Eleições tornam urgente regulação das redes sociais
O Globo
Congresso deve reduzir riscos trazidos por
desinformação e inteligência artificial às campanhas
No primeiro aniversário da tentativa de golpe
de 8 de janeiro, é salutar o país avaliar o que foi feito nos últimos 12 meses
para evitar novos ataques à democracia e urgente destacar o que falta fazer. Um
ponto parece unir as principais autoridades da República: a necessidade de
regular as redes sociais, principais focos de conspirações golpistas.
Em entrevista
ao GLOBO, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes foi
categórico: “A prioridade é impedir a continuidade dessa terra
sem lei das redes sociais”. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também
defendeu a regulação em entrevista recente: “Esse movimento de uma vida
paralela, não analógica, uma vida digital muito rápida, vai exigir de nós,
congressistas, que algumas modificações aconteçam”.
Faltando sete meses para o início da propaganda eleitoral, o Congresso deve dar atenção ao tema. Passou da hora de deputados e senadores deixarem de ser reféns das fabulações espalhadas pelas grandes plataformas digitais. A falta de regras transformou as redes sociais e os aplicativos de comunicação em centros de disseminação de desinformação. Repetidas vezes, as empresas de tecnologia falharam. Quando vídeos, áudios ou memes fraudulentos são removidos, milhões já os viram, e o estrago já está feito.
A proposta de lei sobre o tema — o Projeto de
Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, ou PL das Fake
News — já foi amplamente debatida. A versão amadurecida estabelece um
equilíbrio adequado entre a necessidade de respeito à privacidade e à liberdade
de opinião e a atribuição de responsabilidade às plataformas pelo respeito às
leis brasileiras (dever de cuidado). Com a aproximação das eleições municipais,
não há a menor razão para ela continuar parada.
A popularização da inteligência artificial
(IA) torna a regulação ainda mais urgente. Não é difícil prever o que vem pela
frente. Em fevereiro de 2023, na véspera do primeiro turno da eleição para
prefeito em Chicago, um áudio falso circulou com voz idêntica à do candidato
democrata defendendo violência policial. Em outubro, nos dias que antecederam a
eleição na Eslováquia, surgiu uma profusão de vídeos fraudulentos que exibiam
um líder progressista dizendo ser favorável à compra de votos e fazendo piadas
sobre pornografia infantil. Em novembro, antes do segundo turno do pleito
presidencial na Argentina, as campanhas dos dois candidatos admitiram usar IA
para fraudar vídeos.
No mundo off-line, há leis. São vedadas
“montagens, trucagens, computação gráfica, desenhos animados e efeitos
especiais” na propaganda eleitoral por rádio e TV. O mundo on-line é um
faroeste. Pelo bem da democracia, isso tem de acabar. Moraes, presidente do
Tribunal Superior Eleitoral, defende a cassação e a inelegibilidade de
candidatos que usarem IA para manipular propagandas. Sem legislação específica,
existe a dificuldade de rastrear a origem dos conteúdos disseminados por
aplicativos de mensagens. Essas e outras barreiras exigem que o Congresso tente
reduzir os riscos.
As eleições de outubro podem ser as primeiras
sob a égide de novas leis para o meio digital. Deputados e senadores não podem
mais perder tempo. Quando o Congresso voltar do recesso, essa deve ser uma das
prioridades. O prazo é exíguo, e o assunto, como mostra o 8 de Janeiro, da
máxima importância.
Fiscalização falha explica leniência diante
de tragédias com mineração
O Globo
Mariana, Brumadinho e Maceió mostram que
passou da hora de ampliar corpo de fiscais da ANM
A ineficácia da fiscalização de barragens de
rejeitos de mineração é a principal causa das tragédias de Mariana, em 2015, e
Brumadinho, em 2019. No período entre os dois desastres, em 2018, 60 mil
moradores de cinco bairros de Maceió (AL)começaram a ser forçados a abandonar
suas casas pelo afundamento do solo, resultado de erros na extração do
sal-gema. Tais tragédias teriam sido evitadas a tempo se houvesse fiscalização
mais eficaz da Agência Nacional de Mineração (ANM).
