O Globo
O Brasil já quebrou um precedente histórico por ter indiciado militares que tramavam um golpe. Na história, nenhum foi punido
Os militares indiciados pela Polícia Federal
por envolvimento com a tentativa de golpe de Estado vão enfrentar outro
procedimento judicial, interno, que pode levá-los à expulsão das Forças Armadas
e à perda das patentes, condecorações e soldos, segundo o historiador Carlos
Fico, da UFRJ. Ele disse que há dois caminhos possíveis: uma representação do
procurador-geral militar à Justiça Militar ou a criação de um Conselho de
Justificação interno das Forças. Nesse caso, eles não serão julgados por
golpismo, mas por “desobediência e conspiração contra a hierarquia militar”.
Na avaliação de Carlos Fico, nesse caso que vive agora, o Brasil já quebrou um precedente histórico, por ter decidido investigar e indiciar 24 militares, da ativa e da reserva. Durante toda a República, houve inúmeros atentados de militares contra a democracia, mas, segundo o professor, nunca houve um único caso em que militares golpistas fossem punidos. Carlos Fico concluiu um livro, que será lançado no ano que vem, chamado “A utopia autoritária brasileira”, resultado de uma pesquisa que realiza há alguns anos sobre todos os casos de golpismo militar durante a República.
— É um momento novo, um movimento todo
inédito, tanto do ponto de vista dessa última onda golpista que tem elementos
inéditos, como tentativa de assassinato de líderes, o que é escandaloso. Mas há
também a quebra de padrões recorrentes nos golpes brasileiros, essa lamentável
tradição histórica. O simples fato de a Polícia Federal ter feito um inquérito
bastante robusto é novo. Nunca houve inquérito, nem indiciamento. Nenhum
golpista na história do Brasil jamais foi punido. Sempre houve anistia — afirma
o historiador.
No caso do procedimento interno das Forças
Armadas, ela pode ocorrer em dois tempos diferentes. Pode ser apenas após toda
a conclusão do julgamento no Supremo Tribunal Federal, quando o
procurador-geral representa à Justiça Militar para que haja julgamento de honra
por indignidade e incompatibilidade com o oficialato. Ou então o comandante do
Exército, ou da Marinha, inicia esse Conselho de Justificação. Após o conselho
se pronunciar, o caso é levado ao STM.
— Isso pode ser iniciado agora, mas pelo que
eu tenho ouvido, eu creio que os comandantes das Forças vão iniciar após a
denúncia do procurador-geral da República. É um julgamento gravíssimo — diz
Fico.
Há muitos indícios disso nas volumosas
conspirações para atacar os comandantes nas redes sociais. Os alvos
preferenciais dos ataques dos conspiradores eram os comandantes Freire Gomes,
do Exército, Baptista Junior, da Aeronáutica, os generais Valério Stumpf, que
havia comandado o III Exército, e depois foi para a chefia do Estado-Maior do
Exército, o general Richard Nunes, do I Exército, e o general Tomás Paiva, do
II Exército, hoje comandante da Força. Se houver punição interna também será
novidade.
— A situação no ambiente militar ao longo da
história sempre foi marcada por muitos casos de indisciplina e quebra de
hierarquia. Tanto na Justiça Militar, quanto no ambiente civil sempre houve
muita leniência. Todos os golpistas foram anistiados e isso não é figura de
linguagem. Eu posso mostrar as evidências disso. A tradição é da impunidade.
O historiador acha que seria importante o
Brasil, neste momento, encarar o desafio de mudar a redação do artigo 142 da
Constituição. Ele acha que há um problema persistente na relação entre
militares e civis que tem permitido aos militares a interpretação equivocada de
que eles têm que tutelar o poder civil.
—Em todas as constituições da República está
lá essa atribuição excessiva de que eles são “a garantia dos poderes
constitucionais“. E a gente viu na última onda golpista o quanto isso é
perigoso. Houve até a “operação 142”. Permanece esse autoentendimento
equivocado de que eles podem intervir no caso de supostas crises — disse Carlos
Fico.
Perguntei em entrevista que fiz com ele no
meu programa na GloboNews, se o Brasil desta vez fugirá da tradição da anistia
aos rebelados contra a ordem democrática. Ele disse que “a surpresa vai ser se
não houver, e eu espero que não haja”. Fico acha que um dos sinais de que a
História não vai se repetir é que tanto o ministro da Defesa, quanto o
comandante do Exército, têm falado em distinguir CPF de CNPJ. A ideia é,
portanto, caracterizar os indivíduos como culpados e não a instituição.
3 comentários:
Pode ser.
Em se tratando de milicos, seus atos e seus tribunais, melhor é esperar pra ver.
Com as barbas de molho...
Uma PEC tem que incorporar "a garantia dos poderes constitucionais“ às competências privativas dos presidentes do executivo, do legislativo e do judiciário.
E retirá-la do artigo 142.
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