O Globo
Vão acabar com a Feira de Acari, talvez com a
mesma logística usada para dar fim às cracolândias: mudando seu endereço
Hoje vou me permitir uma heresia: um texto em
primeira pessoa. Eu, que fujo dela como um pobre-diabo, se pudesse, fugiria do
SUS. Porque é desnecessária: numa coluna de opinião, em cada frase há um “eu”
implícito. O Houaiss endossa: opinião é o “julgamento pessoal (justo ou
injusto, verdadeiro ou falso) que se tem sobre determinada questão”.
Quando o colunista diz “é”, não quer dizer
que seja, mas que ele vê dessa forma. Tomar partido — pecado no jornalismo — no
artigo de opinião é virtude. Mais: é sua razão de ser.
Anúncio classificado tem viés (“Magnífico 2 quartos, claro, arejado”). Previsão do tempo tem subjetividade (“Chance de alguns raios e ventos moderados. Demais regiões com pouca chuva”). Por que uma coluna de opinião deveria ser “neutra”? Como haveria de ser “objetiva”?
Ponderada, sim. Mas a escolha do tema sobre o
qual se vai escrever (marcar posição) já pende para um lado da balança.
Esta de hoje poderia tratar do colapso moral
do Rio de Janeiro. A orla da Barra e do Recreio emulando a Chicago onde
mafiosos eram mortos à queima-roupa, em cantinas aconchegantes, e caíam de cara
no prato de espaguete, espirrando sangue e molho de tomate na toalha xadrez.
Aqui, em vez da Máfia, a milícia; do vinho, o chope. A mesa é dessas de
cervejaria, sem toalha. Sai o terno risca de giz, entra o trio
camiseta-bermuda-chinelo. O assassino não foge de Cadillac, Buick ou Lincoln
Coupé, mas de moto. Não há o flash do fotógrafo iluminando o quadro, e o
impacto da imagem, em preto e branco, na primeira página, no dia seguinte. A
cena é registrada pelos celulares de quem está na mesa ao lado e partilhada em
tempo real no Instagram. Foi-se o charme, preservou-se a barbárie.
Na mesma pauta, o sumiço do busto de Nélson
Rodrigues, de seu túmulo no São João Batista. Como coibir furtos e roubos (de
cabos de cobre a celulares, passando pelas vigas da Perimetral) numa cidade que
tem — há décadas! — uma feira (a céu aberto, à luz do dia) de produtos “de
procedência duvidosa”? Vão
acabar com a Feira de Acari — talvez com a mesma logística usada para
dar fim às cracolândias: mudando seu endereço.
Poderia ser sobre o spin-off de “Quem matou
Marielle?”. Não exatamente quem mandou matar, ou quem foi o mandante do
mandante, mas em quem essa pessoa votou em 2018. O título: “Toma que o mandante
é teu”.
Ou, ainda, sobre a atração fatal do PT pelo
erro. Depois de reaparelhar as estatais, quis retomar o controle da Vale, privatizada
há mais de um quarto de século. Voltou a enterrar dinheiro em refinarias que
produzirão mais prejuízos (e propinas) que combustíveis. Quer deixar o
contribuinte (que precisa de água tratada, esgoto, educação, saúde, transporte)
a ver navios; vai embarcar de novo no Titanic dos subsídios para a indústria
naval. Falta pouco para Janja plantar
um canteiro de flores vermelhas nos jardins do Alvorada e quebrarem mais uma
vez o sigilo bancário do Francenildo.
Mas esta é minha 200ª coluna. Queria
comemorar e falar do leitor, que tende a considerar isenta a opinião com que
concorda e tendenciosa a que o confronta em suas crenças. Que escreve “futebol”
e “paletó”, mas reclama de “becape” e “feiquenius”. O que se sente representado
(nem Lula nem Bolsonaro); o que pede que o jornal censure este
fascista/comunista.
Longa é a pauta; breves os 3 mil caracteres
deste canto de página. Fica para a próxima.
3 comentários:
Ao menos explicitou hoje sua falta de isenção.
"Quando o colunista diz “é”, não quer dizer que seja, mas que ele vê dessa forma." Mas como ele não deixa claro que está apenas expressando SUA OPINIÃO, muitos leitores acreditam que ele está analisando de modo imparcial. Ainda mais quando um sociólogo (Magnoli) ou economista (Belluzzo, Sardenberg) ou filósofo (Rosenfield) escrevem sobre assunto dentro de seu campo de formação, muitos leitores supõem ERRADAMENTE que o colunista está escrevendo profissionalmente e com imparcialidade sobre um assunto da sua ciência ou da sua área de atuação. Na verdade, ele está SEMPRE DANDO SUA OPINIÃO, como o colunista hoje (pela primeira vez?) deixou claro.
Muitos colunistas escondem isto exatamente evitando escrever na primeira pessoa! Como o colunista afirma no início: pra ele é uma HERESIA escrever na primeira pessoa. Isto é uma tremenda bobagem! Só é heresia pra quem prefere ENGANAR o leitor!
A depender da escolha de cada um, " opinião " pode transformar-se em " análise ", e " análise " em " opinião ".
■E tem as muitas vezes também em que nós pensamos que estamos concordando com a opinião ou com a análise de alguém e o que estamos efetivamente fazendo é concordar com nós mesmos e com as nossas vontades.
=》Nesses casos, nada importou de fato se a análise do outro foi bem feita e correspondeu à realidade; e a opinião do outro importou menos ainda e ao dizermos que gostamos daquela análise ou opinião significa apenas que queremos que as pessoas vejam as coisas daquele modo e se não for assim é porque ela foi parcial e não foi isenta.
●Ela só seria isenta ou imparcial se concordasse comigo.
■Coitado de mim, quando eu sou assim.
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