quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Opinião do dia: Fernando Henrique Cardoso

Li outro dia uma expressão de que gostei: um “centro radical”. Radical em não aceitar o arbítrio e, portanto, em respeitar a Constituição. Ah, dirão, ela está obsoleta. Então que se mude o que pereceu, mas por meio de emendas que o Congresso aprove, mantidas as cláusulas pétreas. Ser radical de centro implica ser firme na preservação dos direitos civis e políticos e propor uma sociedade não excludente e justa. Sem conservadorismo.

A onda conservadora concentra-se principalmente nos costumes, na cultura. O centro radical prega o respeito à diversidade e sua valorização, que é constitutiva da democracia, embora se recuse a transformar a diferença em expressão única do que é positivo. Opõe-se à violência contra os que têm preferências, sexual ou sobre o que seja, divergentes do padrão e sustenta os direitos das minorias. O mesmo vale para a preferência religiosa: há que respeitá-la integralmente, mesmo quando diversa da crença dominante ou quando composta de fragmentos de várias crenças ou quando for nenhuma. O que vale para as crenças vale com a mesma força para as ideologias, desde que elas aceitem não ser a expressão única da verdade e da moralidade.

A radicalidade de um centro progressista não se limita, contudo, aos aspectos comportamentais. Propor soluções econômicas antiquadas, a exemplo do controle estatal dos setores produtivos e do desprezo pelo equilíbrio fiscal, como setores da esquerda fazem, não somente é anacrônico, como também contraria os interesses do povo. Como oferecer emprego e melhorar a renda dos mais pobres propondo uma política econômica que leva à estagnação e ao desemprego, como se viu recentemente com a “nova matriz econômica”."

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Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República. ‘Paciência histórica’, O Estado de S. Paulo, 4/11;2018.

Míriam Leitão:Erros e improvisos do novo governo

- O Globo

Governo fala dos seus planos antes de formulá-los e já colheu a primeira derrota no Senado, que concedeu reajuste ao Judiciário

O novo governo parece estar sempre improvisando em cena aberta. Ontem o presidente eleito Jair Bolsonaro falou em acabar com o Ministério do Trabalho, depois em dividi-lo em três partes. Na véspera, o futuro ministro da Economia falou em dar uma “prensa” no Congresso e assim a administração nem começou e já colheu a derrota da aprovação do reajuste do Judiciário. Toda transição pode ter idas e vindas, mas não se pode anunciar um plano de governo antes de formulá-lo.

Na campanha eleitoral houve pouco esclarecimento sobre o programa do candidato que venceu as eleições. O que foi divulgado cumpria a formalidade da legislação eleitoral, mas continha algumas ideias que têm sido de fato desenvolvidas. O ataque à faca sofrido pelo candidato interrompeu e silenciou a campanha. Depois, o pouco falar foi parte da estratégia para não perder eleitores. Isso fez com que o país escolhesse sem um adequado conhecimento das ideias da candidatura. Bolsonaro se elegeu em parte pelo antipetismo, em parte pela ilusão de solução simples para problemas complexos, como a liberação de armas para superar a crise na segurança.

Nesses dias pós-eleitorais tem havido uma sucessão de ideias lançadas, e das quais se recua logo depois. Ontem, o próprio Bolsonaro afirmou que acabaria com o Ministério do Trabalho, depois que o dividiria em três. O problema é que o Brasil está enfrentando neste momento a pior crise do seu mercado de trabalho, com 12,5 milhões de desempregados e 4,8 milhões de pessoas que integram o grupo do desemprego por desalento. Neste ponto de fragilidade, um dos riscos de uma mudança atabalhoada é enfraquecer a fiscalização contra o trabalho análogo à escravidão e o trabalho infantil. A ideia de que essa fiscalização fique dentro de um Ministério da Família pode simplesmente não dar certo. É arriscado também desorganizar programas sociais como o seguro-desemprego.

Merval Pereira: Virando a página

- O Globo

O país tem que ganhar produtividade com os avanços tecnológicos, que precisam ser estimulados pelo novo governo

O primeiro a sacar que o ano de 1968 terminou no Brasil no seu cinquentenário foi Elio Gaspari. “(...) Nesta, (eleição) derrubou peças de dominó. (...) Talvez o ano de 1968 tenha terminado no Brasil durante seu cinquentenário. (A bandeira “Seja Marginal, Seja herói”, de Hélio Oiticica, é de 68.)”.

Na sequência, o economista Carlos Ivan Simonsen Leal, presidente da Fundação Getulio Vargas, em palestra na Brazilian-American Chamber of Commerce, em Nova York, disse que o novo governo eleito representa uma ruptura com a mentalidade que direita e esquerda sustentavam até então, com origens em 1968.

“Há uma esquerda e uma direita que pensam que nós estamos em 1968, que o melhor negócio do mundo é uma siderúrgica. E não é a siderúrgica. O lucro anual da Google compra uma siderúrgica”, diz. “Por que não somos capazes de fazer um Google? Inovação, mercado de capitais e insuficiência de crédito”.

Zuenir Ventura, autor do icônico livro “1968, o ano que não terminou”, lembra que os estudantes de 1968 queriam fazer uma revolução política, para mudar o mundo, e conseguiram, sem querer, fazer uma fundamental revolução dos costumes. Saíram daí movimentos sociais como o feminismo, o orgulho gay, o poder dos negros.

