terça-feira, 14 de janeiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Democracia exige vigília permanente

Correio Braziliense

Não se pode esmorecer na defesa da democracia. E mais: o combate efetivo ao autoritarismo passa obrigatoriamente pelos campos digitais

Considerada um dos marcos da redemocratização do Brasil, a eleição indireta de Tancredo Neves para a Presidência da República completa 40 anos em um momento em que o apelo feito por ele pela manutenção da vigilância democrática faz todo o sentido. "Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão", convocou o político mineiro, em 15 de janeiro de 1985, após receber 480 votos do Colégio Eleitoral, contra os 180 concedidos a Paulo Maluf. 

Nada tão atual. A revelação, por parte da Polícia Federal (PF), de uma meticulosa trama golpista costurada durante o governo Jair Bolsonaro para mantê-lo no poder é a prova de que não se pode esmorecer na defesa da democracia. E mais: o combate efetivo ao autoritarismo passa obrigatoriamente pelos campos digitais.

A investigação da PF mostra que, desde o primeiro ano do governo, existia um núcleo dedicado a produzir, divulgar e amplificar notícias que construíssem um ambiente que favorecesse a ruptura democrática. E as redes sociais foram o principal canal de escoamento dessa estratégia. 

Os ataques sistemáticos ao sistema eleitoral ajudaram, por exemplo, a manter centenas de pessoas acampadas em frente aos quartéis quando Bolsonaro perdeu para Lula no segundo turno de 2022. Do QG do Exército em Brasília saíram muitos dos que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, uma semana depois da posse do petista.

Meses antes, Bolsonaro deu a seguinte declaração ao criticar a forma como o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), conduzia o inquérito das fake news: "Se eu contar uma mentira para você agora, você acredita se quiser. Ou, se você não gostar, você nunca mais fala comigo, você nunca mais entra na minha página". Além de destoar do que se espera de um chefe do Executivo, a declaração joga para o cidadão a responsabilidade de se pautar pela verdade. Também exime quem mantém as praças públicas da atualidade, as redes sociais, da responsabilidade de barrar informações que levem aos extremismos. 

Nesse sentido, assusta o mundo e demanda reações enérgicas dos governos democráticos as recentes movimentações das big techs que, sob o pretexto de garantir a liberdade de expressão, podem favorecer a disseminação de discursos de ódio, teorias conspiratórias e outras expressões do radicalismo. O governo brasileiro acerta ao, diante do anúncio do fim do programa de checagem feito pela Meta, exigir que "cada país tenha a sua soberania resguardada". Mas Lula deve enfrentar dificuldades em ao menos uma das frentes traçadas para conter os expoentes da tecnologia: sensibilizar um Legislativo com integrantes adeptos da polarização nas redes sobre a importância de aperfeiçoar a legislação para barrar as ameaças modernas à democracia.

Em artigo publicado, na última sexta-feira, neste Correio, José Sarney — que assumiu a Presidência em razão da morte de Tancredo  Neves —, escreveu que a democracia "é o melhor regime, porque é capaz de defender-se e vencer os que contra ela investem cometendo crimes". Tem como definição máxima, segundo ele, ser o regime da liberdade, que é a garantia da dignidade humana. Não se trata, portanto, de uma liberdade que privilegie interesses de oligopólios empresariais ou de determinadas correntes políticas. É liberdade pautada para o bem coletivo. E, por isso, merece ser defendida e vigiada a todo tempo.

Governo não deve deixar BC sozinho contra inflação

O Globo

Ano mal começou, e Brasil corre sério risco de repetir em 2025 alta de preços acima de 4,5%, o teto da meta

Em declaração sobre as perspectivas da economia global em 2025, a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, reconheceu o alto grau de imprevisibilidade deste ano devido às dúvidas a respeito das políticas a serem adotadas pelo novo governo dos Estados Unidos. Entre as certezas está a pressão inflacionária no Brasil. Tal cenário deveria ligar todas as sirenes no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e no Congresso. A política fiscal irresponsável eleva as incertezas sobre a trajetória da dívida pública, faz o câmbio disparar e alimenta a alta de preços. Se o Banco Central (BC) continuar solitário no combate à inflação, a tarefa será mais difícil e a situação mais dolorosa para a população.