A ANM é um caso típico de gestão
insatisfatória dos recursos humanos pelo Estado. Enquanto categorias do
funcionalismo usufruem privilégios injustificáveis e em várias repartições há
servidores em excesso, um corpo técnico competente faz enorme falta noutras. “É
inviável a gente fiscalizar o que tem de ser fiscalizado”, disse ao GLOBO o
diretor da Associação dos Servidores da Agência Nacional de Mineração (ASANM),
Ricardo Peçanha. “Por isso fazemos [as inspeções] por amostragem e, mesmo
assim, é menos do que deveríamos, porque não temos gente.”
Peçanha compara o trabalho da ANM ao da
Receita Federal diante das declarações de Imposto de Renda: “As empresas de
mineração fazem um relatório anual, e cruzamos com outros bancos de dados.
Quando identificamos inconsistência, aí, sim, vamos a campo”. Nem sempre, como
se constata, têm chegado a tempo. O método de fiscalização por amostragem,
embora seja o único viável diante das condições, é criticado por depender de
dados pouco confiáveis, fornecidos pelas empresas de consultoria que preenchem
os relatórios.
A ANM conta com um quadro de 664 servidores,
quando, pelo projeto original, deveria ter 2.121. Hoje há apenas 237 fiscais
para o Brasil todo. Minas Gerais, onde se concentra a exploração mineral no
país, tem cerca de 400 barragens de rejeitos, a maioria próxima a cidades.
Apesar do caráter corporativo da pauta da ASANM, fica evidente que a equipe é
insuficiente para realizar um trabalho técnico com a profundidade necessária em
Minas e no resto do país.
Informações divulgadas em 2019 sobre falhas
de fiscalização em Brumadinho e Mariana levaram o Ministério Público a firmar
um acordo com a União e a ANM. O objetivo era melhorar a qualidade das
inspeções de todas as barragens consideradas inseguras e realizar um plano de
reestruturação da fiscalização. Não houve avanços. Quatro anos depois, em 2023,
o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou uma Lista de Alto Risco da
Administração Pública, incluindo a ANM — por insuficiência de materiais de
tecnologia da informação, déficit orçamentário, falta de pessoal e também de
transparência.
Por tudo isso, o quadro de fiscais da agência
precisa ser ampliado. Até para que a falta de pessoal não seja usada como
desculpa para justificar a leniência. E o governo deveria conferir a urgência
necessária à reforma administrativa, capaz de reorganizar o Estado, extinguir
gastos inúteis, levar funcionários públicos aonde são mais necessários e
evitar, assim, novas tragédias.
Ampliar vacinação e adaptar orçamento, os
desafios da Saúde
Valor Econômico
Balanço mostrou a reversão da queda da
imunização das crianças que vinha ocorrendo desde 2016
O aumento da cobertura vacinal infantil foi
comemorado pelo Ministério da Saúde ao apresentar o balanço preliminar de dez
meses do Movimento Nacional pela Vacinação. O Movimento teve um lançamento
emblemático, em fevereiro: a vacinação do presidente Lula pelo vice, Geraldo
Alckmin, que marcou a “virada de chave”, como definiu a ministra da Saúde,
Nísia Trindade. Mas os problemas estão longe de acabar. Entre eles estão a
expansão da dengue, a preocupação com a saúde dos indígenas, a mudança de
regras do orçamento da saúde e a infindável cobiça política pela pasta.
O balanço do Movimento Nacional pela
Vacinação mostrou a reversão da queda da imunização das crianças que vinha
ocorrendo desde 2016 e foi acentuada no governo de Jair Bolsonaro, não só por
conta da covid-19 como pela negligência das autoridades com o tema e pelas
campanhas de desinformação das redes sociais. Segundo dados preliminares do
ministério, de janeiro a outubro houve aumento da cobertura de sete das oito
vacinas recomendadas para as crianças com um ano de idade. Também cresceu a
cobertura da vacina contra a febre amarela, indicada aos nove meses de idade.