Mas a disputa direita-esquerda continuou a existir e, no Brasil, depois da ditadura militar, passou a ser feita pelo voto popular, um tanto anacronicamente, como ressalta Simonsen, cuidando do social de maneira superficial, descuidando do crescimento econômico que possibilitaria superar as enormes desigualdades sociais.

Do meio da disputa entre PT e PSDB, que dominou os últimos 25 anos da política brasileira, participava o PMDB, que, mesmo sem disputar uma eleição presidencial, é o partido mais assíduo no governo federal desde a redemocratização do país. Teve ministérios em todas as gestões, entre os mandatos de José Sarney e Dilma. Mas até isso acabou com o tsunami que devastou os velhos caciques da política brasileira.

Ascânio Seleme: Forças e poderes

- O Globo

O presidente eleito Jair Bolsonaro dividiu sua estadia em Brasília em visitas aos três poderes civis e às três forças militares. A visita ao Congresso foi institucional, e Bolsonaro cumpriu adequadamente seu papel de novo líder da nação. Com a Constituição na mão, disse que o documento é o norte da democracia. Verdade que não cabia manifestação distinta, todos estavam ali para comemorar os 30 anos da Carta.

Reuniu-se protocolarmente com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli. As imagens do encontro e, depois, na rápida fala à saída, mostram um Bolsonaro tenso, olhar fixo no horizonte. Toffoli recomendou diálogo permanente do presidente eleito com o Legislativo e o Judiciário. E Bolsonaro respondeu com grandeza, concordou com o ministro e disse que vai procurá-lo antes de tomar algumas iniciativas, em favor do entendimento. No fim do seu périplo pela capital, foi ao presidente Michel Temer para outro encontro formal.

Menos protocolares e mais animadas foram as visitas aos chefes militares. O primeiro a receber o presidente eleito foi o ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, que ofereceu um almoço a Bolsonaro na terça-feira. No mesmo dia, visitou os comandantes da Marinha, almirante Eduardo Bacellar Leal Ferreira, e do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Ontem, ele tomou o café da manhã com o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Nivaldo Luiz Rossato. Nenhum dos três tem status de ministro.

William Waack: Depois da onda

- O Estado de S.Paulo

Não há muito tempo para Bolsonaro e equipe aprenderem a governar

Não havia muita dúvida que uma campanha improvisada, intuitiva, com propostas genéricas em vários campos e muito voluntariosa – a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro – produziria um começo de governo idem. E o que parecia tão fácil de ser dito (a promessa de delegar vastas áreas a ministros competentes e do ramo) seria tão difícil de ser feito.

Não havia muita dúvida ainda que personalidades, digamos, exuberantes na expansão de seus campos de atuação e imbuídas de muito zelo no exercício de suas ampliadas atribuições (Paulo Guedes, Hamilton Mourão, Sérgio Moro, Eduardo Bolsonaro) provocariam um constante vai e vem do que pode não pode, vale não vale, disse não foi dito. Especialmente (não é o caso de Moro) quando planos de governo ainda parecem em estágio inicial de elaboração.

Não havia muita dúvida também que outro elemento muito vantajoso na hora de conquistar corações e mentes de eleitores – a promessa de refutar o toma lá dá cá, escapando do varejo da politicagem – retardaria a montagem do governo e as articulações com parlamentares. É inegável que o conhecimento interno da máquina pública, dominado por partidos estruturados, nunca é inútil.

Eugênio Bucci: Do tiririquismo ao bolsonarismo

- O Estado de S. Paulo

Antes de ser expressão de um projeto, Bolsonaro é produto de um protesto cego e selvagem

No dia seguinte ao segundo turno, na segunda-feira 29 de outubro, o primeiro dos três editoriais do Estado, Salto no escuro, apontou um fenômeno intrigante na cena política: “Até pouco tempo atrás, o ex-capitão do Exército era apenas um candidato folclórico, desses que de tempos em tempos aparecem para causar constrangimentos nas campanhas - papel cumprido mais recentemente pelo palhaço Tiririca, aquele que se elegeu dizendo que ‘pior do que está não fica’. Pois a ‘tiriricarização’ da política atingiu seu ápice, com a escolha de um presidente da República que muitos de seus próprios eleitores consideram completamente despreparado para chefiar o governo e o Estado”. A eleição de Jair Bolsonaro representaria, portanto, o arremate de um momento histórico em que “a tiriricarização da política atingiu o seu ápice”.

Mas como interpretar a “tiriricarização”? Num primeiro fôlego, poderíamos entendê-la como a mudança de estado de uma travessura impertinente que começa a se levar a sério. Por obra da “tiriricarização”, o velho voto de protesto, que já levou as massas a sufragar o macaco Tião, no Rio de Janeiro, passa a adquirir um certo conteúdo menos efêmero, menos piadista - e mais, por assim dizer, ideológico.

