Setor privado desmente arautos do intervencionismo
O Globo
Com investimentos estimados em R$ 170
bilhões, empresas privadas se tornam solução para infraestrutura
Os investimentos estimados para este ano e os
próximos em infraestrutura deverão
somar pelo menos R$ 170 bilhões. O destaque, ao contrário do que imaginam os
arautos do novo intervencionismo estatal, é a iniciativa privada. Sem ela,
estradas continuariam em decrepitude, linhas de transmissão de energia não
existiriam, portos deixariam de ser ampliados, e o saneamento básico se
manteria no estado de indigência em que esteve nas últimas décadas.
Ao mesmo tempo que anunciou investimentos de R$ 300 bilhões numa nova versão de política industrial — cujos detalhes têm despertado inquietação —, o BNDES elabora no momento a modelagem de 138 concessões e projetos de Parceria Público-Privada (PPP), segundo levantamento do GLOBO. Ao todo, eles podem significar obras no valor de R$ 268 bilhões.
A carência brasileira em infraestrutura
representa uma enorme oportunidade de negócios. Investimos abaixo de 2% no
setor, ante necessidade de mais de 4% ao longo de 25 anos, segundo cálculos da
consultoria Inter. B. Mas tudo depende da regulação. Em vez de resgatar o
dirigismo estatal, a preocupação do governo deveria ser criar condições
atraentes e estáveis para o capital privado poder apostar em projetos de longo
prazo no Brasil.
Um bom exemplo é o saneamento. Atendendo a
pressões políticas contrárias ao Marco do Saneamento Básico, o Planalto tentou
atender ao pleito das empresas estaduais de água e esgoto, responsáveis há
décadas pela insalubridade que castiga grande parte da população. O Congresso
reagiu rejeitando as mudanças. Houve negociação, o governo obteve apenas parte
do que queria, e os investidores se mantiveram interessados. Estão com o BNDES
projetos de saneamento em 185 cidades de Pernambuco (estimados em mais de R$ 16,5
bilhões), 75 de Sergipe (R$ 6,2 bilhões), 48 de Rondônia (R$ 6,7 bilhões) e em
Porto Alegre (R$ 5,3 bilhões). Apesar de ainda haver uma brecha aberta a
municípios resistentes às concessões, o balanço final foi positivo.
A venda do controle da Eletrobras também
abriu espaço ao setor privado no mercado de linhas de transmissão. De acordo
com o Ministério de Minas e Energia, apenas duas licitações neste ano
mobilizarão investimentos de R$ 24,7 bilhões. Uma terceira prevê obras de R$
20,5 bilhões em 6.500 quilômetros de linhões. Tais cifras confirmam que a única
alternativa para arcar com as constantes e crescentes necessidades de ampliação
do setor elétrico é a iniciativa privada — e desmentem o mito de que só o
Estado pode conduzir grandes projetos de infraestrutura.
Apesar da resistência ideológica do governo
petista às privatizações — como as do Aeroporto Santos Dumont, no Rio, ou do
Porto de Santos —, o Ministério dos Portos e Aeroportos mantém planos de
concessão de terminais portuários que poderão somar R$ 8 bilhões em
investimentos. Nas rodovias, a resistência é menor, e já existem no país
operadores consolidados. A concentração de concessionárias, prevista para os
próximos anos, deverá gerar empresas mais robustas, com menor necessidade de
crédito subsidiado.
Esse quadro dinâmico deveria transmitir ao
governo um recado simples: regras claras, estáveis e acolhedoras ao capital são
mais importantes para atrair os investimentos de que o Brasil precisa — não
apenas em infraestrutura — do que qualquer plano mirabolante urdido nos
gabinetes de Brasília.
Lei sobre guarda de filhos deve ser
aperfeiçoada, não revogada
O Globo
Apesar dos problemas no uso do conceito de
'alienação parental', vazio legal não é melhor alternativa
As ações de alienação parental, instauradas
nas situações de conflito entre pai e mãe separados, multiplicaram-se por 13
entre 2014 e 2023 — de 401 para 5.152 —, segundo dados do Conselho Nacional
de Justiça (CNJ).