A recuperação aconteceu em todo o país. Um
terço dos municípios atingiu 95% de vacinação do público alvo, a meta fixada
pelo governo. Fora a primeira dose da tríplice viral, nenhuma vacina do
Programa Nacional de Imunizações (PNI) ultrapassa os 80% de cobertura. O
Ministério da Saúde também festejou o salto de cerca de 30% da vacinação contra
o HPV, que sempre foi alvo de campanhas negativas nas redes sociais.
Agora, a dengue é outro foco de atenção. O
Brasil já é o país com mais casos de dengue no mundo, alertou a Organização
Mundial da Saúde (OMS), com 2,9 milhões registrados em 2023, mais da metade dos
5 milhões relatados mundialmente. A preocupação aumentou porque a elevação da
temperatura mundial, com a crise climática acentuada pelo fenômeno El Niño,
cria condições para a sobrevivência do mosquito transmissor, o Aedes aegypti,
também vetor da chikungunya e da zika.
O avanço da dengue vem sendo observado há
alguns anos. Mas só neste governo o Ministério da Saúde foi adiante e tornou o
Brasil o primeiro país a incluir a vacina contra a dengue na oferta do sistema
de saúde, a partir de fevereiro.
A partir deste ano também a vacina contra a
covid-19 fará parte do Calendário Nacional de Vacinação, algo inimaginável há
dois anos. O imunizante passará a ser aplicado anualmente em crianças menores
de 5 anos e grupos prioritários, como idosos e imunocomprometidos, que devem
totalizar 60 milhões de pessoas. Uma das preocupações é a vacinação infantil
contra covid-19, que atingiu apenas 12% das crianças até 5 anos.
Uma das primeiras ações do ministério no novo
governo foi enfrentar a emergência no Território Yanomami em conjunto com a
segurança pública e a área ambiental. Desassistidos pelo governo de Bolsonaro e
contaminados por garimpeiros, os yanomamis apresentavam quadros graves de
desnutrição e doenças. Levantamento apresentado em dezembro contabilizou 13 mil
atendimentos de saúde aos indígenas. Somente em maio foi desativado o hospital
de campanha de emergência operado pelas Forças Armadas. O atendimento voltou para
a Casa de Saúde Indígena (Casai) que ainda tem mais de 300 pacientes em
tratamento.
Em outra frente, o ministério terá que se
adaptar à mudança das regras do financiamento. Com o novo arcabouço fiscal e o
fim do teto de gastos, voltaram a valer os pisos mínimos constitucionais de 15%
da receita corrente líquida tanto para a Saúde, e não mais o valor corrigido
pela inflação. Por um lado, o piso mínimo garante um valor estável para o
planejamento a longo prazo e evita os riscos de desvio por prioridades
políticas, como analisa o economista especialista em saúde, André Cezar Médici,
no blog da Conjuntura Econômica (26/12). Um dos desafios ainda é reduzir as
filas de espera para as cirurgias eletivas, que chegaram a 1 milhão. Do outro,
será necessário reavaliar os valores periodicamente para garantir que
acompanhem a variação da inflação do setor e atendam a demandas específicas,
como o envelhecimento da população.
A Saúde foi incluída no Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), que lhe destinará R$ 30,5 bilhões até 2026.
São alvos a Atenção Primária, Atenção Especializada, Preparação para
Emergências em Saúde, Complexo Industrial da Saúde e Telessaúde. O Complexo
Industrial da Saúde receberá R$ 8,9 bilhões para produzir 70% dos equipamentos,
materiais médicos e medicações necessários - uma ambição a ser testada dado que
nem sempre há escala que justifique a produção de todos os itens.
Depois de ter superado as investidas do Centrão pelo seu cargo, a ministra Nísia Trindade segue com apoio do presidente Lula. Nada garante, porém, que os conservadores não voltem a atacar, atraídos pelo orçamento reforçado e incomodados pela posição da ministra a favor das vacinas.
O nó do investimento
Folha de S. Paulo
Crescimento duradouro depende de confiança
para ampliar capacidade de produção
Superado o impacto econômico da pandemia, o
Brasil teve no último biênio um crescimento acima das expectativas e do padrão
desalentador que se mantinha desde a década passada. Entretanto um indicador
impede que se vislumbre um ciclo de avanço mais duradouro —a taxa de
investimento.
