Valor Econômico
A mensagem ideológica das mentiras norteou a
caminhada da manada que se deslocou pela Praça dos Três Poderes em direção aos
alvos de fúria de “patriotas” de aluguel
A intentona autoritária de 8 de janeiro de
2023 pelo golpe militar e pela anulação do mandato legítimo do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, escondia e esconde um conjunto extenso de autorias e
protagonismos que não tiveram visibilidade nas prisões efetuadas. Examinando o
conjunto conhecido dos fatos e a sequência de ações de agentes do Estado e de
seus coadjuvantes, é inevitável reconhecer brechas e invisibilidades nas
evidências de conexões necessárias ao andamento e ao desfecho do processo
golpista.
As celebrações de 8 de janeiro deste ano, do triunfo das instituições, podem sugerir que as capturas e condenações realizadas pegaram os manifestantes mas nem todos os que deveriam ser capturados e processados. Os principais agentes da conspiração não foram devidamente identificados e presos. A multidão alucinada da ilegalidade notória, reunida à sombra de um quartel do Exército, revelou-se multidão de manobra da baderna preparada há muito.
A turba revelou-se de baixa classe média e
expôs sua mentalidade de botequim nas invasões e depredações, o que é essencial
para se inferir a identidade do sujeito coletivo da ação. O modo como se deu a
invasão dos recintos dos Três Poderes, a escolha dos objetos depredados, tudo
indica uma concepção do que para ela é o Poder a ser demolido, o vazio a ser
criado com a anulação simbólica das instituições.
É particularmente significativo que o ataque
ao STF e a depredação ali praticada coincidissem com o principal alvo dos
discursos e ameaças do ex-presidente da República e dos coprotagonistas ilegais
do seu mandato, os que usaram a alienação popular e as frustrações decorrentes
de uma impressão caricata e ignorante do que é o poder. A mensagem ideológica
das mentiras norteou a caminhada da manada carneiril que se deslocou pela Praça
dos Três Poderes em direção aos alvos de sua fúria de “patriotas” de aluguel.
Talvez as autoridades devessem colocar no
primeiro plano de suas preocupações não indivíduos isolados, como se faz nas
delegacias de polícia com os criminosos comuns. O criminoso do 8 de janeiro é
um criminoso coletivo, que não mostra a cara, lentamente gestado dentro e fora
do aparelho de Estado.
A possibilidade do golpe tentado agora já
estava definida no Artigo 142 da Constituição, cuja ambiguidade supostamente
legitimava a pretensão militar de tutelar os destinos do país e a consciência
política do povo. Nele as Forças Armadas definidas como guarda pretoriana da
República, uma função subalterna em relação àquilo que deveria ser próprio da
instituição.
Reli nestes dias o livro de Jorge Americano
“A lição dos factos”, sobre a Revolução de 1924, em São Paulo. Reconheci no
livro as enormes coincidências entre os acontecimentos de agora e os
acontecimentos militares de um século atrás. Americano era advogado e tinha
formação sociológica inspirada em Oliveira Viana. Escreveu o livro em 42 dias
para ressaltar não o cotidiano, mas os impasses da história.
Sua análise é muito superior à da maioria das
narrativas que descreveram os acontecimentos trágicos que destruíram indústrias
e residências nos bombardeios, que mataram mais de 500 pessoas e feriram mais
de 2.500, dois terços civis, especialmente nos bairros operários. Vários dos
analistas entenderam que os alvos eram civis no confronto de duas facções do
mesmo Exército, cuja unidade se expressará na Revolução de Outubro de 1930 e no
governo Vargas.
Americano ressalta que o golpe da Proclamação
da República foi o fator de deslocamento do Exército para funções anômalas num
regime republicano. De certo modo, como se viu no regime bolsonarista, a
crescente ocupação de funções civis por militares, o próprio Exército
suscitando a necessidade de sua intervenção na realidade política para
enquadrar necessidades de expressão da sociedade.
Porém, há uma novidade na anomalia. Há um
novo ente coletivo com funções parecidas com essa função do Exército. O
surgimento de partidos políticos antidemocráticos disfarçados de igrejas e
religiões, pastores usando o púlpito em favor do golpe militar e do
autoritarismo, criou uma mediação estranha à democracia e ao regime republicano
que teve função de mandante de muitos na baderna de 8 de janeiro.
Quando um pastor ou padre usa o púlpito como
tribuna de partido, de fato não se trata de igreja nem de religião. Trata-se de
crime político, que viola a Constituição quanto à separação entre Estado e
religião. Nesse caso essa modalidade de ação partidária deveria perder as
supostas imunidades religiosas. O mesmo em relação aos militares que se
dispuseram a conspirar contra a democracia em favor do golpe. É a função que
diz que coisa é.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).
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