O índice oficial, o IPCA, está elevado, e a perspectiva é que siga assim. Desde outubro, o acumulado de 12 meses tem ficado acima do teto da meta estipulada para o BC (4,50%). Foi dessa forma que a economia fechou o ano de 2024. Olhando para a frente, os cenários não indicam melhora. O mais grave é a aparente perda de força da política monetária. É certo que o impacto de mudanças na taxa básica de juros, a Selic, não acontece de uma hora para outra. O aperto leva meses para se transmitir pela economia e ser sentido na estabilização dos preços. Mas é esperado que o anúncio de altas acentuadas tenha efeito rápido nas previsões. Não é o que tem ocorrido. Em dezembro, o BC elevou a Selic em 1 ponto percentual, para 12,25% ao ano, e ficou o aviso de poder chegar a 14,25% até março. Antes do anúncio, a estimativa de economistas era de um IPCA de 4,59% em 2025. No levantamento desta segunda-feira, o percentual estava em 5%.

É possível que o BC, agora sob a presidência de Gabriel Galípolo, consiga, mais adiante, ancorar as expectativas. Mas o governo deveria prestar mais atenção nas dúvidas que alimentam as previsões pessimistas. Uma delas é como reagirá o presidente Lula quando a economia começar a desacelerar devido ao choque dos juros. O histórico não é nada bom. Mesmo antes de assumir, a estratégia foi a expansão do gasto para fazer a roda da economia girar mais rapidamente. Não faltaram estímulos para manter a atividade em alta, apesar de consequências nefastas, como o aumento da dívida pública, do dólar e da inflação. Caso esteja mesmo convencido de que a economia está sobreaquecida e é preciso desacelerar, o presidente terá de fazer mais que promessas. Em entrevista ao GLOBO, o secretário executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, indicou a adoção de novas medidas fiscais em 2025. Uma repetição do que aconteceu no fim do ano passado pouco ou nada deve ajudar. Em novembro, o governo enviou ao Congresso um pacote fiscal com cortes tímidos, e, em seguida, os deputados e senadores conseguiram a proeza de piorar o que já era ruim.

Na carta enviada ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para justificar o fechamento de 2024 com o IPCA estourando o teto, Galípolo afirma que o cenário de referência indica uma inflação acima do limite máximo até o terceiro trimestre. Portanto é grande o risco de mais um ano fora do intervalo de tolerância. Em 2025, uma nova metodologia será adotada. Se a inflação ficar fora do teto por seis meses consecutivos, é considerado descumprimento da meta. Para a população, a possibilidade de alta de preços por mais tempo num mundo mais imprevisível é um início de ano preocupante.

Segurança digital deficiente expõe dados da população a hackers

O Globo

Uma auditoria do TCU considera ‘alarmante’ o perigo de vazamento de informações em 229 órgãos federais

É espantosa a vulnerabilidade constatada na proteção de informações sensíveis da população ou do próprio Estado. Invasões dos criminosos digitais costumam ser mantidas em sigilo, para não expor os pontos frágeis da máquina administrativa, mas uma auditoria recente do Tribunal de Contas da União (TCU) revela a dimensão da ameaça. A vulnerabilidade prejudica a população. No ano passado, houve vazamento de informações do Conect SUS. O furto de senhas de servidores públicos permitiu o desvio de cerca de R$ 15 milhões do sistema de pagamentos do governo federal, o Siafi (apenas R$ 2 milhões foram recuperados). Também houve desvios no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

De acordo com o TCU, estão em alta os “incidentes cibernéticos” — termo vago que inclui furto de dados, tentativa de obter senhas (phishing) e ataques de vírus. No primeiro semestre do ano passado, os casos já haviam superado os 4.300 ocorridos em 2023. Chegaram a 8.692 no final de 2024. O diagnóstico do TCU, depois de auditorias feitas nos dois últimos anos, é que o risco de vazamento de dados em 229 órgãos públicos federais é “particularmente alarmante”.

Dos 229 órgãos federais auditados pelo TCU, apenas 14 haviam adotado mais de 70% das medidas de segurança recomendadas, e 25 nem sequer responderam ao questionário. Nenhum atingiu o nível mais alto na escala de avaliação. Apenas 6% ficaram no patamar “em aprimoramento”, o segundo mais elevado. É assustador que 42% não contassem sequer com programas antivírus para proteger seus computadores e que só 8% criptografassem dados sensíveis. “Se continuar assim, os riscos aumentarão, principalmente com a evolução da inteligência artificial, que pode ser desenvolvida para quebrar códigos”, diz o advogado Renato Opice Brum, professor de Direito Digital da FAAP, em São Paulo.

