O Globo
A sequência sugere que Alexandre de Moraes
primeiro formou sua opinião, depois encomendou provas para respaldá-la
A Folha de S.Paulo publicou uma série de
reportagens que revelam trocas de mensagens entre um juiz auxiliar do gabinete
de Alexandre de Moraes no STF e
a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE,
de agosto de 2022 a maio de 2023. Essas mensagens mostram como provas para
processos no STF foram solicitadas informalmente ao TSE em conversas no WhatsApp.
Juristas debatem se essas comunicações podem configurar ilegalidade,
comprometendo a validade dos processos, como ocorreu com a Lava-Jato.
Mais que a questão legal, porém, as mensagens expõem os problemas decorrentes da mistura de funções nos inquéritos contra os movimentos antidemocráticos. Esse arranjo surgiu para contornar a inação da Procuradoria-Geral da República (PGR) diante das mobilizações golpistas. As movimentações incluíram campanhas nas mídias sociais para minar a confiança nas urnas, acampamentos em frente aos quartéis, bloqueios de estradas, atos de sabotagem e até a invasão das sedes dos Poderes.
Para enfrentar a inação da PGR, foram
propostos inquéritos de ofício em que o STF atua como vítima, investigador e
juiz. O arranjo, inicialmente criticado, acabou com o tempo assimilado como
fato consumado. Agora, com as reportagens, temos a oportunidade de entender o
que acontece nos bastidores.
Um exemplo citado nas reportagens ilustra bem
a situação: o juiz auxiliar do STF solicitou ao TSE um relatório sobre
irregularidades nas redes sociais do comentarista bolsonarista Rodrigo
Constantino. O relatório foi entregue, mas o STF pediu sua revisão, pois o
ministro Alexandre de Moraes havia feito capturas de tela que não constavam do
documento — o ministro estava “cismado” com o caso. O relatório foi refeito e,
com ele, veio a sentença que determinou o bloqueio das redes sociais, o
cancelamento do passaporte e a quebra do sigilo bancário de Constantino.
A sequência de mensagens revela o impacto da
sobreposição de papéis. Moraes, como vítima, manifesta indignação com as
postagens de Constantino. Como investigador, encomenda um relatório para
comprovar o delito. Insatisfeito, exige um relatório mais completo. Finalmente,
como juiz, sentencia a perda das redes, a quebra de sigilo e o confisco do
passaporte.
Essa dinâmica gera uma decisão
inevitavelmente enviesada. Como uma vítima indignada pode conduzir uma
investigação criteriosa e, depois, emitir uma sentença equilibrada? A
indignação da vítima orienta a investigação e contamina o julgamento. A
sequência sugere que o ministro primeiro formou sua opinião, depois encomendou
provas para respaldá-la. É uma justiça desequilibrada, uma justiça injusta.
Embora o STF tenha declarado não haver
irregularidade na comunicação entre os órgãos, essa comunicação foi omitida da
documentação oficial, justamente porque evidenciava o problema.
No caso Constantino, o relatório do TSE
afirma: “Através do nosso sistema de alertas e monitoramentos realizados por
parceiros deste tribunal, recebemos informações de frequentes postagens”
(feitas por Constantino). A sentença sugere que o processo foi iniciado a
partir de um ofício do TSE: “Trata-se de petição instaurada a partir de ofício
encaminhado pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE
por meio do qual foi submetido relatório técnico”.
A narrativa sugere que um monitoramento de
rotina, feito por parceiros do TSE (como uma universidade), encontrou uma
postagem ilícita de Constantino, motivando a elaboração de um relatório.
Posteriormente, o STF, provocado pelo relatório, julgou e sentenciou. Isso faz
parecer que o processo passou por etapas independentes: universidade, TSE e, só
então, STF. A narrativa busca ocultar o que realmente aconteceu: o ministro
indignado encomendou, mandou refazer o relatório, depois sentenciou. O que se
quer esconder é o viés causado pela confusão de papéis.
Mais que discutir a legalidade da comunicação
entre os órgãos, as reportagens revelam que o arranjo criado para contornar a
inação da PGR durante os anos Bolsonaro gerou uma Justiça torta. Mesmo que esse
arranjo tenha se justificado no auge da crise entre 2022 e 2023, ele não tem
mais motivo para continuar. Precisamos concluir essas investigações
excepcionais e retomar a separação de papéis, essencial para uma Justiça
equilibrada.
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