A operação mental aí implicada parece um tanto ilógica, mas ocorre de fato. Em São Paulo pudemos vê-la de perto com aquele nanico agigantado, barbudo e calvo cujo nome era Enéas. Aos poucos, ele foi se metamorfoseando. De um tipo meramente farsesco, hilário, determinado a expor, com sua extravagância vocal, o ridículo da política, Enéas adquiriu a identidade de liderança de extrema direita, com inclinações bélicas que chegavam ao elogio da bomba atômica. Elegeu-se com votações assombrosas de gente que o levava a sério e se impôs como um puxador de votos.

José Serra: Um bom conselho

- O Estado de S. Paulo

A implantação do CGF deveria merecer o apoio das principais forças políticas do Congresso

Estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 2016, analisou a gestão fiscal e as instituições existentes em 16 países, incluindo o Brasil. Uma das conclusões da pesquisa deveria entrar na agenda do Congresso: a inexistência de um conselho para monitorar as contas públicas das três esferas de governo compromete a performance da política fiscal brasileira.

A crise fiscal no Brasil, sobretudo nos Estados, é alarmante. Segundo o Banco Mundial, tudo o mais constante, cerca de dez Estados estarão insolventes em 2021, se prevalecer o ritmo lento de recuperação econômica. A aritmética é simples: em 2017, as despesas incomprimíveis, determinadas por lei, passam de 100% das receitas líquidas em cinco Estados e de 90% em quase todos os governos estaduais!

Ironicamente, apesar de boa parte das receitas e despesas públicas no Brasil ser gerida pelos governos subnacionais - nesse critério, somos um dos países mais descentralizados do mundo -, a OCDE não classifica a Federação brasileira como descentralizada.

Nossos governos estaduais e municipais, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos e no Canadá, não gozam de autonomia completa para conduzir sua política fiscal: não criam regras próprias; não podem emitir títulos; não podem alterar bases de cálculo de tributos; e não têm discricionariedade para administrar suas despesas. No Brasil é o governo central que estabelece as regras do jogo. A Constituição federal, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o Código Tributário Nacional e a Lei Geral dos orçamentos públicos são normas de competência exclusiva da União.

Zeina Latif*: O buraco é mais embaixo

- O Estado de S.Paulo

Próximo ministro da Justiça terá desafios urgentes, ainda que longe dos holofotes

Para muitos, a indicação de Sérgio Moro para a pasta da Justiça foi um tremendo acerto do ponto de vista político.

A classe jurídica, no entanto, parece mais preocupada. Além de apontarem para o risco de questionamentos à Lava Jato, preocupam-se com a ênfase ao combate à corrupção, que tem sido bem encaminhado, em detrimento de se priorizar outros temas urgentes, como a segurança pública.

Oscar Vilhena aponta que um grande desafio será reformar as Polícias Civil e Militar, e o sistema penitenciário. São agendas difíceis que esbarram na esfera dos governadores.

Na intersecção entre economia e direito, mais desafios. A insegurança jurídica no País é grande e prejudica o funcionamento da economia, particularmente os investimentos e o mercado de crédito. O resultado é menor produtividade, crescimento e geração de empregos.

É grande a lista de decisões controversas do Judiciário e de órgãos de controle, o que exigirá do titular da Justiça o entendimento de temas de direito econômico e capacidade de interlocução com outras instâncias de Poder.

Roberto Dias: Um governo de linguagem de sinais

- Folha de S. Paulo

Sem projetos expostos às claras, país agarra-se a símbolos

É preciso bem mais do que as habilidades das intérpretes de libras que acompanham Jair Bolsonaro para tentar entender o que vai na cabeça do novo presidente.

Na campanha, ele passou ao largo dos debates e respondeu a pouquíssimos questionamentos sobre plano de governo. Vitorioso, deu entrevistas curtas, desautorizou assessores e engatou interminável vaivém.

Sem que os projetos sejam expostos às claras, o país agarra-se a sinais. Cada gesto logo vira indicador de alguma possível política vindoura. É em torno desses símbolos que tem girado o debate público no Brasil.

Sinais são faltam. Alguns representam marketing em estado bruto, como a arminha com as mãos na tribuna da Câmara, depois transformada em coraçãozinho, ou o café da manhã com pão e leite condensado.

Bruno Boghossian: ‘Prensa’ invertida

- Folha de S. Paulo

Com aumento, Supremo e Congresso dão uma 'prensa' em Bolsonaro

O Supremo e o Congresso deram uma "prensa" no governo Jair Bolsonaro. Em menos de uma hora de discussão, senadores aprovaram o aumento dos salários dos ministros do tribunal e penduraram uma conta de R$ 1,5 bilhão por ano para a União a partir de 2019.

A bomba orçamentária foi embrulhada para presente horas depois que o presidente eleito criticou a medida. Na manhã desta quarta (7), Bolsonaro havia dito que não era o momento de aprovar novos gastos. "O Judiciário, em um gesto de grandeza, com toda a certeza não fará tanta pressão assim por esse aumento de despesa", declarou.

Cenas explícitas da política provaram o contrário. O presidente do STF atuou pessoalmente na articulação. Dias Toffoli ligou para senadores e reforçou o compromisso de derrubar o auxílio-moradia em troca do aumento —embora haja razões de sobra para acabar com o privilégio, sem qualquer recompensa.