Em 2023, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos criou o Programa de Privacidade e Segurança da Informação. O TCU constatou que ele não vem sendo seguido. O Brasil tem subido em rankings regionais e globais de cibersegurança, mas apenas porque passou por avanço regulatório, segundo Luca Belli, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio. “A prática é muito distante da teoria da lei.”

O governo federal pode até formular programas adequados, mas derrapa na execução. Como não há cultura de cobrança no serviço público, informações sensíveis ficam desprotegidas em bancos de dados do Estado. Consta do relatório do TCU o diagnóstico de que a origem do problema está na ausência de normas que prevejam a punição da alta administração pelas falhas constatadas. Sem uma política de segurança de dados eficiente, com atualizações constantes, o Estado brasileiro manterá a população sob risco.

Cenário incerto dificulta prever a balança comercial

Valor Econômico

Se as ameaças tarifárias de Donald Trump se confirmarem, pode haver uma onda de protecionismo, com repercussão internacional

Depois do desempenho recorde de 2023, o saldo da balança comercial encolheu no ano passado. A desvalorização do real não impulsionou o valor das exportações, que recuaram 0,8%, para US$ 337,036 bilhões, nem arrefeceu as importações, que saltaram 9%, para US$ 262,484 bilhões. O superávit comercial ficou em US$ 74,55 bilhões, queda de 24,6% em relação ao ano anterior.

Ainda assim, o superávit de 2024 foi o segundo maior da série histórica e superou as previsões do governo, após o recorde de US$ 98,9 bilhões de 2023, que interrompeu uma trajetória morna, com resultados estacionados entre US$ 50 bilhões e US$ 60 bilhões nos primeiros anos desta década. A diminuição da receita das exportações brasileiras em 2024, na comparação com 2023, é consequência do recuo de 3,6% dos preços dos produtos embarcados, já que houve aumento de 3% do volume exportado, informou a Secretaria de Comércio Exterior (Secex/Mdic).

O resultado teria sido pior não fosse o salto inédito das exportações de petróleo, que ultrapassou em valor a soja e outras commodities agrícolas e se tornou o principal produto da pauta brasileira. As exportações de óleos brutos de petróleo superaram a soja em novembro e, ao final do ano, totalizaram US$ 44,84 bilhões, com crescimento de 5,2%. Já os embarques de soja tiveram queda de 19,4%, para US$ 42,94 bilhões, em consequência da redução da safra passada e da queda dos preços internacionais. Minério de ferro, outro item tradicional, também teve queda de 2,4%, para US$ 29,84 bilhões.

A Secex ressaltou que a indústria de transformação atingiu o volume de US$ 181,9 bilhões exportados pela primeira vez desde o início da série histórica, em 1997. Entre eles, destacou a presença de bens de alta tecnologia, como aeronaves e partes, cujo salto foi de 22,7%, para US$ 4,4 bilhões em 2024, vendidos para mercados sofisticados como os Estados Unidos e a União Europeia.

Do lado das importações, chamaram a atenção as compras de bens de capital, estimuladas pela redução de preços, que somaram US$ 35,7 bilhões no ano passado, o maior patamar da série e com crescimento de 20,6% em relação a 2023. Essas aquisições foram festejadas como indicativo de aumento dos investimentos, geralmente baixos no país. O salto de 43,2% nas importações de automóveis de passageiros, em um total de US$ 8,29 bilhões, foi outro destaque e sinal do avanço dos veículos elétricos.

A significativa redução do superávit com a China, maior parceiro comercial brasileiro, para US$ 20,6 bilhões, depois dos US$ 30,8 bilhões em 2023, foi em parte equilibrada com a ampliação dos negócios com outros destinos, inclusive na Ásia. O superávit com a Argentina, maior parceiro comercial na América Latina, diminuiu de US$ 4,7 bilhões em 2023 para US$ 200 milhões no ano passado, em consequência dos problemas econômicos do vizinho. Já o déficit comercial com os Estados Unidos diminuiu para US$ 253 milhões, em comparação com US$ 1 bilhão em 2023.

Se o comércio exterior foi desafiador para o Brasil em 2024, este ano não promete ser diferente. As perspectivas estão condicionadas a fatores internos e externos. Do lado doméstico, o projetado aumento da safra agrícola favorece o crescimento das exportações de commodities e deve dar fôlego aos embarques. A produção de grãos deve crescer 8,4% em comparação com o ciclo 2023/24, com destaque para a previsão de recorde de soja, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

A desvalorização do real, com o dólar acima de R$ 6, pode favorecer exportadores ao tornar os produtos brasileiros mais competitivos no mercado externo. Contudo, esse benefício é atenuado pela inflação e pela volatilidade cambial, fatores que prejudicam o planejamento de longo prazo no comércio exterior. Apesar da previsão de desaceleração da economia doméstica e do dólar caro, as importações podem se manter em nível importante.