Não há consenso sobre o uso da Lei da Alienação Parental (LAP), aprovada em
2010, a ponto de polos ideologicamente opostos serem favoráveis a revogá-la.
Parlamentares do PSOL e do PL assinam projetos distintos contra ela. Ativistas
veem na coincidência de opinião entre esquerda e direita um argumento favorável
à revogação. Mas não necessariamente a solução drástica seria a melhor
resposta.
Definida na lei como “interferência na
formação psicológica da criança ou adolescente” por um dos genitores, a
alienação parental tem sido usada como escudo de defesa de pais acusados de
violência doméstica contra os próprios filhos. A LAP é frequentemente
mencionada por advogados quando a mãe pede guarda unilateral a um pai a quem
acusa de abusar dos filhos.
Mas, embora não haja dados oficiais do CNJ,
um levantamento em 404 acórdãos de tribunais de Bahia, Minas Gerais, Rio Grande
do Sul e São Paulo constatou que 63% das reclamações com base na LAP haviam
sido feitas por pais, 19% por mães e 18% por outros responsáveis legais.
Depoimentos de psicólogos da Defensoria Pública de São Paulo e do Tribunal de
Justiça do estado confirmam que as mães também são atingidas pela LAP quando os
pais recorrem à Justiça para ter acesso aos filhos.
Uma queixa recorrente se baseia no conceito
de Síndrome da Alienação Parental (SAP), formulado pelo psiquiatra americano
Richard Gardner para descrever a “lavagem cerebral” feita por um dos genitores
para que haja rejeição ao outro. Gardner acusava em especial as mães de
procurar afastar os filhos dos pais com base em denúncias falsas de abuso
sexual. Como a tese não tem comprovação científica, as Nações Unidas pediram ao
Brasil que proibisse seu uso nos processos judiciais.
Na América Latina, há leis específicas sobre
o tema apenas no Brasil, no México e em Porto Rico (na Argentina há referência
no Código Penal, desde 1993). Em 2022, houve alterações na lei brasileira para
assegurar atendimento especializado às crianças envolvidas em conflitos. Mas
elas foram insuficientes para acabar com as divergências. Em razão da alta
carga emocional associada ao tema, é improvável que haja uma solução capaz de
atender a todas as demandas. Melhor do que a simples revogação de uma lei que trata
de assunto tão vital para as famílias é o CNJ, auxiliado por parlamentares que
têm acompanhado a questão, ouvir opiniões especializadas para tentar
aperfeiçoar a legislação. O vazio legal não parece a melhor alternativa.
Assédio à Vale
Folha de S. Paulo
Lula recua na ofensiva por Mantega; pior é
tentar intervir em empresa privada
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
encenou um recuo em sua pretensão absurda de conduzir o ex-ministro Guido
Mantega a um cargo na cúpula da Vale, mas não se deve crer que cessarão as
pressões do Planalto sobre a mineradora privatizada em 1997.
Mesmo sem declarações explícitas das
autoridades, o movimento governista pelo nome de Mantega foi conduzido sem
segredo nas últimas semanas e derrubou o valor de mercado da empresa. Na
sexta-feira (26), diante da resistência de acionistas e críticas na sociedade, Brasília fez
saber que a ideia indecorosa seria deixada de lado.
Por incrível que pareça, a hipótese menos
ruim para a motivação de Lula é a recusa em reconhecer os fracassos, a má
gestão e os casos comprovados de corrupção ocorridos nas gestões petistas
anteriores —além do objetivo de recompensar pessoas que lhe foram fiéis nos
seus piores momentos.
Para tanto, não importam competência ou
lisura, nem as necessidades atuais do país.
No caso de Mantega, não deve haver dúvida de
que o histórico é ruinoso. Como ministro, ele teve papel na degradação da
política econômica que culminou, no mandato de Dilma Rousseff (PT), em um das
mais profundas recessões já documentadas no país.
