sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Fernando Gabeira - Segurança pública como o patinho feio

O Estado de S. Paulo

É uma tarefa audaciosa num país como o Brasil defender verbas adequadas para a área. Mas temos insistido na relação insegurança e economia

A troca de ministro da Justiça é mais uma oportunidade para trazer para a agenda o tema de segurança pública. Minha tese é de que podemos ter uma política democrática e eficaz no setor. Mas o caminho não é fácil.

Não sou especialista nem pretendo esgotar o tema. Quero apenas avançar algumas ideias acumuladas em alguns anos de reportagem policial e décadas de observação política.

A segurança pública nunca foi um tema empolgante para os líderes nacionais, sobretudo nesse período de redemocratização. Ou é vista como algo secundário ou mesmo perigoso, pois arrisca dividir com os Estados um desgaste que deveria ser só deles, os responsáveis legais pela tarefa. O tema é visto mesmo até com um certo desprezo, pois não tem as características nobres de outras atividades do estadista.

Como as redações se estruturam de forma a se espelhar nos governos, o tema policial, ao longo dos anos, também é visto como secundário.

Essa lacuna abriu caminho para dois fenômenos que se retroalimentam: programas sensacionalistas no rádio e na TV e uma política de extrema direita para a segurança. Ambos se apoiam na ideia de uma punição rigorosa sintetizada no slogan “bandido bom é bandido morto”. Outra premissa dessa vertente política é armar a população para que ela mesmo se defenda.

De vez em quando surge uma experiência internacional que serve de alento para esse culto de morte. Uma delas aconteceu nas Filipinas, com o governo de Rodrigo Duterte, um exterminador de transgressores. Mais recentemente, o modelo que alimenta essa expectativa vem de El Salvador na figura do jovem presidente Nayib Bukele.

Embora tenha uma base de apoio no cenário nacional, é o tipo de política que não contempla a complexidade e o nível de democracia do Brasil.

Mas, se recusamos uma política feroz como a desses governantes, isso significa que não existe nenhuma política para rivalizar com ela, exceto um programa amplo de prevenção?

Temos tarefas gigantescas no Brasil que não se solucionam com prevenção. Uma delas é a de recuperar o território ocupado pelo crime, restabelecer a soberania. Não seria realista colocar como objetivo de uma política de segurança pública acabar com o tráfico de drogas, pois todos sabemos no que deu a política de guerra às drogas. Mas o objetivo de recuperar o território é perfeitamente viável. Mais da metade do território da cidade do Rio está em poder do crime, tráfico de drogas e milícia. Sua influência se espalha pelo Estado, inviabilizando indústrias de energia solar e enraizando-se poderosamente nas áreas turísticas.

O Estado brasileiro não consegue se impor na Amazônia. Depois de um ano de trabalho, os yanomamis continuam morrendo de fome e invadidos pelo garimpo. Também há presenças ilegais entre os caiapós e os mundurukus.

Portanto, uma política de segurança pública obviamente tem de definir como objetivo a recuperação do território perdido.

O crime organizado se espalhou pelo Brasil, e sua presença no Norte e Nordeste é uma realidade. Impossível combatê-lo sem uma articulação nacional. Em tese, qualquer um pode fazê-la, mas é muito mais adequado que se faça a partir do governo federal. Governador e secretarias de Segurança precisam de um espaço próprio para discutir o tema e tomar decisões.

Na Amazônia, ficou evidente, assim como em outros pontos do País, que são amplas as ligações transnacionais do crime. É preciso partir logo para a prática de ação transnacional coordenada, muitas vezes anunciada como projeto.

Quem não vê relação entre as penitenciárias e as ruas está míope. A situação penitenciária no Brasil é um aspecto vital da política se segurança pública. Convivemos com o fracasso do sistema resignadamente, deixando que as coisas se agravem com importantes repercussões também fora das cadeias.

Não vou insistir em teses já batidas de ampliação da inteligência, modernização do equipamento. São conhecidas assim como cursos de formação, melhores salários.

O que falta também é um esforço político para que o tema ganhe sua importância orçamentária. É uma tarefa audaciosa num país como o Brasil defender verbas adequadas para a segurança pública. Na hora de gastar, o tema parece supérfluo. Mas temos insistido na relação insegurança e economia, mostrando que, de um ponto de vista puramente material, prevenir, equipar e reformar significa reduzir as perdas financeiras.

Se formos capazes de demonstrar essa equação, podem cair as resistências. De qualquer forma, a tarefa continua diante de nós, desde a redemocratização, e é um tipo de tarefa que pode nos engolir, caso escolhamos o fracasso como política.

Não é um caminho fácil: formular, planejar, defender uma nova visão orçamentária e vencer eleições. Mas enquanto ninguém se arrisca, a situação só se agrava.

 

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