O Globo
Os intrincados jogos simultâneos do ministro
da Fazenda com o Planalto e o mercado
Para avaliar as possibilidades da política
econômica, é preciso ter em mente a real natureza da relação de Fernando Haddad
com Lula da Silva. E, para isso, é útil ter em perspectiva o leque variado de
relações distintas que ministros da Fazenda estabeleceram com presidentes da
República ao longo dos últimos 30 anos.
Tirando bom proveito das rememorações do
Plano Real, vale a pena ter em conta, por exemplo, que, em mais de uma ocasião,
entre maio de 1993 e março de 1994, FHC se viu obrigado a deixar claro ao
presidente Itamar Franco que se demitiria do cargo de ministro da Fazenda, caso
o plano de estabilização viesse a ser comprometido por interferências
impensadas.
Salta aos olhos que a relação de Haddad com Lula é de natureza completamente distinta. A ninguém ocorre que o atual ministro da Fazenda possa vir a confrontar o presidente com uma ameaça de demissão desse tipo. Lula bem sabe que Haddad jamais faria algo parecido.
Por seu lado, Haddad tem plena consciência de
que ser percebido como um ministro que jamais pedirá demissão é algo que
restringe em grande medida seu jogo com Lula e o PT e lhe cerceia a condução da
política econômica. E aqui é importante ter em conta o jogo simultâneo que o
ministro também vem tendo de jogar com a mídia e o mercado.
Vale lembrar que, em 5 de janeiro de 2023,
mal iniciado o atual governo, a expectativa mediana do mercado, aferida pela
Pesquisa Focus, era a de que a dívida bruta chegaria a mais de 91% do PIB, em
2026. Nesse quadro, a promessa de que o novo arcabouço fiscal geraria
superávits primários, ainda que de valor irrisório, foi recebida com alívio.
O salto da dívida bruta durante o Lula 3
seria muito menor do que se temia. “Só” de 10 pontos percentuais do PIB, em vez
de 18. Haddad passou a ser visto como fiador dessa suposta atenuação da
irresponsabilidade fiscal do governo.
Não tem sido fácil para Haddad sair-se bem
nas partidas simultâneas que, há meses, vem sendo obrigado a jogar nesses dois
tabuleiros interdependentes — com Lula e o PT no primeiro, e com o mercado e a
mídia no segundo. A deterioração recente do ambiente econômico-financeiro, na
esteira do deslizamento do câmbio, não deixa dúvidas quanto às dificuldades que
tem enfrentado.
O autoengano em que o mercado se permitira
mergulhar tornou-se insustentável em face das proporções do descontrole de
gastos que passou a aflorar nas contas públicas. Haddad teve de negociar às
pressas, com Lula e o PT, autorização para acenar com uma promessa vaga de
cortes de despesas.
Que cortes serão esses, ninguém sabe. O que,
sim, se sabe é que tanto Lula como o PT têm reiterado, aos quatro ventos, a
extensão de sua resistência às medidas de ajuste fiscal que poderiam vir a
viabilizar uma contenção duradoura de despesas, na magnitude que se faria
necessária.
Para se defender no jogo com o mercado e a
mídia, Haddad viu-se obrigado a se comprometer com uma jogada que poderá se
revelar inviável no seu jogo com Lula e o PT. Sabe perfeitamente que, se for
mal em um tabuleiro, não terá como se sair bem no outro. Intrincado.
Para que Lula possa continuar a esticar a
corda da irresponsabilidade fiscal, sem chegar a rompê-la, Haddad terá de
preservar sua imagem no mercado e na mídia. Mas tal preservação requer
cuidados. É fundamental, por exemplo, que Haddad se mantenha completamente
dissociado da inesgotável torrente de manifestações populistas e irresponsáveis
que vem emanando do Planalto e do PT. E isso não tem sido fácil.
Ainda na semana passada, o ministro apareceu,
ladeado pela primeira-dama, em vídeo amplamente divulgado, em que, entre outros
feitos, festejava a “vitória do presidente Lula” na aprovação pela Câmara, em
mais uma etapa de votação da Reforma Tributária, da completa isenção de
tributação para carnes de qualquer tipo.
Em meio à crescente apreensão com a
inconsequência que tem pautado a fixação de alíquotas da nova tributação sobre
valor adicionado, é difícil entender como o ministro da Fazenda se permitiu se
associar de público a tamanha demagogia.
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