O Globo
Vamos nos transformando na caricatura que o
adversário faz de nós
É muito comum, nos meios progressistas,
escutar que a postura verdadeiramente democrática consiste em estabelecer um
amplo diálogo com todas as correntes de opinião, da direita à esquerda, desde
que a conversa aconteça dentro do marco do respeito aos direitos humanos. Em
seguida, normalmente se esclarece que o conservadorismo está fora desse marco.
(Estou usando o termo não personalista “conservadorismo” para me referir ao que
normalmente chamamos de “bolsonarismo”.) Mas será mesmo que os conservadores não
respeitam os direitos humanos?
Por trás desse pressuposto amplamente difundido, há uma redução do todo à pior parte. O desacordo — e mesmo o desgosto — de progressistas pelos conservadores faz com que procurem seus piores elementos e os tratem como se fossem casos típicos, casos exemplares. Dessa maneira, distorcem e caricaturam o conservadorismo, tratando-o como meio essencialmente machista, obscurantista, antidemocrático e violento. A realidade, porém, é mais complicada.
Os conservadores valorizam a família, querem
uma abordagem mais dura contra a criminalidade e são desconfiados de mudanças
muito aceleradas nos costumes. Porém, como mostram as pesquisas, a grande
maioria é contra a violência doméstica, é contra a perseguição e a
discriminação de homossexuais, defende o respeito às escolhas das mulheres e a
igualdade salarial entre os sexos.
O reducionismo e a distorção progressista
destacam e amplificam no conservadorismo apenas o ridículo, o grotesco e o
caricato, seja para atacar o adversário, seja para reafirmar o sentimento de
pertencer ao lado “certo”, o lado “anti-eles”. Na imaginação progressista, o
comportamento conservador típico não é aquele das igrejas que combatem a
violência doméstica, a discriminação e promovem o respeito entre marido e
mulher, mas o dos pequenos nichos de coaches de conquista, das tradwives que
defendem a submissão aos maridos e dos ultratradicionalistas de toda sorte.
É verdade que esses elementos caricatos,
violentos, reacionários e antidemocráticos existem e se abrigam no campo
político conservador. Os progressistas podem perguntar por que então são
tolerados ali. A resposta pode ser encontrada devolvendo a pergunta aos
progressistas e pedindo que façam, eles também, um esforço de autoexame.
Por que nós, progressistas, toleramos em
nosso meio apoiadores de ditaduras como Cuba, Nicarágua ou
Venezuela? Por que toleramos em nosso meio feministas que dizem que toda
relação heterossexual é um estupro? A resposta honesta é que toleramos essas
posições nos meios progressistas porque partilhamos com elas alguns
pressupostos e valores sobre como a sociedade deveria se organizar. Isso vale
também para os conservadores.
O drama de nossa época politicamente
polarizada é que essa caricatura que fazemos do adversário termina, no longo
prazo, por moldá-lo. Ao reduzirmos o campo adversário a seus piores elementos,
sinalizamos que são esses elementos os que mais nos incomodam. No outro lado, o
ódio do adversário aparecerá como prestígio. Os grupos odiados pela esquerda se
apresentarão na direita como os que mais incomodam, os que são verdadeiramente
“anti-eles”. Pouco a pouco, vamos nos transformando na caricatura que o adversário
faz de nós. Vamos nos tornando, nos dois lados, monstros.
A saída, um pouco contraintuitiva, é tentar
escapar do jogo da polarização e se concentrar em cuidar da própria casa. Nossa
principal responsabilidade é evitar que os piores elementos do nosso campo se
desenvolvam e prosperem, com o empurrãozinho que recebem do adversário. Em
resumo, precisamos de menos polarização e mais autocrítica.
2 comentários:
Perfeito
Muito bom! Mas não conheço feminista que diga que toda relação heterossexual é um estupro.
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