O Estado de S. Paulo
O pogrom de outubro e a tragédia de Gaza evidenciam que, no caso destes dois grandes povos, só fanáticos ainda creem haver terra a tomar e guerra a vencer
Nada pior para um conflito como o que ora
transcorre em Israel e em Gaza, carregado de dimensões simbólicas milenares, do
que ser capturado pela lógica pedestre das guerras de cultura, tão raivosas
quanto superficiais. Israel nelas aparece, monoliticamente, como o
representante do imperialismo ocidental, um apêndice estranho e indesejado na
região, contra quem toda e qualquer revolta se justifica, mesmo quando, como em
7 de outubro, pisoteia valores mínimos da civilização e reacende temores
ancestrais de perseguição e aniquilamento. Pela mesma lógica, inversamente, o
Hamas identifica-se com todo um povo e surge como protagonista de um tardio
combate anticolonial, em torno do qual devem se juntar automaticamente os
condenados da Terra.
Postas assim as coisas, cada um de nós não tem muito mais a fazer senão se afundar nas respectivas câmaras de eco e repetir indefinidamente as próprias verdades até que um dia, quem sabe, sobrevenha o cansaço e reapareça a necessidade de buscar alguma outra “causa justa”. Perdem-se nuances, omitem-se elementos significativos de um complexo consenso em construção, inclusive nos círculos dirigentes do Ocidente.
Por aqui, aliás, há bons sinais. Certamente,
tarda uma decidida ação de paz pelos Estados Unidos, a potência capaz de conter
ou influenciar Israel e, ao mesmo tempo, dialogar com o mundo árabe, suas ruas
expressivas e seus dirigentes mais sensatos. No entanto, neste momento de
trevas, tem sido animador ver o amadurecimento definitivo da ideia dos dois
Estados, alicerçada não só numa necessária visão pragmática, como também no
reconhecimento formal do direito à terra tanto por judeus quanto por palestinos.
Tem mais de um grão de verdade a proposição
do presidente Biden segundo a qual, neste “ponto de inflexão da História”, há
um contraponto entre democracias e autocracias. Trata-se, porém, de uma verdade
parcial, provisória, até pelo fato de que, como o próprio Biden sabe em
primeiríssima mão, as democracias permanecem assediadas internamente por atores
disruptivos com capacidade para produzir fissuras em consolidadas tradições
constitucionais. E, por ironia, nem mesmo a democracia israelense está livre deste
assédio. Um político como Benjamin Netanyahu, não por acaso, é fator interno de
restrição das liberdades e fator externo de guerras e invasões, ainda que nesta
última circunstância tenha os extremistas palestinos como sócios dedicados.
De fato, com algumas exceções, como perto de
nós a Venezuela, têm vindo da extrema direita global as ameaças mais graves aos
regimes democrático-constitucionais que costumávamos considerar quase um fato
da natureza. O culto do homem forte e providencial ressurgiu como a novidade em
reação à globalização dos mercados feita de modo veloz e anárquico em algumas
poucas décadas. O rótulo “nacional-populismo” define bem a situação
recentemente criada: nativismo ideológico, fechamento de fronteiras econômicas,
proteção real ou meramente demagógica aos trabalhadores locais, em troca de
concentração de poder e asfixia dos pesos e contrapesos de uma democracia cada
vez mais difícil.
Netanyahu é a manifestação israelense deste
movimento reacionário global. Antes de 7 de outubro, havia um número
impressionante de cidadãos nas ruas e praças de Israel, em manifestações que
perduraram por meses a fio em defesa do Poder Judiciário. Por certo, a esquerda
em sentido estrito, minoritária desde que a perspectiva de paz se enfraquecera,
não tinha o controle dos protestos, dominados por preocupações com o destino de
uma instituição absolutamente decisiva. E neles não estavam os árabes israelenses.
Não importa muito, brotava ali o germe da renovação e da esperança, o repúdio
de massas contra o autocrata em formação. Este germe e este repúdio se viram
paralisados com o conflito, que, neste preciso sentido, responde ao
nacionalismo agressivo de Netanyahu e seus aliados de extrema direita,
particularmente os que representam a ocupação ilegal na Cisjordânia.
Guerras cumprem a função clássica de unir
momentaneamente a população em torno da salvação nacional e de abafar o normal
dissenso democrático que, de outro modo, se desenvolveria e teria o potencial
de dar bons frutos. Na espessa névoa que logo produzem, prevalecem profissões
de fé e alinhamentos pavlovianos, como se Israel só tivesse amigos à direita, a
Palestina à esquerda. E como se um país inteiro se reduzisse à guerra ao terror
e o outro, em formação, limitasse suas formas de luta e resistência a explosões
bárbaras.
O caminho da paz, surpreendente e
imprevisível, é um daqueles que só se fazem ao caminhar – e a História está
mais cheia deles do que parece. Como muitos autores têm lembrado, a Guerra do
Yom Kippur, em 1973, levaria ao acordo entre Begin e Al Sadat; e à Intifada de
1987 se seguiriam os Acordos de Oslo entre Rabin e Arafat. O pogrom de outubro
e a tragédia cotidiana de Gaza escancaram a evidência de que, no caso destes
dois grandes povos, só fanáticos ainda acreditam haver terra a tomar e guerra a
vencer.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil
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