Vinicius Torres Freire: A revolução de Bolsonaro, no papel

- Folha de S. Paulo

Extinção do Trabalho é outro sinal do plano de refundar o Estado, que pode afundar em ambição

Jair Bolsonaro pretende fazer uma enorme reorganização administrativa do governo. Em tese e em linhas gerais, muito nebulosas, essa mudança seria o primeiro passo de uma alteração profunda no Estado.

A extinção de ministérios, por vezes conversa caricata e superficial, pode ser apenas isso ou pretensão de algo muito mais sério, tanto revolucionário como desastroso. O fim do Ministério do Trabalho é mais um sinal dessa ambição.

A reforma Bolsonaro seria uma reviravolta no modo de fazer política macroeconômica, nos impostos, no comércio exterior, nas políticas industriais e na seguridade social e assuntos relacionados (Previdência, assistência social, proteção ao trabalhador).

Para começar, pode dar em desordem administrativa, gasto de energia em reorganização do governo e sobrecarga gerencial e política de pelo menos um superministro. Diante da urgência de tratar uma economia na UTI, vai dar para fazer tudo, logo de cara?

Clóvis Rossi: Há algo a aprender do pleito americano

- Folha de S. Paulo

Uma das lições: a retórica agressiva nem sempre vence

Parte da mídia internacional costuma tratar Jair Bolsonaro como uma espécie de Donald Trump tropical. De minha parte, vejo mais diferenças do que semelhanças, a começar pela formação de cada um deles:

Trump é bacharel em Economia pela Universidade da Pensilvânia, enquanto Bolsonaro admite não entender uma vírgula do assunto. Não tem formação universitária nem chegou a completar os cursos típicos da carreira militar.

Outra diferença essencial: Trump é um bem sucedido homem de negócios, ao passo que Bolsonaro não administrou nem sequer uma barraquinha de açaí.

É óbvio, portanto, que o kit mental e cultural de cada um é necessariamente diferente.

Feita a ressalva, o fato de que Bolsonaro confesse incontida admiração por Trump permite tentar ver se há lições que se apliquem ao Brasil do resultado das eleições legislativas desta terça (6) nos EUA.

Sempre cabe a observação obrigatória de que são dois países com poucos laços de parentesco entre si.

Mas ambos viveram processos eleitorais em uma situação talvez inédita de ira e de divisões profundas na sociedade.

A derrota de Trump no pleito para a Câmara e sua vitória na outra Casa do Congresso indicam que a divisão se manteve. Mas o fato de os democratas terem conseguido recuperar a maioria na Câmara mostra que "o desdém de Trump por aqueles que não votaram nele transformou-se em estratégia desastrosa", escreveu Jonathan Bernstein, da Bloomberg.

Luiz Carlos Azedo: Não morra antes da hora

- Correio Braziliense

“Quem disse que a democracia nos Estados Unidos estava à beira da morte queimou a língua”

Poeta, dramaturgo, romancista, ensaísta, fotógrafo e ator, Evguêni Evtuchenko (1932- 2017) foi o cronista da mudança política na antiga URSS. Nos anos 1960, seus recitais ao lado de Bella Akhmadulina, sua ex-mulher, atraíam multidões que lotavam estádios. Seu poema Babi Yar, nome de um desfiladeiro nas imediações de Kiev, que relata o massacre de 35 mil judeus pelos nazistas, em setembro de 1941, serviu de inspiração para a 13ª Sinfonia de Chostakóvitch, cuja força lírica também foi uma crítica ao antissemitismo soviético.

Seu livro em prosa Não morra antes de morrer, publicado no Brasil pela Record, em 1999, relata a crise que levou ao colapso o sistema soviético, depois do sequestro de Mikhail Gorbatchov pelos militares, que tentaram dar um golpe de Estado contra a perestroika. Foi um tiro pela culatra, pois houve grande reação popular. Evtuchenko e o então presidente da Rússia, Boris Yeltsin, lideraram os protestos que acabaram frustrando os objetivos da linha dura comunista e resultaram no fim do comunismo soviético.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dois conceituados professores de Harvard, são os autores do best-seller Como morrem as democracias (Zahar), o livro político da moda no Brasil. É uma leitura instigante, porque eles procuram explicar como a eleição de Donald Trump se tornou possível e mostram as vicissitudes dos regimes democráticos do Ocidente nos últimos 100 anos, com destaque para a ascensão do nazismo na Alemanha, com Hitler, e do fascismo na Itália, com Mussolini, dois líderes carismáticos que se aproveitaram do direito de expressão e da liberdade de organização asseguradas pela democracia para se tornar ditadores sanguinários.

No mesmo embalo, fazem uma radiografia das ditaduras latino-americanas da década de 1970, entre as quais as do Cone Sul, inclusive o Brasil. Segundo eles, a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta nos moldes de uma revolução ou de um golpe militar; agora, a escalada do autoritarismo se dá com o enfraquecimento lento e constante de instituições críticas — como o Judiciário e a imprensa — e a erosão gradual de normas políticas de longa data. A Rússia de Putin, a Turquia de Erdogan e a vizinha Venezuela de Maduro seriam exemplos desse processo. Lançado às vésperas das eleições aqui Brasil, nas quais o deputado Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República, o livro é um sucesso de crítica e de vendas, quando nada porque deu sustentação teórica ao alarmismo que cercou a vitória do capitão reformado do Exército.

