O Estado de S. Paulo
Há, pois, uma aparência de retomada dos anos 1930, mas também dos que se seguiram a 1945
Acostumamo-nos, não de todo arbitrariamente,
a olhar para personagens, fatos e processos de um século atrás em busca de
alguma luz que nos guie em meio à enorme obscuridade ao redor. Discutimos se o
fascismo pode voltar, ainda que com roupagem nova, ou se a República Popular da
China reatualiza o velho comunismo, agora singularmente dotado de dinamismo
econômico e capaz de magnetizar, por causa da mobilidade social exitosa, o que
antes se considerava o “Terceiro Mundo”. E as sociedades que, cada qual a seu modo,
experimentaram a difícil combinação de capitalismo e democracia política voltam
a caminhar na corda bamba, ameaçadas pelos seus próprios demagogos e o séquito
de massas que arrastam em rodadas eleitorais sucessivas.
Há, pois, uma aparência de retomada dos anos 1930, mas também dos que se seguiram a 1945. Um observador marxista daquela década, pouco propenso ao sono dogmático, viu no surgimento e na imposição do americanismo e do fordismo não uma ardilosa maquinação imperialista, mas sim uma inédita tentativa de racionalização progressista da economia e da sociedade. Não é certo – referimo-nos a Antonio Gramsci – que deixasse de apostar inteiramente no socialismo soviético, mas é fato que admirava na civilização americana, em contraste com a europeia, uma capacidade hegemônica que “nascia diretamente da fábrica”. Por isso, ela dispensava mediações ideológicas excessivas bem como limitava vigorosamente setores parasitários, rentistas e outros dissipadores da riqueza socialmente produzida.
Processos históricos costumam se arrastar por
muito tempo e evidentemente não estão determinados de antemão. No entanto,
pode-se buscar no argumento gramsciano pelo menos o germe de uma explicação
para o desfecho do confronto que se seguiria no segundo pós-guerra. A potência
produtiva e a forte hegemonia implícitas no americanismo não teriam nada
equivalente no comunismo soviético. E os reformadores deste último tipo de
sociedade fracassaram ou chegaram tarde demais, quando estava tudo perdido e
até mesmo uma retirada em ordem parecia impossível.
É sagaz a observação de que a ordem bipolar
da guerra fria, cujo equilíbrio se limitava ao terreno militar e à
possibilidade de mútua destruição, desde o começo estivesse de certo modo
viciada pela relativa exclusão de gigantes asiáticos, como Índia e China. Onde
antes havia uma secular “estagnação histórica”, comparada à expansão febril do
mundo americano, cedo ou tarde se colheriam os frutos tanto da descolonização
quanto de uma revolução jacobina, como a que se deu na China em 1949. Esta
passaria por trilhas que desafiam os manuais de filosofia da História, bastando
mencionar a surpreendente mudança estratégica patrocinada por Mao, Nixon e
Kissinger. A partir de início dos anos 1970, o mundo comunista se partiria de
vez, cimentandose gradativamente a aliança entre americanos e chineses em chave
antissoviética.
Os chineses obtiveram amplo sucesso no ponto
em que os soviéticos falharam. A modernização da economia ocorreu em marcha
forçada nas décadas que se seguiram ao colapso da URSS e que são geralmente
reconhecidas como o período de máximo poder do polo vencedor da guerra fria. A
globalização neoliberal constituiu o terreno propício para a expansão chinesa,
e esse não é de modo algum o menor dos paradoxos que experimentamos até chegar
à atual “interdependência armada”.
Há muito mais coisas entre o céu e a terra
além das relações de mercado, que não acarretaram automaticamente nada que se
aproximasse de uma democratização efetiva. O partido único se manteve
especialmente zeloso da condição monopolista. Mais do que isso, especialmente
com a crise financeira de 2007 e a posterior ascensão de Xi Jinping, ficaria
claro que não era estranho aos chineses um conceito particularmente caro a
Vladimir Putin, aliado “sem limites” e sócio minoritário. Em extrema síntese, a
derrota da URSS terá sido o maior desastre geopolítico do século 20 – e destino
semelhante deve ser evitado por uma China elevada à condição de superpotência,
ainda mais que agora, segundo essa mesma visão, o Ocidente declina e está
fadado a ruir sob o peso das suas próprias contradições.
A afirmação da China e, mais em geral, da
Ásia é um fato da vida e define a inevitabilidade de um mundo multipolar, hoje
recheado de autocratas ou aspirantes a tal. Nele, as sociedades do capitalismo
democrático, em crise agora como há cem anos, estão severamente desafiadas a
renovar muitas das suas promessas não cumpridas tanto interna quanto
externamente. É forte e variada, na parte mais dura das suas elites e mesmo em
amplas parcelas da população, a tentação “corporativa” de se fecharem em si
mesmas e se deixarem guiar pelos interesses mais brutos e imediatos, agravando
insuportavelmente conflitos e desigualdades. Mas há também tradições, como o
liberalismo político e o socialismo democrático, cujo horizonte intrinsecamente
universal convém valorizar e enriquecer, mesmo que a hora presente nos convide
a exercer impiedosamente o pessimismo da razão.
*Tradutor, ensaísta, é um dos organizadores
das Obras de Gramsci no Brasil
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