Há demasiado tempo a política nacional está contaminada pelo clima de animosidade e acrimônia, que dificulta imensamente o necessário consenso em torno de temas de grande interesse público, em especial as reformas urgentes para impedir o colapso da máquina do Estado. A recém-encerrada campanha eleitoral refletiu esse embate, no qual nenhuma das partes enxergava na outra legitimidade suficiente para debater ideias e propostas para o País. No entanto, fechadas as urnas e contados os votos, os eleitos, seja para o Executivo, seja para o Legislativo, devem afinal ser reconhecidos como lídimos representantes dos cidadãos - e devem ser reconhecidos assim por aqueles que perderam a eleição, assim como estes pelos vencedores. Ou seja, não se governa nem se legisla sem levar em conta a correlação de forças democraticamente escolhidas pelo voto direto.
O fato de que Jair Bolsonaro foi eleito com quase 58 milhões de votos, por exemplo, não pode servir como argumento para que seu governo se julgue dispensado de dialogar com os eleitos para o Congresso. Tampouco pode considerar que o Congresso deve necessariamente se dobrar à alegada força moral do presidente - que, segundo ele mesmo diz, não irá se render ao toma lá dá cá que notabilizou a relação dos governos anteriores com o Congresso e que foi fortemente repudiado nas urnas.
Quando o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, sugere que é preciso dar uma “prensa neles”, isto é, nos congressistas, para que ao menos uma reforma parcial da Previdência seja aprovada ainda nesta legislatura, isso denota preocupante prepotência sobre a capacidade do presidente eleito Jair Bolsonaro de impor sua agenda no Congresso mesmo antes de assumir o cargo.
É evidente que a reforma da Previdência já deveria ter sido aprovada - e só não o foi, quando a oportunidade se apresentou para o governo de Michel Temer, em razão do clima de caça às bruxas que se instalou no País contra os políticos em geral, clima do qual, aliás, Bolsonaro muito se beneficiou eleitoralmente. Contudo, uma vez encerrada a campanha presidencial, os integrantes do futuro governo não podem imaginar que seu capital eleitoral seja suficiente para arrancar do Congresso as medidas que julgam necessárias para o País. Se assim fosse, nem haveria necessidade de Congresso - bastaria ao eleito, munido de seus milhões de votos, ditar sua agenda legislativa. Ora, está claro que não é assim que funciona uma democracia, cuja essência está na necessidade de construção constante de consensos.
Calejado por suas quase três décadas como deputado e decerto consciente de que não será hostilizando os parlamentares que conseguirá aprovar as matérias de interesse do Executivo, Jair Bolsonaro teve de conter o ímpeto de seu futuro ministro da Economia, atribuindo sua fala belicosa a uma verborragia típica dos jejunos em política: “Não tem prensa. O que acontece com alguns do meu lado é que não têm a vivência política. A palavra não é prensa, é convencimento”.
Mas não foi apenas Paulo Guedes quem demonstrou pouco traquejo no diálogo democrático. Eduardo Bolsonaro, filho do futuro presidente e eleito deputado federal com 1,8 milhão de votos, julgou-se por isso autorizado a dizer que o próximo presidente da Câmara “tem que ter um perfil trator, porque a gente sabe como vai ser a oposição da esquerda”.
Embora se saiba que uma parte da oposição no Congresso será formada por quem não tem a menor disposição para alcançar qualquer entendimento - pelo contrário, aposta na sabotagem, pura e simples -, não será defendendo que opositores sejam “tratorados” que o futuro governo conseguirá articular apoio parlamentar sólido a sua agenda.
O País saiu lanhado de uma campanha eleitoral de inaudita agressividade. O mínimo que se pode esperar dos verdadeiros democratas é que toda essa energia negativa seja afinal convertida em empenho para reconstruir um ambiente em que seja possível um entendimento amplo acerca dos maiores problemas do País. Os eleitos, tanto no governo como na oposição, devem ter consciência de que política não é briga de rua.
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