De fato, uma onda conservadora varre as democracias do Ocidente, ressuscitando forças ultradireitistas e velhos sentimentos chauvinistas. Ao mesmo tempo, as elites políticas tradicionais e seus partidos são atropeladas por movimentos cívicos e atores subterrâneos nas redes sociais, sem saber bem o que fazer para se manterem no poder. No Brasil, não é muito diferente o que aconteceu nas eleições. Entretanto, mais uma vez, a democracia norte-americana, que surpreendeu o mundo com a eleição de Barack Obama e do próprio Donald Trump, volta a demonstrar sua vitalidade e capacidade de oferecer contrapesos ao poder da Casa Branca.

Maria Cristina Fernandes: Moro acima de todos

- Valor Econômico

Depois de abrir o flanco, Bolsonaro levanta as barricadas

A realocação do general Heleno Pereira da Defesa para o Gabinete de Segurança Institucional e a manutenção da Transparência e da Controladoria Geral da República em Pasta independente da Justiça são os primeiros sinais de que a ficha do presidente eleito caiu. Saudado como um genial lance de marketing, o convite para que o juiz Sergio Moro ocupe o Ministério da Justiça já começa a mostrar o tamanho que tem. Depois de abrir o flanco, agora o capitão começa a levantar as barricadas.

Parte do arsenal do juiz foi exibido na entrevista de Curitiba. Primeiro tratou de desmontar a granada que o general Hamilton Mourão colocou na sua porta ao dizer que o juiz negociara a ida para o governo ainda na campanha. Deu a data (23 de outubro) em que recebeu o economista Paulo Guedes. Uma semana antes, quando a ideia do convite já parecia estar amadurecida na equipe de Bolsonaro, o presidente Michel Temer anunciara a concentração dos serviços de inteligência do governo federal nas mãos do general Sérgio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional.

Os militares do entorno bolsonarista agiram preventivamente em relação ao superministro que estava por vir. O juiz avançou duas casas. Viajou para o Rio com uma pauta. Que não era sua apenas, mas de duas entidades acima de quaisquer suspeitas, a Transparência Internacional e a Fundação Getulio Vargas. Sim, Moro estará subordinado ao presidente eleito, mas este também o está. Não ao ministro mas a uma pauta, que não é do juiz, mas "da sociedade".

A pauta foi esmiuçada à exaustão. Trata-se do resgate, burilado, das 10 medidas anticorrupção barradas pelo Congresso. Duas delas cresceram de importância numa gestão a ter Moro por ministro, a constitucionalização da prisão em segunda instância e a introdução do método Lava-Jato no combate ao crime pelo governo eleito.

A primeira porque o Supremo dá sinais de reação à emergência do superministro e acena com delimitação de poderes com a restrição à execução de prisão em plenário. A segunda porque para recriar operações que entreguem resultados como a de Curitiba, Moro terá que contar com a integração de serviços de inteligência como aqueles hoje sob a custódia da Abin.

Ribamar Oliveira: Dívida estadual colossal vencendo até 2024

- Valor Econômico

Obrigações podem chegar a R$ 300 bi em cinco anos

Os Estados brasileiros terão que amortizar uma dívida (líquida) de R$ 183,8 bilhões nos próximos cinco anos, de acordo com dados do Banco Central (posição em agosto passado). Até dezembro de 2024, os governos estaduais terão também que pagar os precatórios judiciais vencidos, estimados em cerca de R$ 100 bilhões, e a vencer no período, cumprindo determinação da emenda constitucional 99/2017.

Além disso, vários Estados acumulam despesas de exercícios anteriores que terão que quitar, e alguns estão, até mesmo, com salários de seus servidores atrasados ou sendo pagos de forma parcelada. As obrigações estaduais a serem pagas nos próximos cinco anos podem chegar, portanto, a R$ 300 bilhões, algo como 4,3% do Produto Interno Bruto (PIB).

Todos esses números, que mostram com clareza a dramática situação financeira dos Estados, constam de recente artigo do economista Guilherme Tinoco, especialista em finanças pública.

Uma das conclusões do economista é que deve ocorrer uma demanda significativa de crédito ou de ajuda financeira por parte dos Estados nos próximos anos, o que poderá exigir alguma solução da União. "Logicamente, essa demanda só poderia ser atendida caso os Estados se mostrem solventes no médio e longo prazo, o que demanda uma série de reformas fiscais", observa Tinoco no artigo.

Na terça-feira, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) divulgou um estudo com o significativo título "Exposição da União à Insolvência dos Entes Subnacionais", que chega a conclusões parecidas. Uma delas é que, diante do atual cenário de deterioração das finanças estaduais, "há um risco não desprezível de que haja disseminação da falência de Estados, colocando em risco tanto a legitimidade dos pagamentos das dívidas frente aos pagamentos das demais despesas obrigatórias, o que fragiliza sobremaneira o Sistema de Garantias da União, quanto o equilíbrio fiscal macroeconômico do país, haja vista a recorrente série histórica de socorro da União aos entes subnacionais".

