Folha de S. Paulo
Lula, o Brasil e uma pequena história dos
erros de interpretação do que foi, é e será
No Natal de 2003, Luiz Inácio Lula da
Silva previa um 2004 "difícil". O governo seria "mais
cobrado" e o ano não seria dos seus "sonhos", embora melhor. O
país não parecia conturbado —2004 viria a ser quente nas ruas. Havia uma
espécie de alívio, algo desanimado, dentro e fora do governo.
Lula e PT assumiram sob descrédito, em um país com as contas externas quebradas. Juros e inflação haviam aumentado de modo preocupante; cairiam um tanto, sob uma política macroeconômica idêntica à de FHC 2 (com grande superávit primário, note-se).
O PIB ficaria quase estagnado. Mas, ao final daquele 2003, previa-se que o crescimento de 2004 seria de 3,5%. Foi de 5,8%. Nos cinco anos de 2004 a 2008, a renda (PIB) per capita aumentaria 20%, inédito desde 1980. Tal avanço e o Bolsa Família mudariam a história política do país de modo que então não imaginávamos.
Nos finais de ano, este jornalista revê o que
escrevia (ou editava) em tempos mais distantes. A anamnese, sempre
desanimadora, é uma tentativa de afinar a percepção ou, pelo menos, de aumentar
o "simancol".
Na névoa de batalha do curtíssimo prazo, mal
enxergamos os movimentos políticos ou econômicos mais imediatos. Menos ainda
captamos tendências subjacentes que já se insinuam ou o efeito de mudanças
culturais e sociais (redes, demografia).
Observando os dados de longo prazo, é de
costume e desolador notar o quanto taxas de juros do mundo rico e preços de
commodities determinam economia e política. Faz quase meio século, o país é
quase incapaz de navegar contra maus ventos do mundo. Isso quando não há
besteira grossa.
A popularidade de Lula decolaria apenas em
meados de 2006, último de Lula 1. Ficara perto de 43% no primeiro ano (nota
"ótimo/bom" do Datafolha), de 39% em 2004 e despencaria até 28%, em
2005, devido à corrupção política ("mensalão") e outras.
Lula deixaria o poder em 2010 com 83% de
aprovação. A direita perderia todas as eleições presidenciais até 2018, neste
caso com Lula preso; voltara ao poder apenas em 2016, com a deposição de Dilma
Rousseff.
O que esperar depois dos desastres causados
por corrupções e pela toleima econômica decisiva depois de 2013, da fixação do
desejo acirrado de acabar com Lula e o PT, da autodestruição do centro, da
nossa recorrente opção pela mediocridade deste país dominado voluntariamente
pelo centrão cinzento, com novas forças socioeconômicas para as quais não
dávamos bola faz uma década, se tanto?
As bancadas da bala, do boi e da Bíblia
zanzavam por aí antes de Jair
Bolsonaro. Com o capitão das trevas, realizaram o desejo de chegar
ao poder com um representante direto e assumido, ao lado de parte da finança e
do empresariado "liberal" (favor para si, liberalismo no couro de
outrem).
Algumas dessas forças sociais, econômicas e
políticas cresceram lentamente, por décadas. É o caso do sucesso do
agro, associado a um grande avanço científico e tecnológico
patrocinado pelo Estado; da formação de uma nova cultura religiosa nas
periferias largadas (onde surgiram também as facções nacionais do crime). Nem
se fale do contexto de revolução dos smartphones e
redes ou de involução do trabalho.
A economia depende cada vez mais de
exportações agropecuárias e, agora, de petróleo, resultado de outro projeto
estatal de longo prazo, a Petrobras.
Desde 2017, ao menos, houve mudanças institucionais grandes na economia
(trabalho, Previdência,
leis comerciais e financeiras; agora, em impostos),
sem conturbação social, o que é raro. É ainda difícil discernir ou calcular os
efeitos econômicos dessas reformas. Mas mudança grande houve.
O que a gente não está vendo, porém? Vai
saber apenas em 2033 ou 2043, se tiver a sorte duvidosa de durar tanto?
Um comentário:
Sei.
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