Não há nenhuma injustiça nessa avaliação,
como quer fazer crer a presidente do PT, Gleisi Hoffman, que saiu em
apoio ao ex-titular da Fazenda. Em sua defesa, no máximo se pode
dizer que não tinha autoridade suficiente para influir nos desígnios da
ex-presidente.
Mais grave e temerária, porém, é a rigidez
ideológica de Lula e de seu partido, que continuam presos a concepções
anacrônicas. Não olham para frente e buscam reescrever um passado de supostas
glórias, como se a economia e a sociedade brasileira não tivessem evoluído e as
necessidades atuais não fossem diferentes.
No caso da Vale há reincidência de Lula, que
nos mandatos anteriores criticou a empresa por investimentos fora do Brasil e
pela aquisição de bens de capital, como navios, de fornecedores estrangeiros.
Já naquela época a mineradora não era
estatal, mas o governo tinha influência em sua gestão pela participação de
fundos de pensão no capital e o alinhamento prévio do voto de acionistas de
peso.
Hoje nem isso existe, felizmente —o capital é
mais diluído, não há um bloco de controle e o conselho é independente.
Mas Lula insiste em suas teses passadistas,
quando faria melhor em se preocupar com o Orçamento e medidas que atraiam
investimentos. Deveria ser desnecessário apontar o despautério de um governo
buscando interferir na gestão de uma companhia privada.
Hora do juízo
Folha de S. Paulo
Capaz de retroceder, relógio fictício aponta
90 segundos para fim do mundo
Em 1947, dois anos após as bombas atômicas de
Hiroshima e Nagasaki, cientistas envolvidos na criação dessas armas de
destruição em massa lançaram ideia criativa: um relógio fictício para marcar
quanto tempo falta para o fim do mundo. Hoje, os ponteiros
indicam 90 segundos para o Juízo Final, a pior situação em 77 anos.
A estimativa resulta de uma avaliação do
contexto global feita pelo Conselho de Ciência e Segurança da organização
Boletim de Cientistas Atômicos, fundada em 1945 por Albert Einstein e J. Robert
Oppenheimer, entre outros.
Os ponteiros não se moveram em 2024, embora a
análise do grupo tenha delineado que a situação do planeta piorou em relação a
2023.
A guerra na Ucrânia, com risco de uso de
armas nucleares pela Rússia, completou dois anos e não dá sinais de arrefecer.
Bombas atômicas, ainda que táticas, não ficariam sem resposta da Otan.
Outra conflagração veio agravar a
possibilidade de um conflito amplo: a de Israel contra o Hamas, que perpetrou o
ataque terrorista contra de civis israelenses em 7 de outubro. A retaliação
impiedosa na faixa de Gaza pode arrastar
nações do Oriente Médio.
Preocupa o envolvimento do Irã e seu programa
de enriquecimento de urânio. E não se descarta nova corrida armamentista, em
especial com Rússia e EUA a discordar sobre tratados de controle nuclear.
O boletim aponta ainda a mudança de patamar
na crise do clima, com 2023 alcançando a marca de ano mais quente já registrado
—pior, sem
indicações de que governos comecem a dar passos mais decididos para
contra-arrestar o aquecimento global.
Assinala uma boa notícia com o investimento
de US$ 1,7 trilhão em energia limpa no ano passado. Contudo ressalva que se
destinou outro US$ 1 trilhão para combustíveis fósseis, cuja queima segue em
alta, quando precisaria retroceder 43% nos próximos seis anos.
Outro perigo arrolado é o avanço de técnicas
de manipulação genética, que podem servir a armas biológicas e gerar novas
pandemias.
Por fim, indicia a inteligência artificial,
por seu potencial para disseminar desinformação e assim erodir a governança
capaz de administrar crises, além do potencial uso militar de armas autônomas,
alheias a controle humano.
Se há algo a propiciar alento, o Relógio do Juízo Final é capaz de retroceder, como já fez em outros momentos da história.
