Folha de S. Paulo
Com tom abaixo do usual, ex-presidente aceita
candidatura sem inflamar a plateia
Ao longo desta semana de Convenção Nacional
Republicana, Donald
Trump comportou-se de forma imperial. Sem proferir uma palavra, apenas
com olhares de satisfação a cada discurso, compartilhando versões de sua
bandagem na orelha com vários dos presentes.
Foi assim que ele viu
antigos desafetos, como Nikki Haley, praticarem genuflexão política ante a
aura de favoritismo que só fez crescer com o esfarelamento da candidatura
de Joe
Biden e o atentado em
que milímetros separaram a vida da morte do republicano.
Ao mesmo tempo, foi apresentado como um ser
humano sob a coroa, a considerar sua troca de experiências na prática do
golfe com a neta um exemplo disso. Considerando seu histórico, dificilmente
convencerá algum eleitor-pêndulo, mas isso pode ser irrelevante ao fim.
Em seu primeiro discurso após o incidente, ao aceitar oficialmente a candidatura para tentar voltar à Casa Branca nesta quinta, Trump tentou um malabarismo na noite desta quinta (18).
Algo titubeante em 1h32min de fala, envergou
o figurino de mártir
político que auferiu no sábado passado (13) na Pensilvânia, mas também
vendeu a ideia de pacificação vendida por seus "spin doctors" durante
a semana.
Disse que está pronto para ser presidente de
todos, não só a metade, dos americanos. Não tem exatamente as credenciais para
tanto.
Discorreu sobre temas econômicos em
termos genéricos, remetendo à Guerra Fria 2.0 que começou em 2017 contra a
China ao falar sobre carros elétricos. Ressuscitou até o "vírus
chinês", acerca da Covid-19. Nada sério ou novo sobre Guerra da Ucrânia, Otan e outros
temas espinhosos.
Prometeu defesa antimísseis em todos os EUA e
fez questão de relacionar ao delirante "Guerra das Estrelas" de
Ronald Reagan. Hoje, não há tecnologia para o "Domo de Ferro"
israelense em escala quase continental nas Américas.
Mas fica difícil encaixar o personagem, ao
gosto esta fase Império Romano da saga do ex-presidente, reforçada pela escolha
de um sucessor presumido no senador J.D. Vance, um convertido ao
trumpismo. Um dos poucos momentos politicamente notáveis da noite foi ele
dizendo a Vance que ambos estão "nessa para o longo prazo", uma unção
ao herdeiro.
Claro, Trump poderia ter radicalizado ao
estilo que lhe fez fama no episódio do Capitólio, ainda que tenha tido seus
lampejos ao falar de imigração ilegal. Milwaukee não era lugar para isso. Mas o
tom algo comedido, como na homenagem ao apoiador morto no comício do atentado,
foi permeado por sinais de adesão ao messianismo amplificado pela bala na
orelha.
Isso para não falar no "esquenta"
da fala com o músico Kid Rock repetindo o grito de guerra do sábado
("Lute!"). Ou o caricatural
Hulk Hogan e o chefão do UFC Dana White tentando imprimir o caráter de
luta à disputa eleitoral.
Ao fim, ficamos com Trump falando da
experiência de quase morte do sábado: "Vou dizer o que aconteceu",
afirmou, recontando a história de que foi salvo por olhar a um telão com
números sobre imigração ilegal. "Eu me senti muito seguro porque eu tinha
Deus ao meu lado, eu senti isso."
"Não era para eu estar aqui nesta
noite", disse Trump. "Eu só estou nessa arena pela graça de Deus
Todo-Poderoso", disse. "Foi um momento providencial", completou,
antes de repetir o "Lute! Lute! Lute!" da
fotografia daquele momento.
Para seus críticos, isso encontra eco no
discurso feito no rádio por Adolf Hitler após a tentativa de
assassinato a bomba contra o líder nazista há 80 anos a serem
completados no sábado (20): "Eu considero isso a confirmação da tarefa
imposta a mim pela Providência".
Ao fim, a nota repetitiva, quase chorosa, em
oposição ao discurso
do vice na véspera, ficou bastante abaixo do usual modo do ex-presidente na
maior parte da fala.
Se cometesse uma gafe brava, teria tido uma
noite Biden, ainda que tenha melhorado a articulação ao fim, falando de seus
temas preferidos, como imigração, ou fazendo tiradas com o canibal
cinematográfico Hannibal Lecter. Mas não afetou a mediana.
Após anos de trabalho em favor de fake news,
Trump agora acusa o Partido Democrata de ser o único responsável pela
polarização e clama por união —zero dúvidas sobre responsabilidades de lado a
lado hoje, mas a origem do problema é bem conhecida.
Ante a debacle
de Biden que emergiu do desastroso debate
do mês passado, de todo modo, pode talvez ser o suficiente em
novembro. Sorte de Trump: nem a já convencida plateia foi inflamada por seu
discurso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário