sábado, 3 de fevereiro de 2024

Eduardo Affonso - As aparências não enganam

O Globo

Desmantelamento dos mecanismos de transparência e ‘compliance’ começou no governo Bolsonaro e ganhou fôlego sob Lula 3

Causou espanto ao senador Flávio Dino, iminente ministro do STF, o rebaixamento do Brasil no Índice de Percepção da Corrupção (IPC), elaborado pela Transparência Internacional. Depois de qualificar o relatório como “atípico e anômalo”, com “afirmações exóticas”, Dino incorporou o estilo da saudosa mulher sapiens, hoje presidenta do banco do Brics, Dilma Rousseff:

— O que mudou é que nós pusemos fim à política de espetacularização do combate à corrupção, que é uma forma de corrupção. Quem usa corrupção como forma de combate à corrupção, como bandeira política, é tão corrupto quanto o corrupto.

(Só com essa declaração, o Brasil deve ter galgado 10 postos no Índice de Corrupção da Diversidade Vocabular.)

Dino talvez tenha tentado dizer que lutar contra a corrupção corrompe — uma indireta para seu homólogo, o ex-juiz, ex-ministro da Justiça e temporariamente senador Sergio Moro. Ou seja: combatamos o crime organizado, mas com moderação. Muita moderação.

Seu futuro colega, o ministro Gilmar Mendes foi mais ponderado:

— Um índice baseado em percepções precisa ser visto com cautela. A questão exige exame mais aprofundado, a fim de evitar conclusões precipitadas.

Quem se precipitou — ladeira abaixo — foi o Brasil, cuja cotação no mercado da honestidade ainda não chegou às profundezas (continua acima de países como Paraguai, Rússia, Irã, Sudão, Haiti, Coreia do Norte, Nicarágua, Venezuela). Mas tem de melhorar para atingir o mesmo patamar de modelos de governança como CubaCazaquistãoAlbânia, Belarus, Burkina Faso e Etiópia.

O desmantelamento dos mecanismos de transparência e compliance começou no governo Bolsonaro e ganhou fôlego sob Lula 3. Coincidentemente (ou não), o que afeta a percepção de que uma das nossas mais caras tradições — a impunidade — voltou com tudo é a postura do Supremo Tribunal Federal (com destaque para os juízes indicados por Lula). Foi Ricardo Lewandowski quem, monocraticamente, suspendeu as restrições à indicação de políticos para assumir cargos de direção em empresas públicas — abrindo a porteira para o aparelhamento das estatais. Foi Dias Toffoli quem sustou os pagamentos de acordos de leniência firmados com a J&F (R$ 10,3 bi) e a Odebrecht (R$ 3,8 bi) — isso enquanto o governo, para aumentar a arrecadação, taxa as brusinha da Shein. E a nomeação de Cristiano Zanin sugere a intenção de seguir deixando passar a boiada.

Nesse ritmo, não será surpresa se — depois da anistia ampla, geral e irrestrita aos corruptos — o contribuinte se vir obrigado a arcar com a indenização, por danos morais e materiais, às empresas envolvidas nos escândalos investigados no âmbito da finada Operação Lava-Jato. Mas só os brasileiros — dificilmente Estados Unidos, MéxicoPeruColômbia e a penca de outros países aonde chegaram os tentáculos da nossa macrocorrupção farão essa desfeita a seus cidadãos.

Sendo os eminentes ministros do STF guardiães dos preceitos constitucionais, convém lembrar que não apenas os golpes de Estado ameaçam a democracia. A corrupção a corrói por dentro, silente e insidiosa. Sem a espetacularização dos vidros quebrados, telas rasgadas e relógios partidos.


 

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Escreveu ''vir'' e não ''ver'',eu acho estranho,mas é o correto.