além do controle de preços,
havia planejamento econômico, forte presença de companhias estatais em vários
setores e muito investimento público em áreas consideradas estratégicas. Pelos
critérios do liberalismo, as violências cometidas pelo poder público chileno
seriam mais compatíveis com a ordem liberal, medida pelas características do
mercado.
Faz sentido, por essa concepção da ordem
liberal, extinguir o órgão público responsável pela emissão da moeda. Esse
órgão pode ser o Banco Central ou qualquer entidade com poder para criar e
distribuir dinheiro. Ao defender a extinção do Banco Central argentino, Javier
Milei repete uma ideia já defendida, há muitos anos, por gente ligada à Escola
Austríaca. Sem a moeda produzida pelo Estado, os meios de pagamento seriam
gerados por entidades do mercado. Empresários e consumidores acabariam
selecionando, na prática do dia a dia, os instrumentos mais adequados para
facilitar as trocas, indicar os preços e funcionar como reservas de valor.
Poderiam existir várias moedas, inicialmente, e a experiência acabaria
apontando as mais adequadas – ou a mais adequada – a todas aquelas funções.
Algo semelhante deve ter ocorrido, supõem os estudiosos, há muitos séculos, em
diferentes sociedades.
Milei ficou longe desses extremos. Ao falar
em extinção do Banco Central de seu país, ele já propôs a substituição do peso
pelo dólar, moeda emitida pelo Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos
Estados Unidos. Analistas logo se perguntaram quem cuidaria de outras funções
da autoridade monetária, como a regulação e a fiscalização do sistema
financeiro, e se a economia argentina poderá operar, sem maiores problemas, se
ficar dependente do Fed.
Afinal, a autoridade monetária americana
formula sua política levando em conta as condições econômicas dos Estados
Unidos – itens como evolução dos preços, condição das contas públicas, nível de
emprego, ritmo da atividade e evolução do investimento produtivo. Como poderá
funcionar a Argentina, se a sua situação monetária for determinada com base nas
condições e necessidades da economia de outro país – neste caso, a maior
economia do mundo? Nem é preciso, diante desses fatos, perguntar como será
dolarizado um país com escasso estoque de dólares e muito endividado.
É difícil perceber como o ultraliberalismo
alardeado por Milei diminuirá essas limitações, especialmente se ele renegar os
vínculos do Mercosul e puser em xeque o relacionamento com a China. Esse
radicalismo poderá ser desastroso para a Argentina e prejudicial aos vizinhos,
incluído o Brasil, grande parceiro comercial. A proclamada afinidade com Jair
Bolsonaro e com Donald Trump em nada o ajudará no esforço para livrar seu país
da estagnação e do desastre inflacionário. Mas novas bandeiras de extrema direita,
especialmente num país com grande peso regional, poderão ser muito ruins para
toda a vizinhança.
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