Trocando em miúdos, trata-se do dispêndio
privado e público em infraestrutura e aquisições de máquinas e demais bens
destinados a ampliar a capacidade de produção. Outros gastos do governo e o
consumo das famílias podem dar algum impulso ao PIB, mas é o investimento que
garante maior oferta de mercadorias e serviços.
Nesse quesito, o país já conta dez anos
perdidos, como
mostram os dados recém-reunidos na Carta de Conjuntura do Ipea (Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada, vinculado à administração federal) e reportados
pela Folha.
Na medição mais recente do IBGE, relativa ao
terceiro trimestre de 2023, investia-se aqui o equivalente a vexatórios 16,6%
do Produto Interno Bruto. No período correspondente de 2013, a taxa se
encontrava no maior patamar deste século, de 21,5%.
De lá para cá, a cifra despencou na esteira
do desastre econômico produzido pelo governo Dilma Rousseff (PT), atingindo
14,9% em 2017. Após um período de modesta recuperação, o alento pós-crise
sanitária elevou o percentual a 18,3% em 2021 e 2022. No ano passado, porém,
houve novo retrocesso.
Mesmo nos momentos menos ruins, o
investimento nacional mal tem sido capaz de compensar a depreciação da
infraestrutura e das máquinas já instaladas. Nossa taxa está bem abaixo da
estimada pelo FMI no conjunto dos países pobres e emergentes, de 32%, e até no
mundo rico, de 22,4%.
Entre os motivos da piora recente, o mais
palpável é o aumento de juros promovido pelo Banco Central para o controle da
inflação, que vem sendo gradualmente revertido nos últimos meses. É plausível
que incertezas quanto à troca de governo e ao cenário internacional também
tenham pesado na conta.
O mau desempenho, no entanto, é de longa data
—e é forçoso associá-lo a inconsistências da política econômica,
particularmente no controle da dívida pública.
É ilusório imaginar que um programa de obras
governamentais possa dar impulso relevante à economia. Mesmo no auge da bonança
das gestões petistas, em 2010, o investimento do Tesouro e de suas estatais não
passou de 2,7% do PIB. Hoje, as restrições orçamentárias são muito mais
severas.
Concessões e
parcerias com a iniciativa privada, sob marcos regulatórios
adequados, são um caminho muito mais promissor. Mas é fundamental, sobretudo,
buscar um ambiente de estabilidade que dê confiança a famílias e empresas.
Canabidiol em expansão
Folha de S. Paulo
Avanço paulista no uso do CBD é tímido; Congresso deve regular acesso nacional
Com o avanço das pesquisas sobre o uso
medicinal de compostos derivados da maconha, diversos países estão liberando
tratamento de doenças com esses remédios.
No Brasil, o projeto de lei 399 de 2015
viabiliza a comercialização de fármacos com Cannabis na formulação, enquanto o
PL 89 de 2023 institui uma política nacional de fornecimento desses
medicamentos.
Enquanto os projetos não são votados, estados
e municípios avançam na legislação. Segundo
levantamento desta Folha, até julho do ano passado 24 unidades
da Federação ou já haviam aprovado leis que garantiam acesso a produtos à base
de maconha pelo SUS ou estavam discutindo essa proposta.
São Paulo está entre elas. Em janeiro de
2023, sancionou-se diploma que permite distribuição de Cannabis medicinal pelo
sistema de saúde. A regulamentação, concluída em dezembro, prevê o uso do
canabidiol (CBD) em só três casos: esclerose tuberosa e síndromes de Dravet e
Lennox-Gastout.
Trata-se de uma doença genética que causa
tumores e dois tipos raros de epilepsia. Sem
possibilidade de tratamento de outras enfermidades, o avanço é tímido.
Segundo nota da Fundação Oswaldo Cruz de
2023, as pesquisas com maior nível de evidências são conclusivas em relação à
segurança e à eficácia dos canabinoides para outros tipos de epilepsia, dor
crônica, espasmos da esclerose múltipla, náusea e perda de apetite pela
quimioterapia, doença de Parkinson e distúrbios do sono.