Remendo novo em roupa velha
O Estado de S. Paulo
Economista que inspirou o novo programa industrial defende ‘Estado empreendedor’ e se tornou a musa dos desenvolvimentistas, certamente por propor solução fácil para problema complexo Economista italiana que defende “Estado empreendedor” vira “musa”.
Os desenvolvimentistas têm uma nova musa. Ao
lançar sua “Nova Indústria Brasil”, o governo de Lula da Silva destacou o
trabalho da economista italiana Mariana Mazzucato como fonte de inspiração.
“Musa” é um pouco mais que metáfora. Segundo a própria Mazzucato, seu livro
seminal, O Estado Empreendedor, é uma “batalha discursiva”. A escassez de dados
é tão notória quanto seu diagrama mostrando que tudo o que há de importante no
iPhone foi uma dádiva dos governos. Seu talento é contar histórias mostrando o
sucesso do envolvimento do Estado em grandes inovações.
O senso comum liberal é que a iniciativa
privada cria as inovações e o crescimento que financiam o setor público, mas
para Mazzucato é o contrário: através de missões “ousadas e inspiradas”,
políticos carismáticos e burocratas visionários apontam o caminho para resolver
grandes problemas e financiam as tecnologias que, depois, são empregadas pelas
empresas privadas para comercializar produtos lucrativos.
A crise financeira de 2008, as tensões
geopolíticas, o crescimento da China e a pandemia parecem justificar essa
narrativa. Políticas industriais e protecionistas se popularizam entre
estatistas à esquerda e nacionalistas à direita como condição para criar
empregos, dominar mercados e vencer rivalidades geopolíticas.
No entanto, essa epopeia do Estado
empreendedor é obviamente uma falácia. As evidências de Mazzucato são
exageradas e anedóticas. Os casos de sucesso são selecionados a dedo,
negligenciando a proporção muito maior de fracassos.
Enquanto o anarcocapitalista Javier Milei,
presidente argentino, exagera ao dizer que não existem “falhas de mercado”,
Mazzucato peca pelo excesso oposto, como se não houvesse “falhas de Estado”.
“Não são levados em conta problemas de economia política e dificuldades no
processo de escolha pública que resultam em problemas como corrupção, captura
das políticas públicas, resistência a mudanças e ineficiência decisória”,
resumiu Marcos Mendes numa crítica a O Estado Empreendedor publicada no site do
Insper. “Tampouco se considera a importância da capacidade de governança
pública, e o fato de que mais de 90% da população vive em países com governos
de baixa capacidade técnica e operacional.”
O problema de fundo é uma visão ingênua de
como funciona a inovação. “Grandes rupturas nunca vêm de planos de governo ou
gênios solitários, mas da efervescência de ecossistemas intelectuais com a
constante fertilização cruzada entre diferentes disciplinas e atividades”,
notou o economista Johan Norberg, ao sumariar a história da tecnologia traçada
por Matt Ridley no livro Como surgem as inovações. “Elas se sustentam em uma
complexa rede de colaborações, surpresas, inspiração e improvisação.”
O “milagre econômico” chinês poderia
contradizer essas ideias. Mas o crescimento dos anos 1980 aos anos 2000 começou
precisamente com a liberalização quase acidental em pequenas comunidades
rurais, depois abraçada por Deng Xiaoping para o comércio e a indústria e
impulsionada por uma forte urbanização e investimentos em educação. Na última
década, porém, o medo de Xi Jinping de que a liberalização econômica incite a
liberalização política tem motivado intervenções agressivas que estão exaurindo
essas condições.
Há muitas iniciativas do Estado brasileiro
que estimulariam as condições de inovação e crescimento, como mais segurança
jurídica, burocracia eficiente, infraestrutura e, sobretudo, educação e
pesquisa. O País nunca teve uma “política agrícola” com “missões”
grandiloquentes como as das inúmeras “políticas industriais” que resultaram em
voos de galinha e deixaram um rastro de corrupção, ineficiência, dívida e
inflação. Mas o investimento estatal nas pesquisas da Embrapa foram cruciais
para o espetacular crescimento do agro.
