O Globo
O único argumento em favor da tese do viés
racial em fenômenos da natureza é que o conceito já é objeto de estudo há
décadas
Quando começou a se espalhar, na década de
1980, o HIV foi particularmente devastador entre homossexuais. A ninguém com um
nome a zelar ocorreu desenvolver teorias acerca da existência de um vírus
homofóbico.
Na primeira quinzena de janeiro, foram registrados 153 acidentes nas rodovias federais da Bahia, com 60 mortos. Considerando que 80,8% da população baiana se declara preta ou parda, e mais de 50,5% esteja em situação de pobreza, pode-se inferir que a maioria dessas vítimas seja afrodescendente e, apesar das promessas do governo, ainda não possa andar de avião. Nem por isso se cogitou um racismo rodoviário.
Mas basta cair um pé-d’água (e pés-d’água
caem, há séculos, com implacável regularidade, nesta época do ano) para as
autoridades serem apanhadas de surpresa — e, para surpresa de ninguém, a
militância sacar a carta do racismo climático. Não sem seletividade: a
discriminação meteorológica vale para o Rio de Janeiro,
não para o Rio Grande do
Sul, cenário de metade das mortes em decorrência das chuvas em 2023. Por um
motivo simples: lá, as vítimas eram apenas mais pobres, não necessariamente
mais pretas. E convenhamos: falar em aporofobia ambiental não tem o mesmo
apelo.
O único argumento em favor da tese do viés
racial em fenômenos da natureza é que o conceito já é objeto de estudo há
décadas no meio acadêmico (foi criado nos anos 1980 por Benjamin Franklin
Chavis Jr., jornalista e ativista afro-americano). Se isso conta, a teoria de
Cesare Lombroso (predisposição biológica à conduta antissocial) também foi
levada a sério em muitas instituições — e por várias gerações — até virar uma
triste anedota histórica.
Não faltam autores que confundam,
deliberadamente, gênero gramatical e gênero biológico para sustentar a crença
no machismo linguístico — e tentar emplacar a “linguagem neutra”. (Só falta
extrapolar para o gênero literário, demonstrando que “o” romance é mais
valorizado que “a” crônica por pura misoginia.) Também na língua se deu um
jeito de enfiar o racismo free style, fabulando preconceito étnico onde a
questão é meramente cromática (como em “buraco negro”).
Haveria racismo se as condições
climatológicas adversas provocassem inundação nas casas de pretos ricos e
poupassem os barracos de brancos pobres. Porém enchente, seca, deslizamentos de
terra — assim como o vírus da dengue, o protozoário da malária, da esquistossomose
e outras doenças negligenciadas — não têm faro para melanina. Os que sacam do
discurso racial são os mesmos que se posicionam contra o marco do saneamento,
não investem maciçamente no reassentamento de famílias em situação de risco e
insistem nas refinarias de petróleo (dane-se o meio ambiente).
Obras contra enchentes, estimadas em mais de
R$ 1 bilhão, estão paradas no Rio de Janeiro. O descaso e a incompetência são
do poder público, mas o coitado do clima é que leva a culpa.
Ombreiras, calças com nesga, lapelas de um
palmo de largura, mullets, coques com enchimento de bombril: tudo saiu de moda
— e hoje especulamos onde é que estavam com a cabeça ao usar aquilo. Deve
acontecer o mesmo com o racismo de mão única, o rodízio de gêneros, a
sexualização das palavras. Com a diferença de que esses modismos não nos
envergonharão só nas fotografias.
Até lá, dá-lhe gordofobia coronariana,
fascismo recreativo, transfobia prostática e uterina. E, claro, preconceito
racial pluviométrico.
Um comentário:
Entendi a metade e olhe lá... Tb entendi que o colunista gosta de palavras difíceis.
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