O sistema de saúde do Reino Unido, um dos
melhores do mundo, também indica canabidiol para epilepsia, dor crônica,
espasmos e náuseas. Ademais, relatório da OMS de 2018 afirma que o CBD é seguro
e não está associado a potencial viciante nem a efeitos negativos para a saúde
pública.
Já há cidades brasileiras com indicações mais
amplas. Em Volta Redonda (RJ), remédios são distribuídos para dor, autismo,
epilepsia, doenças de Parkinson e Alzheimer.
É importante que estados e municípios
garantam acesso a produtos com CBD ou THC para os tratamentos que já possuem
robusta evidência científica —e eles não são tão restritos como os que constam
da legislação paulista.
Mas essa fragmentação também torna o sistema caótico. Por isso, o Congresso Nacional deveria uniformizar o uso do canabidiol pelo SUS em nível nacional.
O golpismo explícito e o implícito
O Estado de S. Paulo
Poucos apoiam os atos do 8 de Janeiro, mas a
compreensão autoritária do poder é bem difundida, como mostra malicioso pedido
de ‘volta à normalidade democrática’ feito pela oposição
Poucos apoiam os atos do 8 de Janeiro, mas a
compreensão autoritária do poder é bem difundida.
Repetida em vários círculos sociais e muito
útil politicamente para alguns setores, é falsa a ideia segundo a qual todos os
apoiadores de Jair Bolsonaro são golpistas empedernidos. Pesquisa recente da
Genial/Quaest mostrou, por exemplo, que 85% dos eleitores de Bolsonaro no
segundo turno das eleições de 2022 desaprovam os atos praticados no infame dia
8 de janeiro do ano passado. O golpismo explícito, portanto, não tem muitos
apoiadores, o que é uma notícia alvissareira.
Não falta, contudo, quem considere que os
golpistas que participaram do levante do 8 de Janeiro não eram delinquentes,
mas patriotas que agora são vítimas de abuso do Judiciário. A distorção cínica
do que os brasileiros todos puderam ver com seus próprios olhos ao vivo pela TV
– isto é, a destruição das sedes dos Três Poderes, em flagrante ataque às
instituições democráticas, na expectativa de que isso gerasse reação das Forças
Armadas e a consequente instalação de um regime de exceção – se presta a um único
propósito: causar confusão, que é onde viceja o autoritarismo.
Isso ficou claro no malicioso manifesto
assinado por 30 senadores de oposição a propósito do evento oficial que lembrou
ontem em Brasília o 8 de Janeiro. Das 80 e tantas linhas do texto, apenas 3
fazem referência aos “atos de violência e depredação dos prédios públicos”,
frase em que o sujeito da ação está oculto por elipse. Daí para diante, a
título de enumerar as ameaças à democracia, os sujeitos são todos nomeados:
primeiro, o governo de Lula da Silva, que teria cometido “flagrante omissão” no
dia 8 de janeiro – senha para insinuar que os petistas tiveram alguma
participação nos atos golpistas; depois, o Supremo Tribunal Federal, que
estaria violando direitos constitucionais no afã de condenar os golpistas.
O tal manifesto, em dois trechos, demanda que
o País volte à “normalidade democrática” e encerra conclamando os brasileiros a
viver “num ambiente de tolerância”, evitando “a perseguição a qualquer custo
aos que pensam diferente”.
Chega a ser ofensivo. Esses senadores nunca
pediram “normalidade democrática” quando Bolsonaro afrontou sistematicamente a
democracia e suas instituições inclusive perante a comunidade internacional,
quando atacou a imprensa de maneira grosseira e sistemática e quando fez
campanha de descrédito do sistema eleitoral, ameaçando ignorar o resultado das
urnas caso lhe fosse desfavorável. Tampouco não se recorda de alguma
manifestação desses senadores desaprovando as raivosas declarações e atitudes
de Bolsonaro contra opositores, absolutamente contrárias ao tal “ambiente de
tolerância” que agora descaradamente dizem defender.
