terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Vera Magalhães – Risco de politizar ato é que haverá o dia seguinte

O Globo

Atos como o desta segunda-feira, para marcar efemérides históricas, sejam elas virtuosas ou infames, como o 8 de Janeiro, são benéficos para a Histórica e educativos para a sociedade. Assim, feriados em datas de grandes tragédias ou guerras, ou museus como o do Holocausto, o de Hiroshima ou de diferentes ditaduras mundo afora têm o caráter de evitar que esses eventos sejam esquecidos, minimizados ou repetidos.

O grande problema é quando o caráter cívico e institucional descamba para a partidarização, porque isso tisna o objetivo e dá munição aos que tentam desvirtuar os fatos. A solenidade desta segunda-feira teve o mérito de se inscrever na primeira modalidade, mas teve momentos em que incorreu na armadilha da politização.

Foi Lula que, no último dos discursos, forneceu à oposição bolsonarista os recortes de que precisava para dizer que o ato era uma “celebração” “petista" à “baderna" de um ano atrás, que, por sua vez, não teria nada a ver com Jair Bolsonaro. Ou seja: uma série de falsificações históricas que se valem dos detalhes para tentar confundir a opinião pública.

Todos os oradores que precederam o presidente tiveram a inteligência e o cuidado de não citar Bolsonaro. Pesquisas nos dias anteriores, como a da Quaest, ou divulgadas ontem mesmo, como a do instituto Atlas, mostram que o repúdio ao 8 de Janeiro é generalizado na sociedade, mas a imputação de responsabilidades é algo ainda em disputa. E as narrativas se prestam justamente a atuar nesse terreno, que é o mesmo da polarização.

Nesse sentido, Lula joga contra o patrimônio dando pano para manga para aqueles que, cinicamente, tentam imputar às vítimas a responsabilidade por uma tentativa de golpe — sim, houve uma clara deliberação de se buscar uma ruptura institucional, e o outro mérito de efemérides é revisitar imagens, documentos e processos.

Ele ajuda, assim, não a romper, mas a cristalizar a polarização, para usar o termo que vem sendo usado na literatura internacional e, aqui, está bem explicado na obra recente de Felipe Nunes e Thomas Traumann, “Biografia do Abismo”.

Esse risco de que a coisa descambasse para a partidarização, presente desde a concepção do ato e agravado pelo fato de o Planalto ter concentrado a sua organização, ajuda a explicar por que Arthur Lira decidiu de última hora não ir à cerimônia desta segunda. E ainda que pareça que Lula não ligou ou até gostou da ausência, ele deveria, de novo, dar alguns passos atrás e pensar que a democracia pode até ter escapado inabalada, mas há um dia seguinte e ele pressupõe que haja governabilidade na Câmara.

Deveria acender um sinal amarelo no Planalto o fato de que não foi só o deputado alagoano a faltar ao ato, mas toda a cúpula da Câmara. Com a necessidade de regulamentação da reforma tributária, mais vetos indigestos na pauta e a contrariedade (comum ao Senado, aliás) com a MP da reoneração, qualquer ruído com o Legislativo agora é pedir um segundo ano de mandato mais complicado que o primeiro.

Passada a necessária rememoração da infâmia de 2023, o governo tem de ser estratégico a ponto de deixar Bolsonaro e os bolsonaristas com a Justiça e a Polícia Federal e cuidar de remontar sua base para lá de esgarçada no Congresso. Isso vai requerer descer do palanque, engolir Lira e olhar para a frente.

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