Ricardo Noblat: Centrão emplaca ministro

- Blog do Noblat | Veja

O preço de governar

Quem quiser que continue fazendo de conta que o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) não negocia o apoio de partidos ao seu governo em troca de cargos e de outras sinecuras.

O Centrão, sigla que reúne os partidos mais fisiológicos da Câmara, comemorou, ontem, a nomeação da deputada Tereza Cristina para ministra da Agricultura anunciada pelo próprio Bolsonaro.

Ela é ruralista, sim, indicada pela bancada dos proprietários de terras. Mas é também do DEM, uma das pilastras do Centrão. O DEM está com um pé dentro do governo e que pôr o outro.

Não só o DEM. Cargos de segundo e terceiro escalões estão sendo negociados com outros partidos. Não se governa sem apoio no Congresso. E apoio custa caro, o capitão sabe.

Congresso com medo de Moro
Recado para Bolsonaro

Se a intenção do presidente eleito Jair Bolsonaro foi pôr medo em deputados e senadores com a nomeação de Sérgio Moro para ministro da Justiça e da Segurança Pública, saiba que alcançou o objetivo.

Falar contra em público, nenhum deles ousará fazê-lo. Mas em rodas de cafezinho em qualquer dependência do Congresso, deputados e senadores criticam Moro e, por tabela, Bolsonaro.

É compreensível. Há uma grande quantidade deles enrascada com a Lava Jato. Um terço dos novos deputados eleitos em outubro também está. E essa gente teme uma nova leva de prisões quando o Congresso voltar das férias de fim de ano.

A aprovação, ontem, pelo Senado do reajuste de salários do Judiciário foi um recado para Bolsonaro que era contra. Metade, pelo menos, dos senadores favoráveis ao reajuste responde a inúmeros processos.

Democratas ganham a Câmara e Trump resiste no Senado: Editorial | Valor Econômico

O presidente Donald Trump passará a enfrentar agora uma oposição com poder, depois que as urnas deram ao Partido Democrata a liderança na Câmara dos Deputados na terça-feira - 222 ante 196 republicanos. As eleições da metade do mandato dão boas indicações das inclinações do eleitorado, mas não são prognóstico confiável sobre o sucesso ou fracasso da eleição presidencial de 2020, quando Trump tentará se reeleger. Trump saudou o resultado como uma "boa vitória", porque seu partido ampliou a vantagem no Senado, onde estavam em jogo 35 cadeiras. Os republicanos ficam agora com 51 delas, e os democratas, com 46.

O domínio democrata na Câmara vai restringir as iniciativas do presidente, cujo partido dominava as duas Casas. Um segundo pacote de cortes de impostos, com os quais Trump vinha flertando, de olho em sua continuidade na Casa Branca, torna-se agora inviável. A campanha agressiva contra o Obamacare no pleito de meio de mandato em 2010 deu maioria aos republicanos. O tema voltou agora, como vingança: 40% dos eleitores, em sondagem no dia da votação, apontaram o seguro de saúde como o tema que consideram mais relevante e sufragaram os democratas. Novas medidas para soterrar de vez o Obamacare, planejadas pelos republicanos, estão condenadas ao fracasso.

A vitória democrata vai acirrar a rivalidade entre os dois partidos e deve provocar paralisia legislativa diante de qualquer tema controverso. Com maioria no Senado, os republicanos manterão o poder de indicar membros para a Suprema Corte. As duas nomeações feitas por Trump deslocaram a balança da Justiça a favor do conservadorismo. E mais uma vaga será aberta em breve.

O equilíbrio entre os poderes foi saudado pelos mercados, que subiram ontem após um outubro muito ruim. Os investidores apontaram que novos pacotes fiscais, que acelerem a inflação e elevem ainda mais o déficit público, não terão a mínima chance de sobreviver no Congresso.

Por outro lado, os poderes de Trump na política externa seguem intactos e é nesse campo que ele tem espalhado medo e ódio ao redor do mundo, com a guerra comercial à China, a volta das sanções ao Irã, o afastamento do Acordo de Paris, protecionismo tarifário e mais uma longa lista de medidas que abalam a ordem global moldada pelos EUA. Não há muita chance de que ele vá mudar de direção até o fim do mandato.

Recado a Trump: Editorial | Folha de S. Paulo

Democratas voltam a ter controle da Câmara nos EUA, o que deve ampliar investigações contra o presidente

Vitorioso nas urnas graças a uma retórica antissistema, combinada a um nacionalismo agressivo, Donald Trump transpôs para a Casa Branca o modus operandi de campanha. A perda da maioria republicana na Câmara dos Representantes, após as eleições legislativas de terça-feira (6), evidencia os sinais de desgaste de tal estratégia.

Depois de oito anos, o Partido Democrata volta a controlar a Casa —a apuração ainda estava em curso na noite de quarta (7), mas estima-se que a legenda deva conquistar cerca de 30 assentos a mais em relação ao último pleito, em 2016.

A oposição tomou dos republicanos distritos em sua maioria urbanos, cujos eleitores têm perfil mais moderado, o que sugere rejeição ao discurso divisivo do presidente.

Há que levar em conta, também, a turbulenta relação de Trump com sua base de sustentação no Congresso. Dezenas de correligionários desistiram de tentar a reeleição por divergências com a Casa Branca, um movimento que facilitou o caminho para o triunfo rival.