Ora, o País vive hoje em plena normalidade
democrática. Há eleições livres. Há imprensa livre. Há funcionamento livre e
autônomo de cada um dos Poderes. Certamente, há tensões, mas elas são próprias
de todo regime democrático. Certamente, há decisões equivocadas da Corte
constitucional – que merecem duras críticas –, mas isso é próprio de um regime
democrático.
O “manifesto da oposição” ignora um fato
básico da vida democrática. Estado Democrático de Direito não significa
perfeição, tampouco sintonia com tudo o que cada um acredita e apoia. As
divergências existem – e isso não é um defeito do regime democrático. Tratase,
antes, de cristalina manifestação de que a sociedade é, de fato, livre, não
subordinada à atuação do Estado.
O 8 de Janeiro não aconteceu à toa. Foi
alimentado pelo discurso bolsonarista segundo o qual a eleição de Lula foi
resultado de uma grande conspiração antidemocrática que envolveu todos os
Poderes, sobretudo o Judiciário, para instalar uma ditadura de esquerda contra
os “patriotas”. Logo, para essa malta, “voltar à normalidade democrática”
significa instalar um regime em que prevalece não a lei, mas a vontade dos
bolsonaristas – recorde-se que Bolsonaro, na condição de presidente, certa vez
declarou que “as leis existem, no meu entender, para proteger as maiorias” e
que “as minorias têm que se adequar”. Como se viu no manifesto dos senadores de
oposição, esse espírito golpista continua latente.
O indecoroso fundão eleitoral
O Estado de S. Paulo
Aprovação de R$ 4,9 bi para fundão eleitoral e reconhecimento de erros da Lava Jato não podem ser motivo para ensejar discussões sobre o retorno das nocivas doações de empresas
O Congresso Nacional aprovou uma verba de R$
4,9 bilhões para bancar as despesas das campanhas para as eleições municipais
deste ano. O valor ficou muito maior que o sugerido pelo governo no Projeto de
Lei Orçamentária Anual (Ploa), de R$ 939 milhões, mas não se viu movimentação
da base aliada para barrar esse aumento descabido, pelo contrário.
Em defesa do fundo, lideranças do Legislativo
têm um discurso pronto. Seria, segundo a presidente do PT, deputada Gleisi
Hoffmann (PR), o “custo da democracia” e uma forma de garantir a renovação da
política. A maioria dos parlamentares não teve qualquer pudor em destinar tanto
dinheiro para esse fim, à exceção do presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que tentou, sem
sucesso, chamar os parlamentares à razão.
Para Pacheco, seria plenamente possível
financiar a campanha municipal tomando como base o valor reservado em 2020,
bastando, para isso, atualizá-lo pela inflação acumulada nos últimos anos. A
proposta foi fragorosamente derrotada na Câmara, por 355 votos a 101, o que
dispensou sua apreciação por parte dos senadores.
Em defesa da redução do tamanho do fundo para
níveis mais civilizados, Pacheco chamou a atenção para uma questão bastante
relevante. Para o presidente do Senado, o valor aprovado, além de um erro
grave, precipitaria discussões sobre o retorno do financiamento privado de
campanhas. “E precipita inclusive uma reflexão sobre as eleições no País, o
custo delas para o Brasil em todos os sentidos”, afirmou.
A preocupação do senador tem todo o sentido,
uma vez que a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade das
contribuições de empresas se deu em 2015, no contexto das investigações da Lava
Jato. Desde então, o reconhecimento dos erros da operação já gerou a anulação
de delações, provas e condenações.
Mais recentemente, o ministro Dias Toffoli
suspendeu uma multa bilionária da J&F, aplicada em razão de um acordo de
leniência celebrado com o Ministério Público Federal (MPF). Não seria nenhuma
surpresa, portanto, que o valor indecoroso que o fundão atingiu e o
desequilíbrio estrutural do Orçamento encorajassem discussões sobre a retomada
das doações empresariais.
