O Globo
Foi de Stephen Miller a decisão de implantar
a política de separação forçada de famílias que cruzavam a fronteira
ilegalmente
Convém falar de Stephen Miller. Primeiro,
porque faltam poucos dias para o triunfal retorno de Donald Trump à Casa Branca
como 47º presidente dos Estados
Unidos. Segundo, porque, ao contrário dos crepitosos nomes já
elencados para compor o primeiro escalão do novo governo, fala-se pouco de
Stephen Miller. Ele prefere assim, basta-lhe saber ser o membro mais influente,
temido, autoritário e perigoso da constelação trumpista. Deve achar ridículas
as ostentações de ego de um Elon Musk ou
Robert Kennedy Jr., pois prefere movimentar-se à sombra do poder. É de lá que
pretende continuar a semear sua ideologia do ódio.
Miller, de apenas 39 anos, é a matriz teórica da agenda supremacista adotada por Trump. Está na órbita do movimento Make America Great Again desde a eleição de 2016, quando mal tinha dobrado a curva dos 30 — primeiro como autor dos discursos de campanha de Trump, depois como idealizador obsessivo das políticas anti-imigração encampadas pelo chefe. Agora, em 2025, volta a assumir seu poder influenciador sem ocupar qualquer ministério ou cargo que exija confirmação pelo Senado. Será apenas “vice-chefe de políticas”, o que não quer dizer nada, mas, no seu caso, é tudo o que quer: acesso irrestrito e gabinete vizinho a Trump.
Segundo duas renomadas publicações (The New
Yorker e The Atlantic) que se aventuraram a perfilar Miller, ele é obsessivo e
vingativo, arrogante na voz monocórdia e dado a pitis quando contrariado. Ao
final de uma reunião tensa, segundo relato de um depoente, Miller surpreendeu a
todos com um último comentário:
— Eu não pretendia ser tão duro, mas essa
questão é tudo o que me importa. Eu não tenho família. Eu não tenho nada além
disso. Isso é a minha vida — disse então, referindo-se a sua obsessão com o
tema da composição populacional dos Estados Unidos.
Vale ressaltar que foi de Stephen Miller a
decisão de implantar a política de separação forçada de famílias que cruzavam a
fronteira ilegalmente. Passou a exercer pressão máxima sobre o Departamento de
Justiça para que os adultos ilegais fossem processados criminalmente. Foi assim
que mais de 2.500 crianças (102 das quais menores de 5 anos) se viram apartadas
de suas famílias em centros de detenção semelhantes a jaulas. Miller chegou a
declarar ao New York Times que 90% da opinião pública apoiaria a medida.
Felizmente, errou. Graças ao vazamento de uma gravação feita num dos centros
improvisados, onde crianças choravam e chamavam pelos pais (e um guarda de
fronteira reclamava com desdém: “Pronto, começou a orquestra!”), a opinião
pública americana se voltou contra a medida. Trump engavetou a gritante
desumanidade 48 horas após a gravação viralizar e culpou quem nada tinha a ver
com a medida. Miller saiu ileso — ele sabe como poucos quando e como
desaparecer, sem nunca sair de cena.
Miller cultiva simultaneamente uma imagem
pública de homem severo — difícil flagrar sua silhueta esguia sem terno e
gravata — e a de polemista provocador. Nascido em família abastada da
Califórnia, dedica-se desde a puberdade a se fazer notar pelo ativismo
antiliberal. Deleitava-se em chocar e ofender as sensibilidades progressistas
de seus colegas da exclusiva Santa Monica High School e da Duke University,
onde se formou em ciência política.
— Ele gosta de irritar a quem despreza e se
deleita com o desdém alheio. Corteja a infâmia — descreve o jornalista McKay
Coppins na Atlantic.
Quando Miller diz que a missão contra
imigrantes é tudo o que tem na vida, que ele não tem família, talvez queira
enterrar as origens de sua ascendência materna. Quem explica é seu tio
neuropsicanalista, David Glosser, irmão de Miriam, mãe de Miller. Os irmãos
Glosser foram criados por pais democratas rooseveltianos, como 70% ou 75% de
judeus americanos daquela geração. Cresceram em meio a publicações sobre
direitos civis, leituras republicanas e a consciência do acolhimento que seus
pais haviam recebido nos Estados Unidos ao fugirem do nazismo. Em entrevista
doída para o programa Frontline, Glosser assim define o sobrinho:
— As mesmas besteiras [que ele diz sobre os
imigrantes hispânicos] diziam dos judeus, de nossa família quando viemos para
este país. Diziam que roubaríamos seus empregos, que éramos rombudos, que
éramos criminosos. Que formávamos grupos, não nos integrávamos, quando na
verdade não podíamos comprar imóveis em certos bairros, não podíamos abrir
determinados negócios, não podíamos cursar certas universidades (...).
Particularmente no caso de Stephen, ou de qualquer judeu cuja família tenha
sido forçada a emigrar, é quase como deletar seu banco de memória e
substituí-la por outra (...). Penso que a força que move Trump e Stephen está
em estimular medos e ansiedades coletivos para manipulação política, para
conquistar e manter o poder. É ânsia de poder, ânsia de influência.
Ao pesquisar na internet por imagens de
Miller, a colunista bateu no link, que, uma vez visto, nunca mais se conseguirá desver. A
semelhança com Joseph Goebbels assusta.
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