Nessa nova configuração, os democratas podem atrapalhar o trâmite de projetos de interesse do Executivo e, o mais importante, ampliar investigações contra Trump, em especial sobre a suspeita de conluio com autoridades russas para favorecê-lo na disputa de 2016 contra Hillary Clinton.

Eleitorado limitou o poder e a agenda de Donald Trump: Editorial | O Globo

Oposição consolida hegemonia na Câmara, aumentando bancada de 193 para 222 deputados

A Casa Branca tem um problema: com a perda da hegemonia no Congresso, na eleição de terça-feira, está ameaçada a agenda legislativa do presidente Donald Trump para os últimos dois anos do seu mandato.

Com Trump, os republicanos ampliaram o controle do Senado, avançando de 49 para 51 senadores. Os adversários democratas, porém, consolidaram uma vitória expressiva na Câmara, aumentando a bancada de 193 para 222 deputados.

O presidente apostou alto no domínio do Legislativo, transformando a eleição num plebiscito sobre o seu modo de governar. Isso realça o resultado obtido pela oposição.

Ele se empenhou como se já estivesse em campanha para reeleição em 2020. Apelou à retórica inflamada, apresentou migrantes como “inimigos” dos EUA —nação formatada por imigrantes —, e até antecipou a “culpa” democrata pelo seu eventual fracasso administrativo.

O eleitorado não se comoveu. Dividiu o poder no Congresso.

Os eleitores deram um “sim” a Trump, com a maioria republicana no Senado, permitindo-lhe prosseguir em iniciativas como a tramitação rápida da nomeação de juízes conservadores nas cortes federais.

Registraram nas urnas, simultaneamente, um enfático “não” ao presidente, ao entregar o controle da Câmara à oposição. Deram ao Partido Democrata poder para bloquear mudanças relevantes, por exemplo, nas políticas de saúde e de imigração. Essa maioria oposicionista é suficiente até para iniciar um processo de impeachment, possível por maioria simples mas sem chance de aprovação no Senado.

Freio de arrumação: Editorial | O Estado de S. Paulo

As chamadas eleições de meio de mandato nos Estados Unidos, ocorridas na terça-feira passada, mostraram um país que permanece profundamente dividido, mas não se afirmaram como o demolidor revés projetado para o presidente Donald Trump - a tal “onda azul”. No melhor cenário, servirão como um freio de arrumação na relação entre o republicano e o Congresso.

Embora o nome de Donald Trump não estivesse formalmente sob escrutínio, na prática, as eleições serviram como um referendo sobre o seu governo. “Um tremendo sucesso esta noite. Obrigado a todos!”, escreveu o presidente no Twitter após a divulgação dos primeiros boletins parciais da apuração. Não foi bem assim.

Os democratas retomaram o controle da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos depois de oito anos de predomínio dos republicanos, que permanecem majoritários no Senado. De acordo com projeções feitas pelo jornal The Washington Post - a apuração dos votos ainda não foi concluída -, o Partido Democrata conquistará 220 cadeiras na Câmara, enquanto o Partido Republicano ficará com 193. São necessários 218 assentos para garantir maioria na Casa.

No Senado, do total de 100 assentos - 2 por Estado -, os republicanos deverão ficar com 51; os democratas, com 45. Os demais serão ocupados por parlamentares desvinculados dos dois maiores partidos.

Guichê ministerial: Editorial | Folha de S. Paulo

Enxugamento do primeiro escalão tem importância apenas simbólica

As dificuldades enfrentadas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro(PSL), para reduzir o número de ministérios em seu governo revelam como setores influentes temem perder a interlocução privilegiada em Brasília.

Tome-se o caso da pasta da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, que, como o nome indica, trata de temas que afetam diretamente o empresariado —e constitui um canal para a apresentação de suas demandas ao poder público.

Não por acaso, portanto, entidades representativas de segmentos industriais trabalharam ativamente pela preservação do órgão, a ser absorvido pelo futuro superministério da Economia.

Em 24 de outubro, antes da vitória no segundo turno, Bolsonaro chegou a anunciar que atenderia ao pleito dos empresários. Uma semana depois, entretanto, já havia mudado de ideia.

A contraproposta do setor, conforme se noticiou, foi a fusão da pasta, tal como existente hoje, com a do Trabalho, numa estrutura que cuidaria de interesses de patrões e empregados. Não é preciso ser marxista para imaginar os conflitos envolvidos em tal arranjo.

Até onde se sabe, o presidente eleito rejeitou essa hipótese, mas, coincidência ou não, anunciou nesta quarta-feira (7) a intenção de extinguir o ministério trabalhista, como esta Folha havia adiantado. Evidente que agora são os sindicalistas a reclamarem do rebaixamento de seu guichê para o segundo escalão da Esplanada.