Seria um enorme e indesejável retrocesso, que
a sociedade não pode aceitar. Como já defendemos neste espaço, as doações de
empresas promovem a captura do processo político pelo poder econômico. São, sem
dúvida alguma, nocivas à democracia, tanto que o principal argumento do STF
para derrubá-las, em 2015, foi o de que elas equiparavam empresas a cidadãos,
ferindo princípios constitucionais.
Em 2017, o Legislativo achou por bem
disponibilizar recursos públicos para as campanhas eleitorais e aprovou a
criação do Fundo Especial de Financiamento
de Campanha (FEFC). No primeiro ano em que
vigorou, em 2018, o fundão recebeu R$ 1,7 bilhão; em 2020, foram R$ 2,03
bilhões; e em 2022, foram R$ 4,9 bilhões.
Como o Congresso manteve esse mesmo valor
para o fundo eleitoral neste ano, os parlamentares acreditam terem sido
bastante comedidos na definição de seu orçamento. A diferença, nada sutil, é
que a campanha municipal, ainda que envolva mais de 5,5 mil municípios, tende a
ser bem mais barata que uma disputa de alcance nacional para a escolha de
presidente, governadores, senadores e deputados federais e estaduais.
O avanço da internet e de tecnologias para
impulsionar propagandas tornou as campanhas muito mais baratas. Não é isso,
portanto, que justifica o tamanho que atingiu o fundão, mas o apetite
insaciável dos políticos por recursos que facilitem a escolha de aliados em
suas bases.
A solução para dar fim a essa imoralidade
financiada com dinheiro público não é, no entanto, reeditar as doações
empresariais. Os partidos, enquanto pessoas jurídicas de direito privado,
precisam lutar para convencer os cidadãos a contribuir para o sustento de suas
atividades, entre as quais as campanhas eleitorais. Isso requer uma corajosa
autocrítica sobre o papel que exercem na sociedade.
Populismo penitenciário
O Estado de S. Paulo
Acabar com a saída temporária de presos não
tornará a sociedade mais segura
A sociedade está cansada de conviver com a
violência. Década após década de absoluta incompetência do Estado para cumprir
sua missão precípua de combater a criminalidade e garantir a segurança dos
cidadãos, sobretudo nas grandes cidades do País, transformaram o medo num
sentimento praticamente inerente à identidade nacional.
Esse misto de revolta e desalento diante da
inoperância das autoridades ajuda a explicar por que não são poucos os cidadãos
que se sentem pessoalmente aviltados com algumas medidas penitenciárias que não
só são constitucionais, como se coadunam com a principal função da pena numa
sociedade civilizada: a ressocialização.
É o caso, por exemplo, das saídas temporárias
do sistema prisional, conhecidas como “saidões”, quando certos grupos de presos
têm autorização judicial para permanecer fora do cárcere durante determinado
período, em geral feriados. A imensa maioria dos beneficiados pelos “saidões”
volta ao cumprimento da pena no prazo fixado pela Justiça, mas esse bom
resultado fica obnubilado pela ação de uma minoria que aproveita a concessão
estatal para fugir e, em alguns casos, para cometer crimes violentos.
Foi o que ocorreu em Belo Horizonte (MG). No
domingo passado, o policial militar Roger Dias da Cunha, de 29 anos, foi
assassinado com tiros à queima-roupa disparados por um preso que havia sido
temporariamente liberado para as festas de fim de ano, mas não retornou ao
presídio de origem.
Como era de imaginar, não faltaram políticos
para explorar a justa indignação social contra um crime bárbaro praticado
contra um agente do Estado, alguns se lançando ao populismo penitenciário ao
prometer acabar com as saídas temporárias, sobretudo nas redes sociais, um
espaço que, como se sabe, não serve à boa reflexão, e sim à catarse.
À luz da razão, acabar com os “saidões” não
tornará a sociedade mais segura. O que faltou em Belo Horizonte e em outras
cidades – como o Rio, onde até líderes de perigosas organizações criminosas
foram beneficiados pela saída temporária de fim de ano – foi o devido
escrutínio pelas autoridades penitenciárias de quem poderia ou não ser
favorecido pela medida.
