quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A tradição é a da impunidade - Míriam Leitão

O Globo

O Brasil já quebrou um precedente histórico por ter indiciado militares que tramavam um golpe. Na história, nenhum foi punido

Os militares indiciados pela Polícia Federal por envolvimento com a tentativa de golpe de Estado vão enfrentar outro procedimento judicial, interno, que pode levá-los à expulsão das Forças Armadas e à perda das patentes, condecorações e soldos, segundo o historiador Carlos Fico, da UFRJ. Ele disse que há dois caminhos possíveis: uma representação do procurador-geral militar à Justiça Militar ou a criação de um Conselho de Justificação interno das Forças. Nesse caso, eles não serão julgados por golpismo, mas por “desobediência e conspiração contra a hierarquia militar”.

Na avaliação de Carlos Fico, nesse caso que vive agora, o Brasil já quebrou um precedente histórico, por ter decidido investigar e indiciar 24 militares, da ativa e da reserva. Durante toda a República, houve inúmeros atentados de militares contra a democracia, mas, segundo o professor, nunca houve um único caso em que militares golpistas fossem punidos. Carlos Fico concluiu um livro, que será lançado no ano que vem, chamado “A utopia autoritária brasileira”, resultado de uma pesquisa que realiza há alguns anos sobre todos os casos de golpismo militar durante a República.

— É um momento novo, um movimento todo inédito, tanto do ponto de vista dessa última onda golpista que tem elementos inéditos, como tentativa de assassinato de líderes, o que é escandaloso. Mas há também a quebra de padrões recorrentes nos golpes brasileiros, essa lamentável tradição histórica. O simples fato de a Polícia Federal ter feito um inquérito bastante robusto é novo. Nunca houve inquérito, nem indiciamento. Nenhum golpista na história do Brasil jamais foi punido. Sempre houve anistia — afirma o historiador.

No caso do procedimento interno das Forças Armadas, ela pode ocorrer em dois tempos diferentes. Pode ser apenas após toda a conclusão do julgamento no Supremo Tribunal Federal, quando o procurador-geral representa à Justiça Militar para que haja julgamento de honra por indignidade e incompatibilidade com o oficialato. Ou então o comandante do Exército, ou da Marinha, inicia esse Conselho de Justificação. Após o conselho se pronunciar, o caso é levado ao STM.

— Isso pode ser iniciado agora, mas pelo que eu tenho ouvido, eu creio que os comandantes das Forças vão iniciar após a denúncia do procurador-geral da República. É um julgamento gravíssimo — diz Fico.

Há muitos indícios disso nas volumosas conspirações para atacar os comandantes nas redes sociais. Os alvos preferenciais dos ataques dos conspiradores eram os comandantes Freire Gomes, do Exército, Baptista Junior, da Aeronáutica, os generais Valério Stumpf, que havia comandado o III Exército, e depois foi para a chefia do Estado-Maior do Exército, o general Richard Nunes, do I Exército, e o general Tomás Paiva, do II Exército, hoje comandante da Força. Se houver punição interna também será novidade.

— A situação no ambiente militar ao longo da história sempre foi marcada por muitos casos de indisciplina e quebra de hierarquia. Tanto na Justiça Militar, quanto no ambiente civil sempre houve muita leniência. Todos os golpistas foram anistiados e isso não é figura de linguagem. Eu posso mostrar as evidências disso. A tradição é da impunidade.

O historiador acha que seria importante o Brasil, neste momento, encarar o desafio de mudar a redação do artigo 142 da Constituição. Ele acha que há um problema persistente na relação entre militares e civis que tem permitido aos militares a interpretação equivocada de que eles têm que tutelar o poder civil.

—Em todas as constituições da República está lá essa atribuição excessiva de que eles são “a garantia dos poderes constitucionais“. E a gente viu na última onda golpista o quanto isso é perigoso. Houve até a “operação 142”. Permanece esse autoentendimento equivocado de que eles podem intervir no caso de supostas crises — disse Carlos Fico.

Perguntei em entrevista que fiz com ele no meu programa na GloboNews, se o Brasil desta vez fugirá da tradição da anistia aos rebelados contra a ordem democrática. Ele disse que “a surpresa vai ser se não houver, e eu espero que não haja”. Fico acha que um dos sinais de que a História não vai se repetir é que tanto o ministro da Defesa, quanto o comandante do Exército, têm falado em distinguir CPF de CNPJ. A ideia é, portanto, caracterizar os indivíduos como culpados e não a instituição.

 

3 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Pode ser.

Anônimo disse...

Em se tratando de milicos, seus atos e seus tribunais, melhor é esperar pra ver.
Com as barbas de molho...

Anônimo disse...

Uma PEC tem que incorporar "a garantia dos poderes constitucionais“ às competências privativas dos presidentes do executivo, do legislativo e do judiciário.
E retirá-la do artigo 142.