O diálogo e a ‘prensa’: Editorial | O Estado de S. Paulo

Há demasiado tempo a política nacional está contaminada pelo clima de animosidade e acrimônia, que dificulta imensamente o necessário consenso em torno de temas de grande interesse público, em especial as reformas urgentes para impedir o colapso da máquina do Estado. A recém-encerrada campanha eleitoral refletiu esse embate, no qual nenhuma das partes enxergava na outra legitimidade suficiente para debater ideias e propostas para o País. No entanto, fechadas as urnas e contados os votos, os eleitos, seja para o Executivo, seja para o Legislativo, devem afinal ser reconhecidos como lídimos representantes dos cidadãos - e devem ser reconhecidos assim por aqueles que perderam a eleição, assim como estes pelos vencedores. Ou seja, não se governa nem se legisla sem levar em conta a correlação de forças democraticamente escolhidas pelo voto direto.

O fato de que Jair Bolsonaro foi eleito com quase 58 milhões de votos, por exemplo, não pode servir como argumento para que seu governo se julgue dispensado de dialogar com os eleitos para o Congresso. Tampouco pode considerar que o Congresso deve necessariamente se dobrar à alegada força moral do presidente - que, segundo ele mesmo diz, não irá se render ao toma lá dá cá que notabilizou a relação dos governos anteriores com o Congresso e que foi fortemente repudiado nas urnas.

Quando o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, sugere que é preciso dar uma “prensa neles”, isto é, nos congressistas, para que ao menos uma reforma parcial da Previdência seja aprovada ainda nesta legislatura, isso denota preocupante prepotência sobre a capacidade do presidente eleito Jair Bolsonaro de impor sua agenda no Congresso mesmo antes de assumir o cargo.

É evidente que a reforma da Previdência já deveria ter sido aprovada - e só não o foi, quando a oportunidade se apresentou para o governo de Michel Temer, em razão do clima de caça às bruxas que se instalou no País contra os políticos em geral, clima do qual, aliás, Bolsonaro muito se beneficiou eleitoralmente. Contudo, uma vez encerrada a campanha presidencial, os integrantes do futuro governo não podem imaginar que seu capital eleitoral seja suficiente para arrancar do Congresso as medidas que julgam necessárias para o País. Se assim fosse, nem haveria necessidade de Congresso - bastaria ao eleito, munido de seus milhões de votos, ditar sua agenda legislativa. Ora, está claro que não é assim que funciona uma democracia, cuja essência está na necessidade de construção constante de consensos.

André Rieu - Manhã de Carnaval

Vinícius de Moraes: Copacabana

Esta é Copacabana, ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas flechas de luz contra o infinito.
Aqui meus olhos desnudaram estrelas
Aqui meus braços discursaram à lua
Desabrochavam feras dos meus passos
Nas florestas de dor que percorriam.
Copacabana, praia de memórias!
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo!

– Esta é a areia

Que eu tanto enlameei com minhas lágrimas
– Aquele é o bar maldito. Podes ver
Naquele escuro ali? É um obelisco
De treva – cone erguido pela noite
Para marcar por toda a eternidade
O lugar onde o poeta foi perjuro.
Ali tombei, ali beijei-te ansiado
Como se a vida fosse terminar
Naquele louco embate. Ali cantei
À lua branca, cheio de bebida
Ali menti, ali me ciliciei
Para gozo da aurora pervertida.

Sobre o banco de pedra que ali tens
Nasceu uma canção. Ali fui mártir
Fui réprobo, fui bárbaro, fui santo
Aqui encontrarás minhas pegadas
E pedaços de mim por cada canto.
Numa gota de sangue numa pedra
Ali estou eu. Num grito de socorro
Entreouvido na noite, ali estou eu.
No eco longínquo e áspero do morro
Ali estou eu. Vês tu essa estrutura
De apartamento como uma colmeia
Gigantesca? em muitos penetrei
Tendo a guiar-me apenas o perfume
De um sexo de mulher a palpitar
Como uma flor carnívora na treva.
Copacabana! ah, cidadela forte
Desta minha paixão! a velha lua
Ficava de seu nicho me assistindo
Beber, e eu muita vez a vi luzindo
No meu copo de uísque, branca e pura
A destilar tristeza e poesia.
Copacabana! réstia de edifícios
Cujos nomes dão nome ao sentimento!
Foi no Leme que vi nascer o vento
Certa manhã, na praia. Uma mulher
Toda de negro no horizonte extremo
Entre muitos fantasmas me esperava:
A moça dos antúrios, deslembrada
A senhora dos círios, cuja alcova
O piscar do farol iluminava
Como a marcar o pulso da paixão
Morrendo intermitentemente. E ainda
Existe em algum lugar um gesto alto,
Um brilhar de punhal, um riso acústico
Que não morreu. Ou certa porta aberta
Para a infelicidade: inesquecível
Frincha de luz a separar-me apenas
Do irremediável. Ou o abismo aberto
Embaixo, elástico, e o meu ser disperso
No espaço em torno, e o vento me chamando
Me convidando a voar... (Ah, muitas mortes
Morri entre essas máquinas erguidas
Contra o Tempo!) Ou também o desespero
De andar como um metrônomo para cá
E para lá, marcando o passo do impossível
À espera do segredo, do milagre
Da poesia.

Tu, Copacabana,
Mais que nenhuma outra foste a arena
Onde o poeta lutou contra o invisível
E onde encontrou enfim sua poesia
Talvez pequena, mas suficiente
Para justificar uma existência
Que sem ela seria incompreensível.

Los Angeles, 1948