Valor Econômico
Cicatrizes da pandemia só se aprofundaram
para o grupo de economias em desenvolvimento, alerta agência da ONU
As economias desenvolvidas se preparam para
uma “aterrissagem suave” (soft landing) em 2024, mas países em desenvolvimento
não estão fora de perigo ainda. A constatação é do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (Pnud), enquanto os ministros de finanças e de
presidentes de bancos centrais do G20 terminam hoje em São Paulo reunião que
examina a situação global.
A publicação dessa agência da ONU focada em desenvolvimento internacional confirma a importância da agenda do Brasil para sua presidência do G20, ancorada na relação entre desigualdade e políticas econômicas, cooperação para desenvolvimento sustentável, modelos de tributação progressiva e aliviar realmente a dívida de países em desenvolvimento.
No geral, a avaliação de organizações
internacionais neste começo de ano tem sido de que a economia global
provavelmente evitará uma nova recessão, à medida que os bancos centrais
controlam a inflação, que agora pode ficar em 5,8% neste ano, abaixo do pico de
8,7% em 2022.
A expectativa é que países desenvolvidos,
principalmente os EUA, comecem a cortar as taxas de juros até a metade do ano,
o que se reflete na flexibilização das condições de crédito internacional nos
últimos meses. As estimativas para o crescimento da economia global variam
entre 2,4% e 3,1% neste ano. Para o médio prazo, a expansão mundial continuará
baixa ou moderada, em meio a persistentes riscos, incluindo proliferação e
intensificação de conflitos, fragmentação comercial e geopolítica, perturbações
no mercado de commodities, desaceleração econômica na China e alto
endividamento e estresse financeiro.
O Pnud constata que, de seu lado, os países
desenvolvidos, como grupo, estão a caminho de “apagar” completamente as
cicatrizes deixadas pela covid-19 e já quase alcançaram sua trajetória de
crescimento pré-pandemia. Ao mesmo tempo, as cicatrizes só se aprofundaram para
o grupo de economias em desenvolvimento. Lembra alerta do Banco Mundial sobre o
aprofundamento da divergência econômica entre as nações em desenvolvimento com
fundamentos relativamente sólidos e os países com fortes vulnerabilidades em meio
a dívidas e custos de financiamento elevados.
Ou seja, enquanto as economias desenvolvidas
e emergentes fortes podem ter conseguido uma aterrissagem suave, muitos países
em desenvolvimento parecem “estar atolados na lama”.
De 59 economias em desenvolvimento
examinadas, 32 tem notas de crédito classificadas abaixo do grau de “não
investimento”. Pelo menos 36 estão classificadas como em risco ou em alto risco
de endividamento.
Particularmente preocupante é que o serviço
da dívida pública externa do grupo atingirá um pico de US$ 175 bilhões neste
ano - aumento de mais de 50% em relação a 2022 -, dos quais US$ 126 bilhões são
pagamentos de principal e 54% do total devido aos credores oficiais. Entre 22
dos países mais pobres, o pagamento do serviço da dívida representará mais de
20% de sua receita.
A queda das taxas de juros nos últimos meses
ajudou a restabelecer o acesso ao mercado para alguns países em desenvolvimento
que estavam excluídos dos mercados desde a covid. Mas um número significativo
de países ainda não tem acesso e, para os mais vulneráveis que conseguem
refinanciar, a nova dívida tem preço alto. Exemplifica que o rendimento do
índice de títulos soberanos em dólares da África pela S&P é de cerca de
10%, ainda mais de quatro pontos percentuais acima que antes da pandemia.
Sem surpresa, o serviço da dívida continua
assim a travar despesas com desenvolvimento. O Pnud estima que países de baixa
renda gastam 2,3 vezes mais em média com o pagamento de juros do que com
assistência social para sua população, 1,4 vez mais que com gastos domésticos
com saúde ou 60% do que destinam para educação. Também não há recursos para
mitigação de mudanças climáticas. Na última década, os pagamentos de juros
consumiram uma parcela cada vez maior da receita do governo. No total, 48
países abrigam 3,3 bilhões de pessoas cujas vidas são diretamente afetadas pelo
subinvestimento em educação ou saúde por causa dos altos pagamentos de juros,
pelos cálculos da agência da ONU.
Muitos governos arrecadam uma pequena parcela
do PIB como receita e, além de o nível ser muito baixo, ele também caiu na
última década, diz o Pnud. Países em desenvolvimento de baixa renda arrecadaram
apenas 14,9% do PIB em receita governamental em 2023, comparado a 15,9% dez
anos antes. No mesmo período, a dívida pública aumentou 17,4%.
Mesmo que muitos riscos na economia global
não se concretizem, várias economias em desenvolvimento continuarão presas ao
ciclo negativo de dívida-desenvolvimento que as impedem de realizar novos
investimentos para o crescimento e o bem-estar. Isso num cenário em que a
desigualdade diminuiu entre os países, mas aumentou dentro deles, com efeitos
explosivos.
O Pnud constata que em 2023 houve um aumento
notável nos protestos em todo o mundo, com novas manifestações em 83 países. A
confiança continua a diminuir nas instituições públicas em todo o mundo. A
confiança nos governos é especialmente frágil. Há ambiente de deterioração da
democracia em todo o mundo, que está minando os contratos sociais entre os
governos e a população. Mais de 70 eleições em 2024 colocarão à prova o
engajamento político e a confiança nos sistemas democráticos.
É nesse cenário que a presidência brasileira
do G20 busca um mínimo de engajamento coletivo concreto, apesar do enorme racha
geopolítico.
*Assis Moreira é correspondente em Genebra
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