Uma política industrial realmente nova
buscaria assimilar essas lições e remover as barreiras que tornam o ambiente de
negócios do Brasil um dos mais inóspitos do mundo. Mas, tal como está, a “Nova
Indústria Brasil”, por mais sedutor que seja o canto da sereia de Mazzucato, é
só remendo novo em roupa velha.
Enquanto o futuro não chega
O Estado de S. Paulo
Projeção de exportação recorde de petróleo em
2024 é aviso prático de que é possível trabalhar pela transição energética sem
desperdiçar a demanda imediata por combustível fóssil
O Brasil pode colher um valor recorde com a
exportação de petróleo bruto em 2024, informou reportagem do Estadão, com base
na projeção da Associação de Comércio Exterior do Brasil. As vendas devem
atingir 83 milhões de toneladas e somar mais de US$ 43 bilhões, rivalizando com
a soja e o minério de ferro na liderança da pauta brasileira. Caso a projeção
se confirme, será o desempenho mais robusto da história, não obstante os
números sejam passíveis de revisão ao longo do ano, sujeitos a questões
geopolíticas e consequente variação na cotação do preço do barril. O
protagonismo do petróleo, sugerem especialistas, tem tudo para se consolidar
até 2030, quando a extração do présal começará a perder força.
Tamanha expectativa pode estremecer os
corações ambientalistas mais empedernidos e parecer fora de lugar para muita
gente envolvida no debate da transição energética e climática – sem a qual o
mundo seguirá mergulhado na dependência dos combustíveis fósseis e seus riscos
inerentes. Mas os números projetados não só reforçam outros alertas já emitidos
por países produtores, como reafirmam o que deveria ser uma preocupação
nacional, já sublinhada aqui: não há lugar para o petróleo nas matrizes
energéticas do futuro, mas no presente e no horizonte do curto prazo, gostemos
ou não, ele ainda é o maior combustível do crescimento econômico. Desperdiçá-lo
será um grande erro.
Dessa constatação derivam outras,
especialmente relevantes neste momento-limite para a tomada de decisão que
definirá a posição que o Brasil ocupará ao fim da transição energética. A
primeira delas é que, por se tratar de empreitada complexa, a transição requer
não um estalar de dedos movido por uma providencial “vontade política”, e sim
esforço, planejamento e execução de longo prazo. Serão anos, ou mesmo décadas,
de iniciativas que, ao fim do processo, não resultarão propriamente na extinção
da geração fóssil, sobretudo porque nenhuma modalidade exibe condições,
sozinha, de responder ao crescimento da demanda mundial por energia.
Estimativas sugerem que a procura global por energia aumentará 23% até 2045.
Renunciar a qualquer modelo de produção é contratar uma crise energética
futura.
Em segundo lugar, o mundo ainda enfrenta alta
dependência de petróleo. Isso significa que um desinvestimento acelerado pode
causar sérios problemas à economia global. Exigências de descarbonização da
atividade de exploração, produção e refino são mais plausíveis do que a mera
pregação pela interrupção dos trabalhos exploratórios em novas jazidas, como se
viu no debate do ano passado em torno da Margem Equatorial. Essa é uma das
razões que levam muitos especialistas e representantes dos países exportadores
de petróleo a defender que fortes investimentos em energia renovável sejam
acompanhados de outros, igualmente intensos, na exploração de petróleo.
A terceira ponta da história diz respeito à
singularidade brasileira. De um lado, o País tem a vantagem de abrigar
volumosos reservatórios de petróleo em áreas marinhas ultraprofundas, com
expertise para explorá-las com segurança e ao menor custo. É também um mercado
promissor na produção de hidrogênio verde, avança na geração eólica e solar e
tem condições de planejar o desenvolvimento em diversas frentes energéticas. Se
combinar esse potencial duplo, pode não só evitar a dependência da importação
de petróleo e derivados, como oferecer sua contribuição para mitigar os efeitos
da crise climática, além de tornar menos poluente a geração fóssil. E o
fundamental: os próprios recursos gerados pelo petróleo podem ajudar a
financiar o elevadíssimo custo da transição.