Mas o fator mais importante para definir o cenário será a política comercial a ser implementada por Donald Trump. Em campanha, Trump disparou várias ameaças de aumentar as taxações no comércio exterior, o que já está deixando seus parceiros preocupados. Se as ameaças se confirmarem, pode haver uma onda de protecionismo, com repercussão internacional.

O Brasil aparentemente adotou a política de esperar para ver. O governo confia nos vínculos empresariais e nos mecanismos de diálogo existentes, utilizados anteriormente. Acredita ainda não estar na linha de tiro do governo americano uma vez que responde apenas pelo sexto maior superávit dos EUA, somando mercadorias e serviços. A aposta é arriscada. De toda forma, um dos alvos mais evidentes dos americanos é a China. Como o país asiático é o principal parceiro comercial do Brasil, haverá repercussão também aqui. O país precisará reforçar sua diversificação, especialmente em mercados emergentes e parceiros como o México, onde programas tarifários abrem espaço para maior exportação de alimentos processados e outros produtos.

A dificuldade de prever o resultado da balança comercial deste ano, no entanto, revela a insegurança do governo. A primeira estimativa da Secex é que o superávit da balança comercial vai variar de US$ 60 bilhões e US$ 80 bilhões neste ano - previsão inferior à preliminar da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) de saldo positivo de US$ 93 bilhões neste ano. No relatório Focus desta semana, a previsão mais recente é de saldo de US$ 73,95 bilhões.

Emendas aviltam Orçamento em escala inédita

Folha de S. Paulo

Congresso direciona um quinto das despesas não obrigatórias; distorções incluem má alocação de recursos e clientelismo

Emendas parlamentares fazem parte do jogo político brasileiro desde a redemocratização. Despesas paroquiais incluídas por deputados e senadores no Orçamento, bem como a barganha com o Executivo para a liberação dos recursos, tornaram-se uma espécie de mal necessário para garantir a governabilidade em um país de extrema fragmentação partidária.

Elas estiveram no centro de um escândalo nacional em 1993, entre outros casos de desmandos desde então. Até meados da década passada, porém, sua participação nos gastos federais não tinha dimensão suficiente para comprometer de modo decisivo as políticas públicas. Isso mudou.

Conforme a Folha noticiou, emendas parlamentares responderam por praticamente um quinto (19,5%) das despesas discricionárias —não obrigatórias, centradas em custeio e investimento— do governo federal. Foram quase R$ 45 bilhões de um total de R$ 230,1 bilhões.

Apenas cinco anos antes, em 2019, essa proporção não chegava a 8%. A história é conhecida: o governo Jair Bolsonaro (PL), sem sustentação sólida do Congresso, cedeu fatias crescentes dos recursos da União aos parlamentares. O padrão se manteve com Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A extensão dos danos provocados por esse modelo —entre eles, suspeitas de malversação de verbas em investigação— ainda está por ser esmiuçada. Entretanto a mera exposição dos números já evidencia distorções.

Deputados e senadores alocam recursos em busca, principalmente, de votos em suas bases eleitorais. Daí o interesse desproporcional em ministérios menos prioritários, mas especializados em repasses diretos a municípios, casos de Integração Regional, Esporte e Turismo.

O primeiro recebeu mais emendas (R$ 2,1 bilhões) do que a portentosa pasta da Educação (R$ 1,5 bilhão). O segundo (R$ 1,3 bilhão), muito mais que Ciência e Tecnologia (R$ 90 milhões).

Órgãos e programas vão se convertendo em feudos parlamentares. O tradicional Calha Norte, tocado pelos militares desde os anos 1980 em áreas fronteiriças, passou a ser usado para obras de pavimentação e entregas de veículos definidas por critérios políticos. O desvio de finalidade foi tal que a iniciativa passará da Defesa para a Integração Regional.

Também já chamam a atenção de autoridades os casos de entidades, como ONGs de áreas diversas, que recebem grande volume de recursos direcionados por congressistas e por vezes nem mesmo prestam as devidas contas sobre o destino do dinheiro.

Nesse cenário, não é tranquilizador que, por imposições legais, a maior parte das emendas se destine à Saúde —R$ 24,8 bilhões em um total de R$ 55,7 bilhões em gastos discricionários. Ao contrário, é temerário que parcela tão grande das ações num setor vital seja movida a interesses do varejo partidário. E não é por acaso que a gestão do SUS virou alvo da cobiça do centrão.

