Valor Econômico
Presidente intensificou o uso de expressões religiosas em seu discurso
O brasileiro é majoritariamente um povo que
anda com fé, para citar a música de Gilberto Gil. A afirmação não apenas ecoa o
imaginário coletivo, como se comprova estatisticamente: no começo de fevereiro,
dados recentes do Censo de 2022 realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) revelaram que o Brasil tem mais estabelecimentos
religiosos do que de ensino.
São, em média, 286 igrejas para cada 100 mil habitantes, e 130 escolas para a mesma parcela de brasileiros. Ou seja, são 579,7 mil sedes religiosas (igrejas, templos, sinagogas e terreiros, entre outros) e 264,4 mil estabelecimentos de ensino (escolas, universidades, creches).
O Censo ainda não divulgou, todavia, os
resultados relativos à religião professada pelos brasileiros. A dúvida é se
esses dados, quando vierem à luz, confirmarão as projeções feitas nos últimos
anos, a partir da contagem anterior da população feita em 2010.
A expectativa é que a manutenção da tendência
de crescimento dos evangélicos revelaria que, em 2022, menos de 50% da
população seria de católicos. Enquanto os números do Censo não saem, uma
pesquisa do Instituto Datafolha, realizada em junho de 2022, mostrou que,
dentro da margem de erro, essa projeção já se confirmou.
Segundo o levantamento, 51% da população
declarou-se católica, e 26%, evangélica. O Datafolha ouviu 2.556 entrevistados
de 16 anos ou mais, em 181 municípios, com margem de erro de dois pontos
percentuais, para mais ou para menos. É uma inflexão histórica porque segundo o
IBGE, embora a maioria católica seja predominante no Brasil, vem perdendo fieis
desde o primeiro Censo, realizado em 1872.
Estudioso do tema há décadas, o professor
Ronaldo Rômulo Machado de Almeida, do Departamento de Antropologia da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ressaltou que, para além de 2022,
outras projeções são de que as duas curvas (evangélicos x católicos), uma em
trajetória ascendente, outra descendente, devem se cruzar em 2032.
Especialista em Antropologia da Religião,
Almeida observou que o Censo de 2010 havia demonstrado que Rio de Janeiro e
Rondônia já tinham menos da metade da população de católicos. Dado que se
refletiu nas urnas nas últimas eleições: enquanto o voto da esquerda vem
encolhendo junto ao eleitor fluminense desde a vitória de Dilma Rousseff (PT)
sobre José Serra (PSDB) em 2010, em Rondônia essa redução foi exponencial. Em
2022, Jair Bolsonaro (PL) obteve 70,6% dos votos válidos sobre 29,3% do então
candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Embora a expansão da população evangélica
seja um fenômeno verificado pelo IBGE desde o século 19, as pesquisas de
opinião publicadas há um mês, revelando que no contexto da queda de
popularidade de Lula, a reprovação nesse segmento era mais acentuada, surpreenderam
o governo.
O publicitário Sidônio Palmeira, marqueteiro
da campanha de Lula em 2022, foi chamado ao Palácio do Planalto, e surgiram as
primeiras reações, como a campanha publicitária “Fé no Brasil”. Um dos
primeiros filmes foi apresentado ontem à imprensa, em evento com a ministra da
Saúde, Nísia Trindade, para apresentar ações positivas da pasta. Nos primeiros
segundos, a locutora afirma que no Brasil, “a gente olha pra frente com
esperança, com fé e arregaça as mangas”. No fim, surge o slogan “fé no Brasil,
a gente está no rumo certo”.
Antes, na quinta-feira, Lula intensificou o
uso de expressões religiosas em seu discurso. Ele fez referência a “Deus” ou à
palavra “milagre”, em média, mais de uma vez a cada minuto. Lula sempre se
declarou um cristão católico, com incontáveis referências à mãe, dona Lindu, à
família e a Deus. Sempre foi um político adepto do “graças a Deus”, mas o
exagerou da semana passada não passou despercebido.
O professor Ronaldo Almeida acha cedo para
analisar se a estratégia lulista para estreitar os laços e melhorar a
interlocução com os evangélicos será bem sucedida. Ele se recorda de que o
caminho que Lula adotou no passado para atingir essa população “era pelo
bolso”. Argumenta que era uma boa alternativa, porque o livrava da “pauta
moral”, prejudicial à esquerda. “É uma pauta conservadora, enquanto a esquerda
é progressista, essa convicção é estrutural”, sublinhou.
O professor diz que tentar melhorar o diálogo
aperfeiçoando a comunicação é um caminho, mas “não vai virar o jogo”. Ele
argumenta que a esquerda vem perdendo essa batalha, entre outros motivos, por
causa da hegemonia dos interlocutores que falam em nome dos evangélicos. “É uma
relação com o fiel de muita autoridade; não que todo mundo obedeça o pastor,
mas ele orienta muito”, afirmou.
Na avaliação do professor, em paralelo à estratégia de comunicação, o governo deveria tentar se aproximar de lideranças evangélicas de influência regional, que se mostrem abertas ao diálogo. Ao mesmo tempo, diz que a esquerda precisa dar visibilidade aos seus quadros evangélicos, e estimular novas lideranças nesse segmento. Citou o exemplo do hoje deputado federal Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ). Ligado à Igreja Batista, Vieira começou a ganhar projeção junto ao eleitorado fluminense após a derrota de Marcelo Freixo (que trocou o PSOL pelo PT) para Marcelo Crivella (Republicanos), ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, na eleição para a Prefeitura do Rio de Janeiro em 2016.
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