Até que esse ciclo se complete, o Brasil não
pode ignorar o fato de que a era do petróleo ainda parece longe do fim. Nem a
indústria de petróleo e gás deve ser vista como vilã da transição nem pode
servir de esteio para alimentar a insegurança energética e uma provável
desestabilização das economias. Isso não significa resignar-se à maldição dos
recursos naturais, tampouco abrir mão do planejamento cuidadoso de longo prazo.
Imediatismo, afinal, não combina com transição.
Tombamento que arruína
O Estado de S. Paulo
Se a ordem de proteger o patrimônio acelera
sua destruição, o processo precisa mudar
A iminente demolição do “casarão das
muletas”, como ficou conhecido um palacete do bairro Bela Vista, um dos mais
tradicionais do centro de São Paulo, é a imagem do desprezo pela preservação
histórica e cultural. Longe de ser um caso isolado, a degradação posterior ao
tombamento, em especial de imóveis particulares, tem sido uma constante nas
últimas décadas em grandes centros, regiões turísticas e cidades históricas
pelo Brasil afora.
O caso do palacete paulistano, com suas vigas
de sustentação que mal equilibram uma estrutura que ameaça desabar a qualquer
momento – e já condenada pela Defesa Civil –, é apenas mais um exemplo extremo
do descaso. Não é difícil encontrar outros pelas ruas do Rio de Janeiro,
Salvador, São Luís, na própria São Paulo e outras capitais brasileiras. A lista
seria interminável. E é justamente essa recorrência que suscita um olhar mais
atento para o descaso que já se tornou lugar-comum.
Tombamento é o instrumento de reconhecimento
e proteção do patrimônio cultural mais conhecido, como nos ensina a descrição
apresentada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan). Pode ser determinado tanto pelo governo federal quanto por Estados e
municípios, e o que se espera com a decisão é que aquele bem, de excepcional
valor, seja conservado para que sirva de legado às gerações futuras. Por óbvio,
para isso é preciso manter em tutela contínua o estado de preservação.
Ora, tome-se como modelo o tal casarão que,
literalmente, tomba um pouco mais a cada ano. Desde que a resolução do Conselho
Municipal de Preservação do Patrimônio de São Paulo o incluiu no elenco de bens
tombados, em dezembro de 2002, sete prefeitos, dos mais diversos matizes
político-partidários, passaram pelo Edifício Matarazzo. Ao longo desses 21
anos, não se constatou qualquer sinal de efetiva e produtiva fiscalização. O
que houve foram paliativos, como a instalação de escoras de ferro, um toldo plástico
para esconder a deterioração e mais vigas, desta vez de madeira. E, agora,
afinal, a demolição foi anunciada, porque a casa se tornou irrecuperável.
Quando os tombamentos rumam para resultados
totalmente opostos ao seu fim, que é justamente o de evitar a destruição, é
sinal de que é preciso reformular o processo. No caso dos imóveis particulares,
não raro a ordem de proteção é mal recebida pelos proprietários, que veem na
medida um engessamento de seu patrimônio, tanto pelas exigências em relação a
quaisquer alterações ou reformas quanto pela desvalorização imobiliária que
costuma ocorrer.
Negociações sobre eventuais desapropriações
poderiam ser a solução mais justa e adequada para esses casos. O “casarão das
muletas”, que já pertenceu a uma das tradicionais famílias paulistanas, é hoje
propriedade de uma empresa que não cumpre sequer com a obrigação do pagamento
de impostos. Em casos assim, cabe ao poder público pleitear os imóveis. Por
vezes, a deterioração é intencional, para aproveitar do terreno depois da
ruína.
Em resumo, é preciso que haja revisão do processo de tombamento e a fiscalização posterior, para que o patrimônio a ser preservado realmente o seja.