O bonde da maconha no Brasil

Folha de S. Paulo

STJ mostra sensatez ao autorizar produção de cânhamo no país; regulamentação deve se basear em estudos, não em ideologia

O conservadorismo do Congresso Nacional e de parte da população condena o debate a respeito da maconha medicinal ao maniqueísmo ideológico, dificultando acesso ao remédio. Decisão recente do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema representou algum avanço, ainda que persistam dúvidas sobre os seus resultados.

A manifestação do STJ nem sequer trata da Cannabis sativa, mas da Cannabis ruderalis, conhecida como cânhamo, que tem baixo teor do componente psicoativo THC, responsável pelos efeitos alucinógenos A permissão para importar e germinar sementes dessa variedade da planta favorece a produção de canabidiol (CBD) e de fibras para a indústria.

A medida pode contribuir para reduzir preços do CBD, que tem sido prescrito para tratar epilepsia, dor crônica, depressão, esclerose múltipla, autismo, náusea por quimioterapia, doença de Parkinson e insônia.

Não se garante, contudo, que haverá impacto significativo no acesso ao medicamento. Em artigo na Folha, Martim Mattos, empresário do setor, argumenta que a matéria-prima hoje importada no país representa apenas 10% dos custos de produção e que a maior barreira está na escala, vale dizer, na baixa demanda criada pelos médicos ao raramente prescreverem o canabidiol.

No Brasil, órgãos da classe erguem obstáculo à inovação. O Conselho Federal de Medicina, movido mais por preconceito, só chancela a prescrição de CBD para raras epilepsias, como síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut.

Já o Judiciário tende a seguir países menos refratários. Foi assim com a tardia decisão do Supremo Tribunal Federal, em junho, que estipulou limite de 40 gramas de maconha para diferenciar usuários de traficantes —invadindo, assim, a seara de Congresso. Este, por sua vez, ameaça com o disparate de incluir a criminalização das drogas na Constituição.

Trata-se de questão de princípio. Dificultar a oferta de medicamentos com benefícios comprovados é descabido.

E mesmo o uso da planta por adultos para fins psicotrópicos sem recomendação médica deveria ser regulamentado com base na liberdade individual. Não é papel do Estado decidir sobre o que cada um faz com o próprio corpo.

De todo modo, produzir estudos científicos sobre aplicações clínicas da cannabis e sobre seu potencial agronômico, como planeja a Embrapa, fornecerá base ainda mais sólida para descarrilar o bonde de preconceitos que ainda atravanca no país os benefícios para a saúde e a economia que a maconha possa trazer.

Regulação das redes requer prudência

O Estado de S. Paulo

É legítimo pugnar pela regulação das ‘big techs’, mas com respeito às competências dadas pela Constituição, e não por voluntarismo dos que se arvoram em fiscais de discurso

A racionalidade nunca pautou o debate sobre a regulação das redes sociais no Brasil. E o que já era ruim piorou desde o anúncio das mudanças na política de moderação da Meta feito pelo CEO da empresa, Mark Zuckerberg, no dia 7 passado. De lá para cá, o que se vê é uma confusão institucional causada pela politização exacerbada do tema, o que só presta para atender aos interesses do governo Lula da Silva e do Supremo Tribunal Federal (STF) no que concerne à posição do Estado em relação às big techs, e não para iluminar uma discussão que deve ser travada primordialmente no Congresso.

De antemão, é oportuno relembrar a posição deste jornal sobre a regulação das redes sociais. O Estadão defende a constitucionalidade do Marco Civil da Internet, sobretudo de seu art. 19, que estabelece que os provedores de internet só podem ser responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo publicado por terceiros se houver descumprimento de ordem judicial para sua exclusão. Trata-se de uma lei madura, equilibrada, que a um tempo preserva as liberdades constitucionais e assegura aos eventuais ofendidos o direito à reparação. Numa democracia, a liberdade de expressão com responsabilidade sempre há de prevalecer.

Dito isso, bastou Zuckerberg fazer seu anúncio para que um espírito censório disfarçado de zelo se manifestasse por atos e palavras de membros do governo, a começar por Lula, e do STF. Comecemos pela impertinência do Executivo.

