sábado, 27 de dezembro de 2025

O avesso da esperança. Por Flávia Oliveira

O Globo

Não é possível que duas crianças feitas órfãs durante a celebração do nascimento de Jesus não nos façam lutar por um país em que mães e filhos tenham direito à convivência, à vida, ao futuro

Na noite em que boa parte do chamado Ocidente celebrava, em comunhão, o nascimento de um menino, uma mãe morreu no Brasil. Tainara Souza Santos, vendedora autônoma, 31 anos, dois filhos, partiu na noite de Natal após 25 dias de internação decorrente da brutalidade que ameaça meninas, jovens e mulheres no país. Foi vítima de feminicídio perpetrado por um homem com quem teve breve relacionamento, mas que dela sentia-se dono, senhor da vida, autor da morte. O assassino, Douglas Alves da Silva, 26 anos, atropelou e arrastou Tainara por um quilômetro da Marginal Tietê, em São Paulo, no penúltimo dia de novembro. Ela teve as duas pernas amputadas, passou por cinco cirurgias e, no início desta semana, parou de responder às medicações.

Num país em que a longevidade feminina alcançou 79,9 anos no ano passado, Tainara teve a existência abreviada pelo estado permanente de violência contra a mulher, traço nacional. Na tábua de mortalidade que o IBGE divulgou na véspera do crime que a levaria à morte, soubemos que uma brasileira com 30 anos em 2024 teria a possibilidade de viver mais 51 anos e meio. Tainara festejaria oito décadas; veria o filho, hoje com 12 anos, e a filha, com 7, crescerem; talvez conhecesse netos e bisnetos. Provavelmente, enterraria a própria mãe, seguindo a ordem natural que à sua família foi negada. Numa postagem em rede social, dona Lúcia Aparecida Souza da Silva agradeceu às mensagens de apoio e à corrente de fé e solidariedade pela filha:

— É uma dor enorme. Mas acabou o sofrimento e, agora, é pedir por justiça — resumiu.

O Brasil é um país tão violento quanto religioso. De morte matada, caem mais de 40 mil por ano. O Censo 2022 confirmou a predominância cristã: 56,7% da população se declaram católicos; 26,9%, evangélicos. A noite de Natal é das mais importantes para as igrejas; festeja o nascimento de Jesus Cristo. Na primeira Missa do Galo que celebrou no pontificado iniciado em maio passado, o Papa Leão XIV disse que o Natal “é festa da fé, da caridade e da esperança”:

— Deus envia um bebê, para que seja palavra de esperança perante a dor dos miseráveis. Ele envia um indefeso, para que seja força para se levantarem — completou o sucessor do Papa Francisco.

Se o nascimento de uma criança é sinônimo de esperança e força, o feminicídio consumado de uma mãe na noite de Natal só pode ser a materialização da desilusão e do fracasso. Entre as imagens mais bonitas, simbólicas e poderosas da fé cristã está a Sagrada Família: o bebê Jesus; Maria, a mãe; José, o companheiro tornado pai pelo afeto, não por DNA. Tainara não pode acompanhar o crescimento dos filhos que gerou, porque um homem escolheu matá-la a vê-la livre. Pelo ódio, fez duas crianças órfãs; em vez de luz, trevas.

Um provérbio africano afirma que “quando morre um ancião, uma biblioteca arde”. Vão com os mais velhos saberes, conhecimentos, ritos de toda uma família, uma comunidade, um povo. Neste dezembro, o Brasil perdeu Haroldo Costa, ator, escritor, cineasta, produtor, especialista em samba e carnaval, aos 95 anos; e, aos 98, Mãe Carmen do Gantois, ialorixá herdeira Mãe Menininha. Ele, um griô; ela, sacerdotisa de um dos mais tradicionais terreiros de candomblé do Brasil, na capital baiana. Partiram dois guardiões de memórias e ritos, de encarnação longeva, que, ainda assim, deixam órfão o país.

Enquanto reconhece uns mais velhos, o Brasil pouco se dói contra a morte precoce — e aos milhares — de filhos e filhas. A esperança de vida dos homens, atualmente em 73,3 anos, é seis anos inferior à das mulheres, em razão da perda de adultos jovens por causas externas, sobretudo homicídios e acidentes de trânsito. Na faixa de 20 a 24 anos, a chance de um rapaz não chegar aos 25 é quatro vezes maior que a de uma moça na mesma idade. Trata-se de uma máquina produtora de mães enlutadas, algumas delas convertidas pela dor em ativistas por justiça e direitos. Pelo feminicídio, agora também fabrica órfãos.

O território foi desde sempre área de risco para meninas e mulheres. A comprovar, estão as estatísticas de agressões, assédio, violência sexual, dentro ou fora de casa; quase sempre, por um homem conhecido. Às mazelas não letais, soma-se a epidemia de assassinatos de mulheres, precisamente por serem quem são. No ano passado, foram quase 1.500 vítimas. A chaga atravessou 2025 e, em plena noite de Natal, levou Tainara.

O gosto amargo da ceia deste ano tem de levar autoridades, sociedade civil, população e, principalmente, homens de boa vontade a se erguerem contra o inaceitável, o intolerável, o inadmissível. Não é possível que duas crianças feitas órfãs durante a celebração do nascimento de Jesus não nos façam lutar por um país em que mães e filhos tenham direito à convivência, à vida, ao futuro.

 

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