O Globo
Fuzilaria virou gatilho para desencadear
cobranças, pedidos de investigação e acusações por parte de aliados históricos
de Israel
A última entrega de alimentos da ONU aos
famintos da cidade de Gaza fora no dia 23
de janeiro. Perto de 250 mil civis palestinos vagavam entre as ruínas de suas
vidas passadas havia 37 dias e 37 noites. Todo vestígio de comando ou estrutura
administrativa havia sido erradicado pelos bombardeios e pela ocupação militar
israelense. Mais de 1 milhão de famílias já haviam sido desterradas a fórceps
para o sul. Os que permaneceram formavam um amontoado humano em meio ao nada,
sem amanhã. O fundo do poço era ali: muitos alimentavam os filhos com ração
animal, enquanto cães igualmente errantes se alimentavam de pedaços de carne
humana entre destroços.
Foi nessas condições que Gaza chegou às primeiras horas da madrugada de quinta-feira, 29 de fevereiro deste ano bissexto. Dia infame.
Quando 39 caminhões da agência humanitária
UNRWA foram percebidos adentrando a principal via litorânea, a notícia
rastilhou na escuridão desértica. E o comboio que deveria levar a preciosa
carga até o depósito de abastecimento, para distribuição in loco, se viu
cercado por massas esfomeadas. Como não saquear?
— Trocamos a alma por um saco de farinha —
resumiu o médico palestino Yehia Al Masri no New York Times.
A 250 metros de distância havia dois tanques
israelenses; e um pouco mais adiante, uma base avançada das forças de ocupação.
Foi das armas desses militares, segundo porta-vozes do próprio comando
israelense, que partiram os disparos. Teriam sido “defensivos, só ocorreram
porque a multidão se moveu de forma a colocar em perigo os soldados”. Não para
o resto do mundo, nem para boa parte de judeus não radicalizados pelo
desgoverno Netanyahu. A extinção de vidas que já dura quase cinco meses é
consequência do ódio — ódio ao palestino. Palestino terrorista ou palestino
civil, de esquerda ou de direita, homem, mulher ou criança, esse estorvo de
gente que teima em se dizer palestino nem sequer deveria existir.
Ao final do dia sangrento em que se
misturaram mortos a tiros, sufocados na multidão e atropelados pelos caminhões
em fuga, restaram indagações cruciais. O comando militar de Israel divulgou
imagens de vídeo feitas por drones, sem áudio, em que se percebe claramente
haver cortes, edição — dos fragmentos divulgados não constam imagens anteriores
ao momento em que as massas humanas se põem a correr para longe dos caminhões.
Há pessoas se arrastando no chão, buscando proteção ao abrigo de muros. Fugiam
do quê?
A fuzilaria virou gatilho para desencadear
cobranças, pedidos de investigação e acusações por parte de aliados históricos
de Israel, repentinamente mais impacientes com Netanyahu que os países-irmãos
árabes. Por ora, o presidente francês Emmanuel
Macron é quem está em situação mais confortável, tem direito a
arroubos tonitruantes. Ele é o único chefe de Estado que, desde o final do ano
passado, tem um porta-helicópteros anfíbio da Marinha ancorado no litoral de
Gaza, atendendo a feridos da invasão israelense. Também são franceses os aviões
que despejam sobre Gaza suprimentos que nem sempre chegam a quem mais precisa
deles — toda guerra, assim como a paz, tem seus atravessadores. Mas ao menos
tentativas são feitas.
Nem isso o governo de Joe Biden tinha
coragem de tentar até semana passada. Compreende-se: é de fato incongruente
conciliar uma ação humanitária dos Estados Unidos para palestinos, quando estes
são estraçalhados por armamentos israelenses financiados por Washington. Por
três vezes desde o atentado terrorista do Hamas contra
Israel, a embaixadora dos EUA na ONU ergueu o braço para votar no Conselho de
Segurança. Por três vezes desde o atentado terrorista do Hamas contra Israel, a
embaixadora dos Estados Unidos na ONU ergueu o braço direito para votar no
Conselho de Segurança. Nas três vezes ela, Linda Thomas-Greenfield, vetou as
diferentes propostas de cessar-fogo em Gaza, começando pela do Brasil. Receberá
julgamento da História semelhante ao do ex-secretário de Estado do governo
George Bush que forneceu dados falsos à ONU para favorecer a invasão do Iraque
pelos americanos em 2003.
Quantos civis palestinos não precisariam ter
morrido nestes quatro meses e 27 dias sem cessar-fogo? Quantos mais morrerão de
fome, doenças, pisoteados ou a tiros antes que o mundo, envergonhado, force
Israel a parar a insânia? Já são perto de 30 mil (e 70 mil feridos), segundo
dados do Hamas que até mesmo o governo Biden aceita — mesmo número de soldados
ucranianos mortos em dois anos de guerra. Melhor nem pensar por enquanto no que
escondem os escombros de Gaza.
P.S.: Recomenda-se aqui um pequeno livro de
grande utilidade para abrir mentes desarmadas, interessadas no viver alheio:
“Tornar-se Palestina”, de Lina Meruane. Nascida no Chile e residente em
Nova York, a escritora de ascendência palestina convida o leitor a acompanhá-la
na compreensão do que é ser palestino. Para quem não quer perder tempo com
introitos, pode começar a viagem no capítulo II. Será uma viagem civilizatória
que não necessita de concordância. Basta ser humano.
3 comentários:
PERFEITO!
Dia infame foi 7 de outubro de 2023; o restante é decorrente, desdobramento.
Ah, sim.Daniel gostou.
MAM
O pio são os feridos,70 mil,muitos com sequelas graves.
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