Como se não vivêssemos em um país acossado por problemas sociais e econômicos muito mais urgentes do que a forma como Zuckerberg conduz seus negócios privados, Lula achou que era o caso de convocar uma reunião de “emergência” com alguns de seus ministros e com a Advocacia-Geral da União (AGU) a fim de “estruturar a reação do governo à decisão da Meta”, conforme apurou o Estadão.

Ora, o governo não tem de estruturar reação alguma, até porque as medidas anunciadas pela Meta ainda não estão em vigor no Brasil. Mas os petistas, como é notório, sempre foram afeitos ao “controle da narrativa”, chamemos assim, o que, na prática, significa usar e abusar de todos os instrumentos de que dispõem quando estão no poder para impor suas versões dos fatos e limitar a circulação de críticas, especialmente a Lula. Recorde-se que o PT sempre pugnou pelo “controle social da mídia”, o que nada mais é do que um eufemismo para a censura ao jornalismo profissional por órgãos do Estado. Como jamais houve apoio para a aprovação desse desvario liberticida, hoje a censura vem empacotada como “embate político” nas redes sociais.

Nesse afã, até vídeos claramente satíricos com críticas a membros do governo – como foi o caso de um vídeo envolvendo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e sua notória ânsia por aumentar a arrecadação – são tratados como “desinformação”. Justificando que o governo não poderia “compactuar com a barbárie” que, em sua visão, ocorre nas redes sociais, o advogado-geral da União, Jorge Messias, pediu – e conseguiu – que o tal vídeo fosse retirado do ar pela Meta. É esse o mundo sonhado pelos petistas quando vêm a público posar como defensores das leis e da democracia.

O ministro do STF Alexandre de Moraes, por sua vez, também não demorou para se imiscuir onde não deveria. No dia seguinte ao anúncio feito por Zuckerberg, Moraes veio a público com um discurso carregado em tintas políticas para assegurar que tem “absoluta convicção” de que o STF vai “regular as redes sociais” e que estas “não são terra sem lei” no Brasil, de resto um truísmo. Se há necessidade de regulação, e há, obviamente ela deve ser feita pela sociedade por meio de seus representantes eleitos, e não pelo STF. Se o Congresso não o fez até agora, é porque o tema ainda não está politicamente maduro.

Resta claro que há uma coincidência, para dizer o mínimo, entre os interesses do governo Lula e do Supremo para vilanizar as big techs, como se estivéssemos diante da maior ameaça à democracia na história recente. É perfeitamente legítimo defender a regulação das redes sociais, mas isso deve ser feito com prudência e, principalmente, respeito às competências estabelecidas pela Constituição, e não por voluntarismo dos que se arvoram em fiscais de discurso.

Um criminoso na Casa Branca

O Estado de S. Paulo

Trump será o primeiro condenado a presidir os EUA, num caso que ilustra como os demagogos abusam da vontade do povo expressa nas urnas para violar a vontade do povo expressa na lei

Na última sexta-feira, a poucos dias da posse de Donald Trump, um juiz de Nova York, Juan Merchan, manteve uma condenação criminal do júri ao presidente eleito dos EUA, tornando Trump o primeiro condenado a ocupar a Casa Branca.

Contudo, foi uma sentença estranha em tempos estranhos, pois Trump foi “incondicionalmente” dispensado de qualquer pena, já que será em breve o presidente dos EUA. Eis aí o dilema que populistas como Trump representam para o Estado Democrático de Direito: a lei, expressão da vontade popular, deveria valer para todos, mas esses líderes autoritários invocam a vontade popular expressa nas urnas para se tornarem inimputáveis.

Há um ano, Trump respondia a quatro processos criminais. Em maio foi condenado por unanimidade por 12 jurados em Nova York por 34 acusações de falsificação de registros contábeis para disfarçar pagamentos durante as eleições de 2016 a uma atriz pornô para que mantivesse silêncio sobre um alegado relacionamento sexual. As condenações deveriam acarretar desde multas até liberdade condicional – e, no limite, quatro anos de prisão. Um levantamento do jornal New York Times revelou que, de 30 condenações por falsificação de registros em Nova York na última década, nenhum outro réu recebeu uma dispensa incondicional.

Esse não foi o único passe livre da Justiça conferido a Trump. O republicano foi indiciado na Flórida por dispor ilegalmente de documentos confidenciais e no Distrito de Columbia pelas suas tentativas de subverter os resultados das eleições de 2020. Se tivesse perdido as eleições em novembro, teria sido julgado por ambas as acusações e, se condenado, também poderia ir para a prisão. Mas as acusações foram dispensadas em razão de uma regra do Departamento de Justiça de que um presidente em exercício não pode ser processado. De resto, numa decisão que deve ter feito os Pais Fundadores dos EUA se revirarem no túmulo, a Suprema Corte determinou que ex-presidentes da República não podem ser investigados e julgados criminalmente por seus atos no exercício do cargo.