O mundo em uma encruzilhada
Correio Braziliense
Qualquer descuido pode ser fatal para o
regime democrático, que, mesmo com todas as suas imperfeições, é o único que
garante o poder de escolha a cada um e a liberdade de se expressar e de ir e
vir
A democracia enfrentará seu principal teste
neste ano, que terá o maior ciclo eleitoral da história. Mais de 70 países,
reunindo metade da população mundial, decidirão, nas urnas, que rumo seguirão.
Há uma enorme preocupação em todo o planeta com o forte crescimento de
movimentos populistas, sobretudo, o representado pela ultradireita. Integrantes
desse espectro político têm incentivado o que há de pior para a humanidade: o
ódio, a intolerância, o preconceito, a violência. Com um discurso simplista e
de fácil compreensão, travestido de conservador, têm cooptado apoio em todas as
camadas sociais. Um perigo.
Na Alemanha, a extrema direita já ostenta
entre 23% e 24% dos votos, tendo como principal plataforma a expulsão de todos
os imigrantes africanos, inclusive daqueles com nacionalidade. O argumento
entoado pelo partido Alternativa para a Alemanha (AfD) é o mesmo usado por
Adolf Hitler, de purificação da raça branca. Chama a atenção o grande
engajamento de jovens a esse movimento radical. Em Portugal, os grupos
extremistas marcaram para 3 de fevereiro uma manifestação contra os
estrangeiros de origem islâmica. Nas convocações por meio das redes sociais, os
organizadores recomendam aos participantes que levem tochas e chicotes para
"queimar e escorraçar aqueles que atentam contra os valores
europeus".
A Europa terá, em junho, eleições para o
Parlamento. Serão escolhidos 720 representantes dos 27 países que integram a
União Europeia. Em nenhum outro momento deste bloco a extrema direita reuniu
tanta força para formar uma bancada. Os radicais já assumiram o poder na
Itália, na Suécia, na Finlândia e na Holanda. Estão próximos de retomarem o
governo da Áustria. Conquistaram espaços importantes na Bélgica e podem
surpreender na França. O risco de implosão do bloco construído nas décadas que
se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial é latente, com os neonazistas
ganhando espaço e conquistando corações e mentes.
Nos Estados Unidos, o quadro é semelhante. O
republicano Donald Trump tem chances expressivas de retornar à Casa Branca nas
eleições marcadas para 5 de novembro. Quem se deu ao trabalho de ouvir os
discursos dele nas últimas semanas, em que ele disse que o presidente da
República deve ter imunidade para tudo, inclusive para aniquilar seus inimigos,
entendeu o caminho que a maior potência global pode seguir caso ele seja
eleito. Do outro lado do mundo, sem opositores, Vladimir Putin irá para o
quinto mandato, num pleito completamente fake, como se a democracia fosse uma
realidade na Rússia.
O Brasil, com as eleições municipais, se
insere nesse contexto em que a ultradireita poderá escalar vários degraus no
jogo político. O que a maioria dos eleitores decidir para as mais de 5,5 mil
prefeituras terá enormes reflexos na disputa presidencial daqui a dois anos. O
país já deu claros sinais de que o conservadorismo arcaico se enraizou na
sociedade, alimentado pela desinformação. Não tem sido diferente em outras
regiões do planeta, que enfrentam o desafio de regular a inteligência
artificial, usada para destruir reputações e disseminar o ódio.
Os cerca de 4 bilhões de cidadãos que irão às
urnas neste ano enfrentarão eleições marcadas pela transparência, pela coação,
pela falta de liberdade e pela ausência de oposição. É fundamental que a
maioria democrata prevaleça. Dados mais recentes apontam que, atualmente, há
mais autocracias no mundo do que regimes em que as liberdades são conquistas da
sociedade. Mais: o ano passado foi de recorde na África em golpes de Estado
perpetrados por militares.
Tudo isso comprova que qualquer descuido pode ser fatal para o regime democrático, que, mesmo com todas as suas imperfeições, é o único que garante o poder de escolha a cada um e a liberdade de se expressar e de ir e vir. Que o bom senso seja o grande vencedor neste que será o maior exercício de participação política da humanidade em um único ano.
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