Folha de S. Paulo
Facções criminosas veem prefeituras como um
novo mercado
Com a prerrogativa que a Constituição lhe
dá para encaminhar ou engavetar o pedido
de impeachment do presidente Lula, protocolado
pela oposição recentemente, o presidente da Câmara
dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL),
ganhou mais força política para pressionar o Executivo a pagar emendas
parlamentares individuais e de bancada até 30 de junho, quando começa
o período
eleitoral e a União é proibida de repassar transferências voluntárias
para estados e municípios.
Ao receber o pedido, ele afirmou que o Orçamento não pode ficar nas mãos de "uma burocracia que não gasta sola de sapato percorrendo municípios do país". Sua afirmação suscita dois temas. Um trata da forma de governo, envolvendo a polêmica sobre a substituição do presidencialismo de coalizão por um semipresidencialista de fato. O outro trata das funções do Estado brasileiro.
O primeiro tema surgiu por causa da ofensiva
do Legislativo sobre o Orçamento da União. Em nossa história republicana, ainda
que tivesse de negociar prioridades com parlamentares interessados em captar
recursos para suas bases eleitorais, as decisões ficavam sob a responsabilidade
do presidente da República, que autorizava ou não o pagamento de emendas
parlamentares. Com o tempo, a multiplicação de partidos e a necessidade do
presidente de formar coalizões para assegurar a governabilidade, o cenário mudou.
A partir da década de 1990, as exigências do
Legislativo aumentaram. Com o crescimento do número de emendas parlamentares,
deputados e senadores passaram a discutir estratégias para tornar sua execução
obrigatória, reduzindo a discricionariedade do Executivo. Em 2015, as emendas
parlamentares deixaram de ser autorizativas e passaram a ser impositivas. Em
2019, a emenda constitucional 105 criou as transferências especiais —as
"emendas Pix". E, ao votar a Lei
de Diretrizes Orçamentárias para 2024, o Congresso aprovou um dispositivo
que obriga o governo a empenhar os recursos para a execução das emendas até
julho.
À medida que essas imposições cresceram,
parlamentares de diferentes partidos foram cada vez mais orientando as dotações
orçamentárias para suas bases, atendendo demandas paroquiais e regionais sem
vínculo com programas orçamentários estruturantes de alcance nacional.
Iniciativas como essas não se limitam a fragmentar recursos financeiros da
União, permitindo sua apropriação de modo irracional e até espúrio. Ao
reduzir o montante de recursos à disposição da União para implementar seus
projetos, também enfraquecem a organicidade das políticas públicas do
governo federal.
Daí decorre a importância do tema relativo à
discussão sobre o papel do Estado em um país com profundas desigualdades
socioeconômicas. Entre outras questões, essa discussão envolve as atribuições
do Executivo, a qualidade das instituições, as obrigações do setor público, as
funções estratégicas de um governo eleito democraticamente e a percepção, por
seus dirigentes, das condições necessárias para a formulação de um projeto
nacional de longo alcance.
A ofensiva
do Legislativo no campo orçamentário tende, assim, a aumentar o ritmo
da perda do poder de agenda do Executivo, seja quem for o presidente. O
confronto entre os dois Poderes reduz a força da União em matéria de formulação
de políticas públicas com base num projeto de nação. Gera indefinições de
responsabilidades e ausência de coordenação.
Quando Lira afirmou que o Orçamento é de
"todos os brasileiros", houve quem dissesse que o novo balanço entre
os dois Poderes tornará o sistema político "mais democrático". São
afirmações de quem não vê como, nos municípios em que os parlamentares têm suas
bases eleitorais, a "política" sempre foi um compromisso entre
interesses privados e interesse público, com base num sistema de troca de
favores.
São afirmações de quem não percebe que esse
compromisso continua, por meio das emendas obrigatórias, viciando
a representatividade política e permitindo que facções criminosas
vejam a política municipal como um novo mercado, nela se infiltrando para
capturar contratos com prefeituras.
*Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito e decano da Faculdade de Direito da USP
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