Tudo isso obviamente é inconciliável com a noção basilar do Estado de Direito segundo a qual ninguém está acima da lei. A incompatibilidade ficou evidente nos esforços do juiz Merchan por resolver a quadratura do círculo.

Trump insiste que não fez nada de errado e em seu perfil nas redes sociais trombeteou que a sentença “prova que não há um caso”. Mas não foi o que disse a Justiça. Seus advogados tentaram bloquear a sentença nas cortes de apelação e na própria Suprema Corte, alegando que um presidente eleito gozava da mesma imunidade de um presidente em exercício, mas o pedido foi rejeitado em todas essas instâncias.

Explicitamente nas falas de Trump e implicitamente nos recursos estava a ideia de que ele fora absolvido pelo “veredicto do povo” dado nas eleições de novembro. Mas as urnas não podem apagar o legítimo veredicto do povo (sem aspas) dado pelo júri. Merchan não poderia se furtar a esse veredicto sem rasgar a toga, mas reconheceu ser impraticável um presidente exercer suas funções por trás das grades.

Trump, portanto, não será penalizado, mas ainda assim é um criminoso condenado. A sentença tenta preservar as aparências de que há alguma justiça, mas demonstrou que ela efetivamente não é igual para todos.

Como todo populista à direita, Trump se vangloria de ser o paladino da lei e da ordem. Mas, no que promete ser mais um teste de estresse do Estado Democrático de Direito de seu país, ele já anunciou que pretende empregar seus poderes presidenciais para perdoar os condenados pelo infame assalto ao Capitólio no 6 de Janeiro, passando a mensagem de que a violência política é aceitável se praticada a favor de quem está no poder.

“Sem precedentes” é uma expressão que se tornou corriqueira ao longo da carreira política de Donald Trump. Um ex-presidente condenado por crime foi sem precedentes, e a posse de um presidente condenado por crime será sem precedentes. Agora, a condenação sem pena ilustra mais uma vez a tensão sem precedentes entre o Estado Democrático e o Estado de Direito provocada por um presidente que, contra todos os anseios dos fundadores da República americana, quer governar como um rei.

Contra a sensação de impunidade

O Estado de S. Paulo

MP e Justiça precisam agir com mais rigor contra abusos cometidos por maus policiais

Alvo de críticas do governador Tarcísio de Freitas, os casos de abuso policial parecem ainda não ter sensibilizado na mesma medida o sistema de Justiça paulista. Ao menos é isso que se pode inferir de dados sobre denúncias e condenações de agentes de segurança envolvidos em ações suspeitas.

Reportagem do Estadão mostrou que até o dia 10 de dezembro de 2024 apenas 120 denúncias contra policiais militares (PMs) foram oferecidas pelo Ministério Público (MP), de um total de 2.308 inquéritos. Significa dizer que somente 1 a cada 19 casos de condutas questionáveis chegou à Justiça. E, quando vai à análise de um juiz, a violência policial tem índice de 2% de condenação, segundo pesquisa de mestrado da advogada Debora Nachmanowicz apresentada à USP.

De acordo com especialistas em segurança pública ouvidos pela reportagem, estão por trás desses números a má qualidade das investigações – não raro com provas apresentadas apenas pelos PMs –, a dificuldade de obtenção de evidências e de coleta de depoimentos de testemunhas e um controle externo insuficiente da atividade policial pelo MP.

E tudo isso vem à luz justamente em meio a reações da sociedade e do governo estadual à escalada da letalidade policial e a uma série de ações truculentas flagradas em vídeo. São cenas como a de um policial que arremessa um motociclista de uma ponte e a de jovem estudante de medicina desarmado morto à queima-roupa após desferir um tapa contra o retrovisor de uma viatura – neste caso, dois PMs foram denunciados por homicídio.

Tarcísio ajustou o discurso, admitiu que errou ao criticar as câmeras corporais, disse que abusos não serão tolerados e aventou a necessidade até de revisão dos protocolos da PM. É um recado contra os malfeitos daqueles que são pagos para proteger os cidadãos, mas insuficiente enquanto mantiver um ex-agente da Rota entusiasta da violência policial como Guilherme Derrite no cargo de secretário de Segurança Pública.

