Valor Econômico
Armado com “motosserra”, Milei vai cortando
gastos, demitindo milhares de servidores públicos, suspendendo obras, adiando
pagamentos e repasses para províncias e encolhendo a economia
Visitar a Argentina, para brasileiros que já
eram adultos nos anos 1980 e 1990, é como viajar para trás no tempo. A inflação
castiga os hermanos como castigou os brasileiros naqueles anos em que o país
tentava construir uma nova república democrática depois de mais de duas décadas
sob ditadura.
Hiperinflação é só uma das doenças que
assolam a Argentina. O tema já é também hiperexplorado pelos economistas, que
se concentram (corretamente) nas causas, nos impactos em políticas
macroeconômicas e no combate à inflação.
Entretanto, além das perdas que esse processo
inflacionário impõe, principalmente aos mais pobres, o dia a dia registra
atropelos e ginásticas de fornecedores e consumidores. Às vezes é até cômico,
mas existe vida a uma velocidade de preços de 250% ao ano.
Maria Regina, uma brasileira que visita anualmente a Argentina, pagou por um batonzinho de grife 10 mil pesos no ano passado. Agora, ela reclamou quando a vendedora disse que o preço era 40 mil pesos. Grosso modo, houve um aumento de 300% e o batom custa hoje cerca de US$ 40 ou R$ 200.
“Caro demais, no Brasil é mais barato!”,
reagiu a turista. A vendedora não se importa que o preço seja quase o dobro do
mesmo produto americano cobrado em São Paulo. Ela está orientada a acompanhar a
corrida dos preços em uma lista, nem coloca mais etiquetas, porque tudo sobe a
qualquer momento.
Por causa dessa corrida desorientada e
atropelada, o turista brasileiro se assusta quando um vinho patagônico que
pretendia comprar em Ushuaia, a Terra do Fim do Mundo, como dizem os
argentinos, custa o mesmo preço de São Paulo.
Quer dizer então que a Argentina não está
mais barata para brasileiros? Depende do lugar e dos comerciantes, que estão
meio perdidos com os preços. Eles sabem que, se não acompanharem a corrida,
podem ficar sem condição de repor o estoque, já que o preço de amanhã é
imprevisível. Se aumentarem demais, correndo à frente dos concorrentes, podem
ficar com o produto encalhado.
Lidar com montanhas de dinheiro é um evento
que leva brasileiros aos risos e de volta aos anos 1980. “Estou rico”, gritou
um turista ao receber um bolo de notas de pesos que estufou o bolso de sua
calça jeans.
Não estava rico, obviamente. Ele pagou o
almoço dele e da mulher com uma nota de US$ 100. Como a conta era de US$ 83,
recebeu um troco equivalente a US$ 17. Eram 35 notas de 500 pesos, mais duas de
200.
Quem nunca viu uma hiperinflação ao vivo se
diverte ao receber esse volume de dinheiro, algo que representa até uma atração
turística. Um jovem casal brasileiro registrou uma cena armada no quarto de
hotel: ambos trocaram US$ 100 numa casa de câmbio e receberam um bolo de quase
cem notas de 1.000 pesos; jogaram tudo para o alto e filmaram a queda das
cédulas espalhadas sobre a cama.
Os argentinos recebem dólar (sem nenhuma
restrição) e real (com alguma restrição) em qualquer loja ou restaurante. Não
gostam, porém, de dar o troco em dólares ou reais. A nota de 500 é a terceira
maior em pesos. Há também as de 1.000 e de 2.000, mas esta última não circula
muito. Já houve casos de empresários argentinos que usaram carrinho de mão para
pagar contas de impostos em dinheiro, uma reprise de cenas da hiperinflação
alemã dos anos 1920.
Isso traz uma discussão sobre o rótulo de
hiperinflação. Para algumas correntes, a hiperinflação é caracterizada por taxa
acima de 50% ao mês, nível muito distante de ser atingido pela Argentina. A
hiperinflação na Alemanha, nos anos 1920, é comumente citada como exemplo
extremo, com o índice mensal chegando a 29.500% em outubro de 1923, ou 20,9% ao
dia.
A cada quatro dias, os preços mais que
dobravam, num descontrole gerado pela emissão alucinada de moeda ante a
incapacidade alemã de pagar as reparações da Primeira Guerra Mundial. Mas a
maior inflação da história foi registrada na Hungria, depois da Segunda Guerra,
com 207% ao dia.
Seja qual for a definição de hiperinflação,
visitar a Argentina neste momento é uma boa oportunidade para ver os estragos
que a inflação descontrolada faz na vida das pessoas.
Essa situação já dura uns cinco anos. Até
agora, a alucinada política econômica do novo governo não teve resultados
práticos, embora o FMI veja “progressos impressionantes”. Um exemplo: desde que
o ultraliberal Javier Milei assumiu, em dezembro, os remédios aumentaram 40%
acima da inflação média. Em 12 meses, subiram 254%. Os salários são ajustados a
conta-gotas, dependendo da força do sindicato de cada categoria. O nível de
pobreza aflige 50% da população.
No shopping Paseo del Puebla, em Ushuaia, a
vendedora define o ritmo das vendas: “Tranquilas”. Mas tranquilidade não é uma
boa no comércio. As pessoas preferem comer a comprar roupas ou até remédios.
Armado com “motosserra”, Milei vai cortando gastos, demitindo milhares de servidores públicos, suspendendo obras, adiando pagamentos e repasses para províncias e encolhendo a economia. Já tem superávits fiscais, que o FMI adora, mas sobre o efeito disso na vida real a resposta das pessoas é sempre a mesma: “Estamos esperando”.
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