O Globo
O sentimento de impotência substitui o idealismo, e um realismo conformista ocupa o lugar que era do romantismo
‘Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu
escuto’ — diz a bonita letra musical. Podia ser frase de psicanalista à espera
de um sinal do inconsciente, em meio ao jorro de falas do analisando. Mas
também um canto retraído e perplexo do sujeito atual, diante dos absurdos que o
cercam. Afinal, dizer o quê? Como se a palavra já tivesse morrido, tamanha sua
inocuidade. E o escritor, enquanto nada articula, escuta sua alma discutir a
função e a utilidade da escrita. O dilema paralisante pode ser injusto com os que
precisam manter o espírito aceso por ideias que os ajudem a encontrar sentido
para suas perplexidades.
Será o escritor capaz de atender à expectativa, emergir da banalidade e articular ideias instigantes, ressuscitando a palavra — como na arte que se afasta ou distorce a realidade para, em seguida, desvelar suas nuances? Pois bem. Uma conspiração mundial estaria em curso — anônima, inconsciente, coletiva. Mas, ao mesmo tempo, como se houvesse um desígnio subterrâneo, um projeto intencional, tão efetivo que se expressa em sua universalidade automática. Com a cumplicidade das vítimas. A estratégia é deixar todos os indivíduos desatentos. É uma conspiração da desatenção, de manter os seres entorpecidos — mesmo aqueles que, na superfície, parecem resistir e criticar.
Sabemos muito bem dos meios usados para esse
fim, todos os desfrutamos diariamente — aliás, acertaram em cheio, nos
oferecendo preencher a incurável falta que nos habita. Não temos consciência de
que aspectos a trama nos impede de enxergar e pensar, e esse é um dos êxitos de
sua ação. Ela se alia a nosso dispositivo inato de negação da realidade
frustrante. As questões podem ser as mais íntimas do ser, familiares, ou também
as mais próximas da sociedade, da política e do planeta. E tais questões se
agravam à medida que aumenta a desatenção individual e coletiva. A grande
esperteza da conspiração é nos convencer, enquanto isso, de que seus meios
foram feitos para aumentar o entretenimento, o conhecimento, a democracia e a
comunicação.
Enquanto acreditamos que tudo se resume a
essa dimensão positiva, a boiada da pulsão inata destrutiva vai passando e
carrega consigo a deterioração da civilização que se infiltra de forma
sorrateira. Ela expande a barbárie das guerras, agrava os riscos climáticos,
produz soluções políticas com líderes extremos, em meio a conflitos sociais e
disparidade de renda cada vez maior. Entre os mais lúcidos, cresce de forma
assustadora o sentimento de que não é possível fazer nada — muito menos
escrever alguma coisa. A máquina do mundo roda guiada por mãos invisíveis, com
engrenagens anônimas, desígnios sinistros autônomos que já escaparam do alcance
voluntário, mesmo de seus criadores e das esferas de maior poder.
O sentimento de impotência substitui o
idealismo, e um realismo conformista e utilitário ocupa o lugar que outrora era
do romantismo. Salve-se quem puder nesta feira moderna. Aqui, o convite é
sensual, e a distância já morreu — numa livre citação da profética música do
saudoso Som Imaginário. E a curiosa contradição é que, numa sociedade cada vez
mais dispersa e desatenta, que tudo esquece, os indivíduos ainda lutem, na
esfera mundana — às vezes de forma desesperada —, por conquistar atenção e
lembrança, mesmo que seja por aqueles 15 segundos fugidios de fama. Mas a
cultura da desatenção, da ausência de foco e do esquecimento de tantas questões
cruciais de uma sociedade provoca nos sujeitos desnorteados o sentimento de
desamparo e orfandade. A História já mostrou qual é o risco político desse
virtual cenário.
*Paulo Sternick é psicanalista
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