Mas não cabe cobrar apenas o governador. O MP e a Justiça também devem fazer sua parte, a começar com a demonstração de total repúdio à violência policial. O MP precisa se mostrar mais atuante, enquanto a Justiça deve agir com rigor no cumprimento de suas funções. E absolvições sumárias sob o argumento da legítima defesa, como no caso dos primeiros PMs denunciados por suspeita de excessos na Operação Escudo, no início do segundo semestre de 2024, que deixou rastro de sangue na Baixada Santista, não parecem um bom sinal.

Nesse contexto, não à toa a Defensoria Pública tem se mostrado bastante atuante. É desse órgão uma série de questionamentos feitos ao Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o uso de câmeras corporais por PMs paulistas.

Assim como o chefe do Executivo envia uma mensagem dura de rejeição às más condutas dos poucos e maus policiais da corporação, também se espera mais protagonismo e, sobretudo, mais ação enérgica das demais instituições de Estado. Caso contrário, a sensação de impunidade alimentará um círculo vicioso de violência no qual as instituições não fazem seu trabalho a contento e em que os inocentes sempre serão as maiores vítimas.

Democracia exige vigília permanente

Correio Braziliense

Não se pode esmorecer na defesa da democracia. E mais: o combate efetivo ao autoritarismo passa obrigatoriamente pelos campos digitais

Considerada um dos marcos da redemocratização do Brasil, a eleição indireta de Tancredo Neves para a Presidência da República completa 40 anos em um momento em que o apelo feito por ele pela manutenção da vigilância democrática faz todo o sentido. "Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão", convocou o político mineiro, em 15 de janeiro de 1985, após receber 480 votos do Colégio Eleitoral, contra os 180 concedidos a Paulo Maluf. 

Nada tão atual. A revelação, por parte da Polícia Federal (PF), de uma meticulosa trama golpista costurada durante o governo Jair Bolsonaro para mantê-lo no poder é a prova de que não se pode esmorecer na defesa da democracia. E mais: o combate efetivo ao autoritarismo passa obrigatoriamente pelos campos digitais.

A investigação da PF mostra que, desde o primeiro ano do governo, existia um núcleo dedicado a produzir, divulgar e amplificar notícias que construíssem um ambiente que favorecesse a ruptura democrática. E as redes sociais foram o principal canal de escoamento dessa estratégia. 

Os ataques sistemáticos ao sistema eleitoral ajudaram, por exemplo, a manter centenas de pessoas acampadas em frente aos quartéis quando Bolsonaro perdeu para Lula no segundo turno de 2022. Do QG do Exército em Brasília saíram muitos dos que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, uma semana depois da posse do petista.

Meses antes, Bolsonaro deu a seguinte declaração ao criticar a forma como o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), conduzia o inquérito das fake news: "Se eu contar uma mentira para você agora, você acredita se quiser. Ou, se você não gostar, você nunca mais fala comigo, você nunca mais entra na minha página". Além de destoar do que se espera de um chefe do Executivo, a declaração joga para o cidadão a responsabilidade de se pautar pela verdade. Também exime quem mantém as praças públicas da atualidade, as redes sociais, da responsabilidade de barrar informações que levem aos extremismos. 

Nesse sentido, assusta o mundo e demanda reações enérgicas dos governos democráticos as recentes movimentações das big techs que, sob o pretexto de garantir a liberdade de expressão, podem favorecer a disseminação de discursos de ódio, teorias conspiratórias e outras expressões do radicalismo. O governo brasileiro acerta ao, diante do anúncio do fim do programa de checagem feito pela Meta, exigir que "cada país tenha a sua soberania resguardada". Mas Lula deve enfrentar dificuldades em ao menos uma das frentes traçadas para conter os expoentes da tecnologia: sensibilizar um Legislativo com integrantes adeptos da polarização nas redes sobre a importância de aperfeiçoar a legislação para barrar as ameaças modernas à democracia.

Em artigo publicado, na última sexta-feira, neste Correio, José Sarney — que assumiu a Presidência em razão da morte de Tancredo  Neves —, escreveu que a democracia "é o melhor regime, porque é capaz de defender-se e vencer os que contra ela investem cometendo crimes". Tem como definição máxima, segundo ele, ser o regime da liberdade, que é a garantia da dignidade humana. Não se trata, portanto, de uma liberdade que privilegie interesses de oligopólios empresariais ou de determinadas correntes políticas. É liberdade pautada para o bem coletivo. E, por isso, merece ser defendida e vigiada a todo tempo.

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