Antes de pugnar pelo fim dos “saidões”, de
resto uma medida popularesca que só teria o condão de aplacar brevemente a
revolta dos cidadãos, lideranças políticas que se pretendem responsáveis devem
cobrar uma séria investigação sobre os eventuais desvios no cumprimento das
regras do instituto da saída temporária e propor melhorias nos critérios de
seleção dos beneficiários.
Ao fim e ao cabo, acabar com os “saidões”
significaria atestar a falência do Estado em ressocializar os apenados que
estão sob sua custódia, pois, se nenhum deles pode ser liberado nem sequer por
alguns poucos dias, em que condições, afinal, haverão de ser reintegrados ao
convívio social após o cumprimento de suas penas? Ademais, medida drástica
assim também serviria para punir, e não incentivar, os presos de bom
comportamento.
Em suma, política pública séria deriva de técnica, não de algaravia.
Democracia sempre
Correio Braziliense
A tentativa de golpe contra os Três Poderes,
por meio da depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF, foi
lembrada ontem, Dia da Democracia Inabalada, em cerimônias no Legislativo e no
Judiciário
Em 8 de janeiro de 2023, o país assistiu ao
ataque violento contra o Estado Democrático de Direito, com a depredação do
Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Ontem, o Dia Democracia Inabalada (nome dado ao episódio) foi lembrado em
cerimônias no STF e no Congresso. Tanto no Judiciário quanto no Executivo, o
tom dos discursos exaltou a importância da democracia e da harmonia entre Três
Poderes, e a pacificação da sociedade. Os chefes de cada um dos Poderes
deixaram claro que o fim da polarização não implica impunidade aos agressores.
Quem planejou e quem financiou a tentativa de
ressuscitar a ditadura, por meio da abolição violenta do regime democrático de
governo? Um ano depois, as indagações permanecem sem resposta. Na democracia, a
sociedade brasileira reclama e tem o direito de conhecer os ideólogos e os
financiadores que, efetivamente, estavam por trás da tentativa de golpe de
Estado.
A recuperação dos danos provocados custou aos
cofres públicos em torno de R$ 40 milhões. Um valor expressivo que saiu dos
bolsos de trabalhadores e trabalhadoras. Uma injustiça. A conta deveria ser
paga pelos agressores dos Poderes da República, pelos que patrocinaram e
planejaram a manifestação mais execrável da história republicana. As perdas
extrapolam aspectos materiais. Provocam também um impacto emocional em uma
população que saiu há pouco tempo de uma ditadura e conhece os horrores de um
sistema antidemocrático.
Até agora, o Ministério Público denunciou
1.413 pessoas, sendo 1.156 como instigadores dos atos de vandalismo, oito
agentes públicos, dois financiadores, 248 executores e 30 condenados, em média,
a 17 anos de privação de liberdade. O ministro do Supremo do Tribunal Federal
Alexandre de Moraes, à frente dos inquéritos, sinalizou que os julgamentos dos
acusados terão um ritmo maior no retorno dos trabalhos do Judiciário.
A Polícia Federal, por sua vez, tem
demonstrado enorme seriedade nas investigações, na formulação das denúncias e
na indicação dos criminosos. Atributos que se fazem mais do que necessários
ante a polarização que divide a sociedade brasileira, entre democratas e
defensores do regime de exceção. Errar seria dar munição aos que se opõem ao
Estado Democrático de Direito, ao bem-estar coletivo e às administrações mais
humanistas e que buscam eliminar as desigualdades sociais e econômicas,
consolidadoras das iniquidades.
Um ano depois, o triste episódio apontou para a necessidade de eterna vigilância em defesa da democracia, um regime conquistado por meio do sacrifício de muitas vidas e de perdas irreparáveis. O estado de alerta permanente torna-se imprescindível, uma vez que não faltam adeptos do despotismo, modelo antagônico às liberdades individuais e, sobretudo, desprovido de respeito à vida. O passado não pode ser ressuscitado, mas lembrado para impedir retrocessos nefastos, que dividem a população, causam sofrimento e dores, e criam obstáculos ao crescimento da nação. Democracia sempre.
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